YEAR 2025 No 2 Volume 37

ISSN 2182-9845

Editorial

Francisco Liberal Fernandes

The announced strike by public prosecutors
A greve anunciada dos magistrados do Ministério Público


Convocada pela direcção do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), realizou-se no dia 21 de Junho de 2025 uma Assembleia Geral Extraordinária, em que foi decidido autorizar a direcção do SMMP a convocar dois dias de greve geral para os dias 9 e 10 de Julho, acrescidos de um dia de greve nas Procuradorias Gerais Regionais de Lisboa e Porto (nos dias 11 e 14 de Julho, respectivamente) e um dia de greve (15 de Julho) nas Procuradorias Gerais Regionais de Évora e Coimbra. Para além disso, a mesma direcção ficou autorizada a adoptar, por tempo indeterminado, quaisquer formas de luta, inclusivamente a convocação de greve, após o dia 1 de Setembro de 2025.
O conflito que motiva este anúncio de greve tem como causa uma deliberação do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) relativa à movimentação dos magistrados, a qual, nos termos do comunicado emitido pelo SMMP relativamente à referida assembleia geral, é considerada, em síntese, uma medida que afecta substancialmente as condições de trabalho e que compromete a actuação funcional dos magistrados em prol de uma boa administração da justiça. Trata-se, pois, de um conflito de natureza profissional ou laboral.
É um lugar comum dizer-se que o que confere especial relevo às greves dos magistrados do Ministério Público (e dos magistrados judiciais) é o facto de colocarem em causa o regular funcionamento de um órgão de soberania, os tribunais, e, em particular, do Ministério Público, motivo pelo qual se trata de um facto que, por implicar directamente com o exercício normal da actividade soberana do Estado, é em regra objecto de juízos de diferentes matrizes que ultrapassam amplamente o estrito âmbito da questão profissional que lhe está subjacente.
Porém, o objecto deste editorial centra-se exclusivamente sobre o enquadramento legal de semelhante acção colectiva de autotutela directa.
Relativamente ao problema de legitimidade dos magistrados do Ministério Público para recorrer ao direito de greve, importa destacar que estes agentes não estão subordinados a qualquer órgão do poder público no que respeita ao exercício das suas funções. Com efeito, eles desempenham uma actividade de representação do Estado no seio de um órgão que goza de autonomia perante o poder público central, regional e local (art. 219.º, n.ºs 1 e 2, da CRP e art. 3.º da Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto, Estatuto do Ministério Público), muito embora estejam enquadrados numa relação de dependência hierárquica, de natureza estritamente funcional, no âmbito do Ministério Público (art. 219.º, n.º 4, da CRP e art. 97.º, n.º 2, da Lei n.º 68/2019), cujo órgão superior, a Procuradoria-Geral da República (art. 220.º da CRP), é um organismo autónomo (art. 219.º, n.º 2, CRP).
Porém, paralelamente a esta independência funcional, os magistrados do Ministério Público exercem uma actividade em moldes profissionais ou laborais, como decorre dos arts. 102º (deveres, direitos e incompatibilidades), 117.º (férias, faltas e licenças), 128.º (retribuição), 139.º (avaliação) e, em termos gerais, do 116.º, segundo o qual “é aplicável subsidiariamente aos magistrados do Ministério Público, quanto a incompatibilidades, impedimentos, deveres e direitos, o regime previsto para os trabalhadores em funções públicas”, todos da Lei n.º 68/2019.
Ou seja, enquanto agentes que integram um órgão autónomo dos restantes poderes de soberania, os magistrados do Ministério Público gozam de independência externa (nomeadamente perante o Governo); quanto ao respectivo regime de trabalho (v. g. carreira profissional, salários, horário de trabalho, férias, segurança social, reforma, condições de trabalho em geral, local de trabalho, âmbito funcional, etc.), encontram-se, pelo contrário, numa situação profissional de heterodisponibilidade semelhante à dos restantes funcionários públicos. Deste modo, possuem um duplo estatuto: o de agentes de órgãos de soberania e o de profissionais de carreira sem competência para definir as condições em que exercem as respectivas funções.
Isto significa que a qualificação daqueles agentes (como, aliás, dos juízes) é marcada por uma dualidade estatutária ou normativa que oscila entre uma posição de autonomia relacionada com a actividade de administração da justiça — que não é sinónimo de mera ausência de subordinação jurídica ou de autonomia técnica, mas antes de ausência de qualquer relação de dependência orgânica ou funcional externa —, e uma posição de dependência perante o poder executivo relativamente às condições em que prestam essa mesma actividade.
Assim, enquanto agentes não vinculados a qualquer outra entidade externa não poderiam ser considerados trabalhadores para efeitos de gozarem directamente da eficácia das normas constitucionais relativas aos direitos fundamentais dos trabalhadores; por outro lado, dado que exercem uma profissão, cujas condições de exercício são definidas por uma entidade com poderes de direcção, já beneficiariam daqueles direitos.
Embora a existência de uma relação profissional constitua um elemento de conexão susceptível de colocar directamente os magistrados do Ministério Público sob a alçada das normas relativas aos direitos fundamentais dos trabalhadores, julga-se que referências contidas na CRP relativas ao respectivo estatuto (art. 219.º, n.ºs 4 e 5) não se afiguram suficientemente inequívocas para concluir que lhes é aplicável ipso jure o estatuto constitucional de funcionário da Administração e, por esse motivo, que gozam prima facie dos direitos fundamentais dos trabalhadores nos termos do art. 269.º, n.º 1, da CRP, porquanto o objectivo daqueles preceitos é o de garantir a autonomia do Ministério Público perante os órgãos do poder político e não propriamente definir o estatuto laboral dos respectivos agentes.
Ou seja, ainda que se admita que não pretendeu desviar-se da tradição portuguesa relativamente ao estatuto profissional de carreira dos magistrados judiciais e do Ministério Público, perante a natureza predominantemente organizatória das normas constitucionais relativas ao enquadramento da função por aqueles exercida, crê-se que a CRP optou por reservar para a lei a definição do respectivo estatuto profissional, designadamente em matéria de direitos fundamentais laborais.
Por este motivo, o reconhecimento aos agentes do Ministério Público (e aos juízes) daqueles direitos não nos parece que constitua uma concretização ou um simples corolário de um princípio constitucional, mas antes o resultado de uma intervenção constitutiva do legislador comum.
Ora, no art. 111.º, n.º 1, alínea m), da Lei n.º 68/2019 (tal como no art. 17.º, n.º 1, alínea i), da Lei n.º 21/85, de 30 de Julho, relativa ao Estatuto dos Magistrados Judiciais), o legislador conferiu expressamente aos magistrados do Ministério Público o direito especial de gozar “dos direitos previstos na legislação sindical”, afastando deste modo qualquer dúvida quanto ao reconhecimento do direito de aqueles magistrados recorrerem à greve, cujo exercício ficará sujeito à obrigação de serviços mínimos.