Local autonomy; financial autonomy; organizational autonomy; local business activity.
At the beginning of the second decade of this century, the sustainability of the national public financial system and the assumption of new international commitments by the State, within the scope of the Economic and Financial Assistance Programme signed with the European Union, the International Monetary Fund and the European Central Bank, imposed the creation of mechanisms to control budget execution and public expenditure capable of ensuring compliance with the international obligations to which the country had been linked.
In this sense, Law No. 8/2012 of 17 March was approved, called the Law on Commitments and Delayed Payments (LCPA), which "establishes the rules applicable to the assumption of commitments and late payments of public entities", and consequently also approved the diploma that develops the general foundations and principles of the LPCA - Decree-Law No. 127/2012, of 21 June. The LCPA considerably restricts the public financial decision-making capacity and, as far as municipalities are concerned, their financial autonomy - enshrined in articles 6, no. 1 and 235 et seq. of the Constitution. It is in this context that our work is developed, in which we analyze the Constitutional Court Ruling no. 109/2015, as well as the Court of Auditors' contested judgment - No. 2/2013, 1st S/SS.
The fundamental question is whether or not municipal services of a commercial nature fall within the subjective scope of application of the LCPA and the diploma that regulates it. As a second question, there is also the need to assess the unconstitutionality or not of the norms of articles 2 of the LPCA and Decree-Law 127/2012, when interpreted in the sense of including municipal services with a mercantile nature in the respective scope of application. The Court of Auditors and Constitutional Court rulings (under notation) maintain that the LCA and the law that regulates it, cover municipal services of a commercial nature. Our position is contrary to this understanding, as we understand that it is not constitutionally admissible, as we seek to substantiate below.
1. Uma breve descrição do caso tratado no acórdão sob anotação
É o seguinte o caso tratado no acórdão sob anotação
[1]:
Por deliberação do Conselho de Administração dos Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de Coimbra (doravante, SMTUC), Reg. SGD 4623, de 24.05.2012, é aberto o procedimento n.º 1260/2012 para Aquisição de Gasóleo ao abrigo de um Acordo-Quadro (para aquisição de Combustíveis Rodoviários a Granel) celebrado em 08.02.2002 com a Agência Nacional de Compras Públicas, E.P.E.
Em 30.05.2012, o Conselho de Administração dos SMTUC aprova uma informação solicitando à Câmara Municipal de Coimbra (doravante, CMC) e à Assembleia Municipal “a ratificação do ato de abertura do procedimento (…) bem como a aprovação de repartição dos encargos, de acordo com o determinado nos nºs 1 e 6 do artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 197/99, de 8 de junho e a alínea
c) do n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro, inerentes ao respetivo processo para os anos de 2012, 2013 e 2014.
Em 11 de junho de 2012, a Câmara Municipal delibera ratificar o ato de abertura do procedimento, aprovar a repartição de encargos como proposto pelos SMTUC e remeter a proposta à assembleia municipal.
Em 27 de junho de 2012, a Assembleia Municipal delibera “autorizar o ato de abertura” do procedimento e aprovar a repartição de encargos nos termos propostos pelos SMTUC.
Em 27 de setembro, o Presidente da CMC profere o despacho n.º 54-PR/2012, em que determina que os serviços redijam o contrato, com a maior brevidade, dada a sua excecional importância para o município, considerando a decisão da CMC de homologar a decisão de adjudicação dos SMTUC.
Por ofício de 27 de setembro de 2012 a CMC suscita a Direção-Geral das Autarquias Locais (doravante, DGAL) a questão da aplicação ou não aplicação da Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro (que aprova as regras aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso das entidades públicas – doravante, LCPA) aos SMTUC.
Por ofício datado de Outubro de 2012, a DGAL informa a CMC “que de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 2.º da Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro “…os princípios contidos na presente lei são aplicáveis aos subsetores regional e local, incluindo as entidades públicas reclassificadas nestes subsetores”, com as devidas adaptações, e que o “INE publica a lista das entidades que integram o setor institucional das Administrações Públicas, sendo a esses mesmas que a referida lei se aplicará”, pelo que, em caso de dúvida, recomenda o contacto com o INE; informando ainda que o Programa de Apoio à Economia Local (PAEL), aprovado pela Lei n.º 43/2012, de 28 de agosto, não permite o financiamento dos pagamentos em atraso dos SMTUC.
Em 09 de outubro de 2012 é celebrado o “Contrato de Aquisição de Gasóleo a Granel para Abastecimento das Viaturas que Compõem a Frota dos Serviços Municipalizados de Transportes de Coimbra” com a entidade adjudicatária Petróleos de Portugal – Petrogal, SA. (doravante, Contrato).
Da cláusula vigésima terceira do Contrato consta a referência a uma informação prestada pela Divisão dos Serviços Financeiros dos SMTUC, datada de 06.08.2012, da qual consta, designadamente, a declaração completa de cabimento orçamental, bem como uma declaração de fundos disponíveis, subscrita pela Chefe de Divisão dos Serviços Financeiros dos SMTUC, datada de 03.10.2012, referindo que, “em conformidade com o enquadramento legal da LCPA e de acordo com o despacho n.º 54-PR/2012 de 27/09 do Presidente da Câmara Municipal de Coimbra, o presente processo está cabimentado no orçamento destes serviços na rubrica 02010202 – gasóleo, pese embora na presente data não existam fundos disponíveis para assumir o respetivo compromisso”.
Em 23 de outubro de 2012, a CMC solicita, por mensagem de correio eletrónica, informação ao INE sobre se os SMTUC “devem ser considerados como incluídos nas tabelas que elencam as entidades que, em 2011, integravam o Sector Institucional das Administrações Públicas”.
O Departamento de Contas Nacionais – Administrações Públicas do INE responde em 29.10.2012, por mensagem de correio eletrónico, informando a CMC das regras de classificação institucionais aplicáveis previstas no Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais (SEC 95), e concluindo a missiva no sentido de os SMTUC serem uma unidade institucional pública controlada pela Administração Pública mas que, de acordo com o “critério dos 50%”, assume natureza mercantil, sendo classificada no setor institucional das sociedades não financeiras – razão pela qual não constam aqueles serviços da lista de entidades que integram as Administrações Públicas.
Após novo pedido de informação, feita pela CMC em 29.10.2012, o INE, em 13.11.2012, responde reiterando a posição manifestada em 29.10.2012, de que os SMTUC são unidades institucionais mercantis integradas no setor institucional das sociedades não financeiras.
Em 11 de outubro de 2012 é o Contrato submetido à fiscalização prévia do Tribunal de Contas, para efeito de concessão de visto.
Por Acórdão n.º 2/2013, de 22 de janeiro, da 1.ª Secção do Tribunal de Contas, no âmbito do processo n.º 1430/2012, em virtude do disposto no artigo 44.º da LOPTC, é recusado o visto ao Contrato, por alegada violação dos artigos 5.º, n.º 1 da Lei n.º 8/2012, de 21 de fevereiro (doravante, LCPA) e 7.º, n.º 2 e 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 127/2012, de 21 de junho, bem como dos pontos 2.3.4.2. a) e 2.6.1 do POCAL (Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 54-A/99, de 22 de fevereiro.
Fundamenta o Tribunal de Contas a sua decisão numa suposta ausência de fundos disponíveis para a assunção do compromisso, à luz e de acordo com as supra referidas regras estabelecidas na LCPA e no Decreto-Lei n.º 127/2012. Este acórdão foi confirmado sucessivamente pelo Acórdão do TdC n.º 5/2013 (1.ª S/PL), relatado pela Conselheira Helena Lopes Abreu, e pelo acórdão sob anotação.
As questões levantadas no processo que deu origem ao presente acórdão são aa de saber (i) se os SMTUC caem ou não no âmbito subjetivo de aplicação da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012; e (o que diretamente nos importa na presente anotação) (ii) se são ou não, de todo o modo, inconstitucionais os artigos 2.º da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012 quando interpretados no sentido de abrangerem os serviços municipalizados de transportes urbanos.
2. Primeira questão: a de saber se os serviços municipalizados com natureza mercantil estão ou não abrangidos pelo âmbito subjetivo de aplicação da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012
2.1. Apresentação e modo de abordagem do problema
A primeira (e principal) questão é a de saber se os SMTUC se incluem ou não no âmbito subjetivo
[2] de aplicação da LCPA e, consequentemente, do próprio Decreto-Lei n.º 127/2012 (diploma de desenvolvimento das bases gerais e princípios contidos naquela lei).
Para alcançar tal desiderato importa resolver primeiro dois problemas interpretativos. O primeiro deles consiste na determinação, em tese geral, do âmbito subjetivo de aplicação da LCPA e do respetivo decreto-lei de desenvolvimento – o que implica um considerável esforço hermenêutico com vista a apreender o real sentido e alcance das normas estabelecidas no artigo 2.º da LCPA e no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 127/2012. E o segundo consiste em determinar se, à luz do artigo 2.º da LCPA e do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 127/2012, os SMTUC caem ou não no âmbito subjetivo de aplicação do instituto dos compromissos e dos pagamentos em atraso.
É reconhecido pela doutrina que se tem vindo a pronunciar sobre esta delicada questão que os normativos definidores do âmbito subjetivo de aplicação da LCPA não primam pela clareza, tornando-se portanto necessário um esforço de interpretação jurídica através do recurso, essencialmente, aos elementos
literal (à letra da lei),
sistemático (à integração da norma interpretanda na unidade do sistema, o que implica a análise das suas relações com outras normas) e
teleológico (isto é, ao fim visado pela norma).
Numa primeira leitura do texto da lei (dos artigos 2.º da LCPA e 2.º do Decreto-Lei n.º 127/2012) registam-se, essencialmente, três dificuldades no que respeita à determinação do universo dos organismos obrigados a dar cumprimento à LCPA:
(i) A primeira reside no facto de a letra do n.º 1 do artigo 2.º da LCPA, quando remete expressamente para o artigo 2.º da Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto (doravante, LEO), parecer abarcar um vasto agregado de organismos, incluindo os mencionados no n.º 2 do artigo 2.º da LCPA – o que, a ser verdade, teria por efeito a total inutilidade do n.º 2 do artigo 2.º da LCPA (razão pela qual tal hipótese, diga-se desde já, merece a nossa discordância);
(ii) A segunda reside na diferença de intensidade da aplicação da LCPA aos organismos referidos no n.º 1 (que se sujeitam a todas as regras e princípios estipulados na LCPA) e aos abrangidos pelo n.º 2 (apenas aos princípios acima mencionados), ambos do artigo 2.º da LCPA;
(iii) E a terceira traduz-se na aparente diferença de redação entre o artigo 2.º da LCPA – cujo âmbito é definido/densificado por remissão normativa para o artigo 2.º da LEO – e o artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 127/2012, que se limita a estabelecer que a sua disciplina “aplica-se às entidades referidas no artigo 2.º da LCPA”, usando, portanto, uma técnica legislativa consistente numa mera remissão normativa sem contudo, pelo menos expressamente, fazer a distinção entre os dois grupos de entidades (por um lado, as identificadas no n.º 1 e, por outro, as identificadas no n.º 2, ambos da LCPA).
Em obediência à sequência lógica destes problemas começaremos pelo ensaio de interpretação do artigo 2.º da LCPA, passando de seguida para a análise do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 127/2012 e da sua relação com o primeiro normativo citado e, por fim, responderemos à questão nuclear da aplicação ou não da LCPA aos SMTUC, sendo certo que o tratamento da presente questão passa essencialmente pela resposta um problema de interpretação jurídica, de determinação do sentido e alcance de uma norma jurídica – pelo que, na sua solução, utilizaremos a panóplia dos métodos e procedimentos que a hermenêutica jurídica coloca à disposição do jurista.
2.2. Âmbito subjetivo de aplicação da Lei n.º 8/2012, de 21.02 (Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso) e do Decreto-Lei de Desenvolvimento n.º 127/2012, de 21.06
a) Elemento literal e técnica legislativa
O âmbito subjetivo de aplicação do instituto (do controlo) dos compromissos e (da regularização) dos pagamentos em atraso está definido nos artigos 2.º da LCPA e 2.º do Decreto-Lei n.º 127/2012, através de uma técnica legislativa consistente em sucessivas remissões normativas.
Com efeito, o artigo 2.º da LCPA, na definição das entidades abrangidas pelo seu âmbito de aplicação, remete expressamente para o artigo 2.º da LEO, sendo que esta última se aplica aos organismos integrados no Setor Público Administrativo (SPA), tal como ele é definido de acordo com as regras de contabilidade nacional
[3], as quais assentam por seu turno no modelo definido no Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais (doravante, SEC 95)
[4].
Por sua vez, o âmbito de aplicação subjetivo do Decreto-Lei n.º 127/2012 é definido por remissão normativa expressa para o artigo 2.º da LCPA.
Independentemente da questão do mérito ou demérito desta técnica legislativa, começaremos a nossa análise pelo artigo 2.º da LCPA e, de seguida, tentaremos apreender e compreender o sentido e alcance da remissão normativa para o artigo 2.º da LEO e deste para o SEC 95. Vejamos.
Numa primeira leitura do texto da lei (do artigo 2.º da LCPA), constatamos que o âmbito subjetivo de aplicação desta é determinado com base na distinção entre dois grupos de entidades: (i) um primeiro identificado no n.º 1 do artigo 2.º da LCPA e (ii) um segundo identificado no n.º 2 do referido normativo
[5].
b) Análise do n.º 1 do artigo 2.º da LCPA
O n.º 1 do artigo 2.º da LCPA aplica-se “
todas as entidades previstas no artigo 2.º da lei de enquadramento orçamental, aprovada pela Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 52/2011, de 13 de outubro, e a todas as entidades públicas do Serviço Nacional de Saúde, doravante designadas por “entidades”, sem prejuízo das competências atribuídas pela Constituição e pela lei a órgãos de soberania de caráter eletivo” (n.º 1).
Já a norma do n.º 1 do artigo 2.º da LCPA apenas identifica diretamente, e por si só, como entidades abrangidas pela LCPA, as entidades públicas do Serviço Nacional de Saúde, nas quais se integram, designadamente, os hospitais sob forma de entidade pública empresarial (Hospitais EPE).
As restantes entidades (referidas na primeira parte do n.º 1 do artigo 2.º da LCPA
[6]) são identificadas através do recurso ao artigo 2.º da LEO, por força da expressa remissão do n.º 1 do artigo 2.º da LCPA para o artigo 2.º da LEO.
Dispõe o artigo 2.º da LEO, no seu n.º 1, que a “
presente lei aplica-se ao Orçamento do Estado, que abrange, dentro do sector público administrativo, os orçamentos do subsector da administração central, incluindo os serviços e organismos que não dispõem de autonomia administrativa e financeira, os serviços e fundos autónomos e a segurança social, bem como as correspondentes contas”. Esta norma fixa assim um princípio geral de sujeição à LEO (e, consequentemente, por força de remissão normativa, à LCPA) de um conjunto de organismos integrados no subsetor da administração central que abarca, pelo menos, (i) os serviços e organismos sem autonomia administrativa e financeira, (ii) os serviços e fundos autónomos e (iii) a segurança social. Ora, o sentido dos conceitos usados nesta norma vem explicitado nos restantes números do artigo 2.º da LEO.
Assim, “[
o]s serviços do Estado que não disponham de autonomia administrativa e financeira são designados, para efeitos da presente lei, por serviços integrados” (n.º 2 do artigo 2.º da LEO). Por seu turno, nos termos do n.º 3 do artigo 2.º da LEO são “
serviços e fundos autónomos os que satisfaçam, cumulativamente, os seguintes requisitos: a)
Não tenham natureza e forma de empresa, fundação ou associação públicas, mesmo se submetidos ao regime de qualquer destas por outro diploma; b)
Tenham autonomia administrativa e financeira; c)
Disponham de receitas próprias para cobertura das suas despesas, nos termos da lei”. Além disso, temos de considerar que o subsetor da segurança social corresponde ao
“sistema de solidariedade e segurança social, constituído pelo conjunto dos subsistemas definidos na respetiva lei de bases (…)” (n.º 4 do artigo 2.º da LEO).
Para além destes organismos estão ainda integrados no subsetor da administração central do setor público administrativo as
entidades públicas “reclassificadas”, isto é, “
as entidades que, independentemente da sua natureza e forma, tenham sido incluídas em cada subsector no âmbito do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais, nas últimas contas sectoriais publicadas pela autoridade de estatística nacional, referente ao ano anterior ao da apresentação do Orçamento” (n.º 5 do artigo 2.º da LEO).
Assim sendo, temos de considerar (como aliás entende a maioria da doutrina) que estão abrangidos na previsão do n.º 1 do artigo 2.º da LEO (princípio geral) todos os organismos que integram, dentro do setor público administrativo, o subsetor da administração central e da segurança social, incluindo ainda as entidades públicas reclassificadas nestes subsetores, nos termos do n.º 5 do artigo 2.º da LEO. Ora, é inquestionável o subordinarem-se os parâmetros de classificação ou reclassificação de organismos no setor público administrativo aos critérios quantitativos estabelecidos no âmbito das regras de contabilidade nacional, os quais assentam por sua vez nos critérios de classificação/reclassificação estabelecidos no SEC 95
[7].
Chama-se ainda a atenção para a clara e pacífica distinção entre o conceito de “Setor Público Administrativo” e o conceito administrativo (e constitucional), ou clássico, de “Administração Pública”: enquanto este último obedece a critérios essencialmente de origem doutrinal sobremodo vagos e teoréticos (que põem o foco no elemento teleológico da prossecução de um fim público/satisfação de necessidade coletiva, além de outros como o “controlo dominante”), já o primeiro (que podemos designar de conceito “financeiro público/contabilístico público”) está muito bem definido com base em parâmetros quantitativos (económico-financeiros e contabilísticos) definidos no SEC 95. Esta questão merecerá maior desenvolvimento (cfr. infra).
Por conseguinte, em virtude desta remissão (para) e da incorporação do artigo 2.º da LEO na LCPA, “tem de se considerar que este diploma legal [a LCPA] aplica-se às entidades que integram os subsectores da administração central e da segurança social, neles se incluindo também as respetivas
entidades públicas reclassificadas (EPR), isto é, entidades que, pela sua natureza jurídica, estão excluídas do Sector Público Administrativo (SPA), mas que, para efeitos orçamentais, e de acordo com as regras da contabilidade nacional, são
capturadas e integradas naquele sector”
[8].
Dado que a remissão do n.º 1 do artigo 2.º da LCPA para o artigo 2.º da LEO parece ser feita em bloco, sem distinguir entre si os vários subsetores do setor público administrativo, poder-se-ia colocar igualmente a questão de saber se não estarão os organismos classificados/reclassificados no subsetor local do setor público administrativo também abrangidos pela norma do n.º 1 do artigo 2.º da LCPA.
A resolução desta questão não se pode bastar com uma leitura apressada e isolada da norma em causa, sendo necessário um esforço de integração e compreensão da inserção da mesma norma (e da sua relação com outras integradas) no sistema normativo, designadamente considerando o preceito do n.º 2 do artigo 2.º da LCPA, o que faremos já de seguida.
c) Análise do n.º 2 do artigo 2.º da LCPA
O n.º 2 do artigo 2.º da LCPA abarca, por seu turno, as entidades públicas integradas nos “
subsetores regional e local, incluindo as entidades públicas reclassificadas nestes subsetores”. Ao abrigo de um critério de interpretação sistemática, deve aqui entender-se que os conceitos de “subsetores regional e local, incluindo as entidades públicas reclassificadas nestes subsetores” deverão ser preenchidos com base no disposto no n.º 6 do artigo 2.º da LEO, que de modo expresso se refere aos “subsetores regional e local”, e, mais especificamente, ao conceito de “entidades públicas reclassificadas” com recurso ao n.º 5 do artigo 2.º da LEO: neste último caso trata-se dos “
serviços e fundos autónomos [integrados no setor público administrativo, nos respetivos subsetores da administração regional e local]
que, independentemente da sua natureza e forma, tenham sido incluídos em cada subsector no âmbito do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais, nas últimas contas sectoriais publicadas pela autoridade estatística nacional, referentes ao ano anterior ao da apresentação do Orçamento”.
Significa isto que a norma em análise (a do n.º 2 do artigo 2.º da LCPA) abrange todos os organismos que tenham sido classificados/reclassificados nos subsetores regional e local do setor público administrativo tal como ele é definido pelo SEC 95.
Para o que ora interessa, integram o subsetor local (S13132) do setor público administrativo (S.13): (i) os distritos (S13132); (ii) os municípios (S131322); (iii) as freguesias (S131323); (iv) os serviços autónomos da administração local (S131324), neste classificados/reclassificados de acordo com os critérios previstos no SEC 95; (v) e as instituições sem fins lucrativos da administração local (S131325).
2.3. Elemento sistemático e sentido e alcance da remissão do artigo 2.º da LCPA para o artigo 2.º da LEO e deste para o SEC 95
Como se disse supra, temos por certo que o n.º 1 do artigo 2.º da LCPA abrange, seguramente, os organismos que integram os subsetores da administração central (S.1311)
[9] e da segurança social (S.1314), e os organismos reclassificados nestes subsetores da administração central e da segurança social, no âmbito geral do setor público administrativo, tendo por referência as sucessivas remissões normativas do artigo 2.º da LCPA para o artigo 2.º da LEO e deste para os critérios de classificação/reclassificação estabelecidos no SEC 95.
Colocou-se supra a pertinente questão de saber se a norma do n.º 1 do artigo 2.º da LCPA abrange ou não também os organismos classificados/reclassificados no âmbito dos subsetores da administração local e regional do setor público administrativo, dado que tal norma, numa mera leitura sem consideração de critérios de interpretação sistemática, parece remeter em bloco para o artigo 2.º da LEO (que abrange, no conjunto dos seus 6 números, os subsetores da administração central, da segurança social, da administração regional e da administração local), entendimento que terá sido sufragado (pelo menos quanto ao seu resultado) pelo Tribunal de Contas no Acórdão n.º 2/2013, ora sob apreciação. Vejamos.
De acordo com as regras de interpretação jurídica (em especial, do elemento sistemático que deve considerar a totalidade do sistema jurídico e ter em vista a sua unidade e coerência)
[10] há que atender e dar utilidade à distinção feita entre o n.º 1 e o n.º 2 do artigo 2.º da LCPA, pois na “
fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (n.º 3 do artigo 9.º do Código Civil). Pelo que temos de considerar que não se trata de um mero lapso do legislador e que este soube exprimir-se de forma adequada, sendo por isso certo o abranger a norma do n.º 1 do artigo 2.º da LCPA apenas as entidades integradas nos subsetores da administração central e da segurança social, incluindo as entidades públicas reclassificadas nestes subsetores.
Esta conclusão é sustentada, como se disse, por elementos de interpretação sistemática (e até pela mera letra da lei), dado que a própria LCPA, em termos semelhantes à LEO, também distingue entre, por um lado, a administração central e a segurança social (encontrando-se ambas integralmente sujeitas a LEO, de acordo com o princípio geral fixado no seu n.º 1 e, depois, desenvolvido nos números 2, 3, 4 e 5), e, por outro lado, entre a mesma administração central e os subsetores da administração regional e local (previstos apenas no n.º 6 e no n.º 5 do artigo 2.º da LEO).
Sendo assim, enquanto que aos organismos integrados no âmbito do n.º 1 do artigo 2.º da LCPA se aplicarão todas as regras e princípios jurídicos do instituto dos compromissos e dos pagamentos em atraso, já os organismos abrangidos pelo n.º 2 do artigo 2.º da LCPA apenas cairão na alçada dos princípios que enformam e presidem àquele regime, devendo ainda, no que respeita aos organismos integrados nos subsetores da administração regional e local, respeitar-se o princípio da independência orçamental estabelecido no n.º 2 do artigo 5.º da LEO (que dispõe que “[
o]s orçamentos das regiões autónomas e das autarquias locais são independentes do Orçamento do Estado e compreendem todas as receitas e despesas das administrações, regional e local, incluindo de todos os seus serviços e fundos autónomos”).
Pelo exposto se conclui que estão abrangidos pelo n.º 2 do artigo 2.º da LCPA (e consequentemente integrados no seu âmbito subjetivo de aplicação) as entidades (incluindo as entidades reclassificadas) integradas nos subsectores da administração local (S.1313)
[11], de acordo com as regras estabelecidas no SEC 95. Este entendimento é sustentado também no “Manual de Aplicação da LCPA”
[12], que refere serem os princípios contidos na LCPA aplicáveis aos subsetores regional e local, incluindo as entidades públicas reclassificadas (EPR) nestes subsetores (n.º 2 do artigo 2.º da LCPA), bem como pela doutrina, designadamente por Joaquim Rocha, Noel Gomes & Hugo Flores da Silva, quando sublinham a recondução ao segundo grupo (identificado no n.º 2 do artigo 2.º da LCPA) das “entidades, de âmbito regional e local, que integrem o designado SPA, como é o caso dos municípios, das freguesias, mas também (algumas) entidades que tradicionalmente integram o Sector Público Empresarial (SPE), designadamente empresas municipais, mas que, para efeitos orçamentais, de acordo com as regras de contabilidade nacional, são integrados naquele sector (SPA)”
[13], isto é, as entidades reclassificadas nos ditos subsetores com o sentido que lhe atribui a norma do n.º 5 do artigo 2.º da LEO, de: “(…)
entidades que, independentemente da sua natureza e forma, tenham sido incluídas em cada subsetor no âmbito do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais, nas últimas contas setoriais publicadas pela autoridade estatística nacional, referentes ao ano anterior ao da apresentação do Orçamento”.
Carece pois de base sólida a afirmação do Tribunal de Contas no Acórdão n.º 2/2013, de que “é defensável – por forma a dar conteúdo útil ao n.º 2 do artigo 2.º da LCPA” o serem os princípios desta lei “também aplicáveis a outras entidades dos setores regional e local, mas que não se integram no sector público administrativo”, e de que “[n]este caso, estaremos a dar um conteúdo mais amplo ao conceito de subsetor regional e de subsetor local por força a obedecer ao comandos que manda ao intérprete dar sentido útil às normas e aceitar que o legislador se exprimiu da melhor forma”
[14].
Na verdade, e como já deixámos claro, o âmbito subjetivo de aplicação da LCPA e do próprio Decreto-Lei n.º 127/2012 é definido tendo por referência tão só as entidades (classificadas ou reclassificadas) que façam parte do setor público administrativo, tal como este é definido a partir nos critérios estabelecidos no SEC 95, e que integrem por consequência a lista elaborada pelo INE – pelo que
todas as demais entidades não identificadas nesta lista e, em todo o caso, as que não preenchem os requisitos materiais de classificação ou reclassificação estabelecidos no SEC 95, não estão abrangidas pelo âmbito de aplicação da LCPA.
Diferente da questão da delimitação do círculo de entidades abrangidas pela disciplina da LCPA é o problema da determinação do sentido e alcance da norma do n.º 2 do artigo 2.º da LCPA, quando manda aplicar às entidades do subsetor local apenas os princípios jurídicos que presidem àquele regime. Se todas as entidades abrangidas pelo âmbito subjetivo de aplicação da LCPA têm, no mínimo, que dar cumprimento aos referidos princípios jurídicos, o mesmo já não acontece com as não integradas no setor público administrativo, mais precisamente nos subsetores centrais, locais ou regionais, as quais nem sequer àqueles princípios estão sujeitas.
Para além disso, o argumento histórico invocado pelo Tribunal de Contas também não é, nesta parte, decisivo. Desde logo porque dele não se podem extrair as conclusões tecidas pelo Tribunal no Acórdão n.º 2/2013; mas também e ainda porque, como é sabido, o elemento histórico constitui apenas um dos elementos do complexo processo hermenêutico (e por sinal o mais fraco), tendo ele, considerando a redação da LCPA e a integração desta no sistema normativo (no bloco legal, necessariamente unitário, coeso e coerente)
[15] que ser obrigatoriamente conjugado com (e controlado/confirmado através do) recurso a elementos como o
sistemático e o
teleológico, sendo certo que, no processo interpretativo, importa apurar a vontade real da lei (
voluntas legis) não uma possível/eventual e incerta vontade (psicológica) do legislador (
voluntas legislatoris).
Em síntese, forçosa é conclusão de que apenas estão abrangidos pelo âmbito subjetivo de aplicação da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012 os organismos que, independentemente da sua forma e natureza jurídica, tenham sido classificados/reclassificados nos subsetores da administração central, regional ou local, ou da segurança social, no âmbito do setor público administrativo (S.13), definido de acordo com o Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais (SEC 95), nas últimas contas setoriais publicadas pela autoridade estatística nacional (cfr. artigo 2.º da LEO), com base apenas e tão só em elementos económico-financeiros de classificação a partir de critérios essencialmente quantitativos, de acordo com o regime estabelecido no SEC 95
[16].
2.4. O conceito de Setor Público Administrativo à luz do SEC 95 e da Lei de Enquadramento Orçamental: os critérios e procedimentos de classificação/reclassificação
Vimos que o âmbito subjetivo de aplicação da LCPA e do respetivo decreto-lei de desenvolvimento (Decreto-Lei n.º 127/2012) abarca todos os organismos que integrem o Setor Público Administrativo ou “Administrações Públicas” (S.13), tal como este é definido no SEC 95, sendo certo que compete à autoridade estatística nacional (
in casu, o Instituto Nacional de Estatísticas - INE) a elaboração da lista de entidades que dele fazem parte (do Setor Público Administrativo), com base em critérios essencialmente quantitativos e de ordem económico-financeira.
De acordo com o SEC importa distinguir entre os seguintes setores institucionais (2.17): (i) sociedades não financeiras (S.11); (ii) sociedades financeiras (S.12); (iii) administrações públicas (S.13); (iv) famílias (S.14); (v) instituições sem fim lucrativo ao serviço das famílias (S.15); (vi) resto do mundo (S.2).
Há que explicitar agora o significado e âmbito do conceito de “Administrações Públicas” (ou Setor Público Administrativo) constante do SEC 95, de modo a podermos apreender os organismos que o integram (ou que nele tenham sido reclassificados) e que, portanto, ficam sujeitos à aplicação da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012
[17].
Com efeito, o sentido e alcance do conceito de “Setor Público Administrativo” utilizado pela LEO (designadamente no seu artigo 2.º) é apurado através da utilização das regras de contabilidade nacional definidas com base na classificação constante do SEC 95 - Sistema Europeu de Contas (SEC 95), e não com base no conceito clássico de “Administração Pública” tal como foi construído no âmbito do Direito Administrativo
[18].
Na verdade, o conceito dito “financeiro” de Administração ou Setor Público Administrativo é distinto do conceito “administrativo e constitucional” de Administração Pública, dado que, enquanto o segundo atende essencialmente a dados de natureza qualitativa (como o fim – público – prosseguido pelo organismo), o primeiro atende apenas a critérios de natureza económico-financeira, isto é, a critérios quantitativos que serão mais adiante objeto da nossa análise quando abordarmos a questão da classificação ou não classificação dos SMTUC no âmbito do setor institucional das “Administrações Públicas”
[19].
Por todo o exposto requer-se um cuidado redobrado no que respeita à determinação das entidades que integram o SPA, centrando-nos nós doravante apenas nos conceitos financeiros presentes no SEC 95 e adotados pela LEO e pela LCPA. Assim sendo, uma entidade que integre, de acordo com os critérios de qualificação das entidades públicas administrativas (especialmente o critério teleológico da prossecução de um fim de interesse público, isto é, da satisfação de necessidades coletivas), o conceito administrativo de Administração, bem poderá, com base designadamente no elemento “mercantil” (cfr. o critério dos 50%), não integrar o conceito de Administração para fins financeiros/contabilístico, tal como definido no SEC 95.
Uma vez aqui chegados importa resolver a questão nuclear objeto do processo que deu origem ao acórdão sob anotação (e, aliás, a todo o processo de fiscalização prévia do TdC): estão ou não os SMTUC abrangidos pelo âmbito de aplicação da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012?
A resolução desta questão depende, naturalmente, de saber se os SMTUC integram ou não o subsetor local do setor público administrativo (ou, na terminologia do SEC 95, as “Administrações Públicas” – S.13).
Conforme ponto 2.68. do SEC 95, o setor das “Administrações Públicas” (S.13) “
inclui todas as unidades institucionais que são outros produtores não mercantis (…) cuja produção se destina ao consumo individual e coletivo e principalmente financiadas por pagamentos obrigatórios feitos por unidades pertencentes a outros sectores e/ou todas as unidades institucionais principalmente ligadas à redistribuição do rendimento e da riqueza nacional”.
As unidades institucionais a classificar no setor público administrativo (S.13) são as seguintes:
“
a)Organismos da administração pública (excluindo os produtores públicos organizados como sociedades de capital ou, por força de legislação especial, dotados de estatuto que lhes confira personalidade jurídica, ou quase-sociedades, se quaisquer delas estiverem classificadas nos sectores financeiros ou não financeiros) que gerem e financiam um conjunto de atividades destinadas à coletividade – principalmente, o fornecimento de bens e serviços não mercantis;
b) As instituições sem fim lucrativo dotadas de personalidade jurídica que são outros produtores não mercantis e que são controladas e financiadas principalmente pelas administrações públicas;
c) Os fundos de pensões autónomos que obedeçam aos dois requisitos enunciados no ponto 2.74.”
Como se disse já, o setor das administrações públicas divide-se em quatro subsetores, a saber:
a) Administração central (S.1311);
b) Administração estadual (S.1312);
c) Administração local (S.1313);
d) Fundos de segurança social (S.1314).
Tendo por base o edifício normativo contido na SEC 95, para se classificar (ou reclassificar) uma certa unidade organizacional no setor das “Administrações Públicas” (S.13) é necessário que ela seja, cumulativamente
[20]: (i) uma unidade institucional; (ii) pública; e (iii) não-mercantil. A não verificação de um destes requisitos determina, consequentemente, a não classificação da unidade institucional no âmbito do setor público administrativo. Tais requisitos serão objeto de explicitação mais adiante quando analisarmos a questão da classificação dos SMTUC à luz do SEC 95.
Importa então apurar em concreto se os SMTUC integram o setor público administrativo (S.13), especificamente o subsetor da administração local (S.1313), ou se, pelo contrário, integram um outro setor, designadamente o setor das sociedades não financeiras (S.11), como defende o INE.
Mas, antes disso, há que proceder a uma breve caracterização dos serviços municipalizados, o que faremos já de seguida, ainda que em breves linhas.
2.5. A classificação institucional dos SMTUC à luz do SEC 95
a) Nota introdutória
À luz do direito português, para que uma certa unidade institucional (organizacional) se considere integrada no setor público administrativo (S.13) e, consequentemente, fique abrangida pelo âmbito subjetivo de aplicação da LCPA (artigo 2.º da LEO aplicável
ex vi do artigo 2.º da LCPA e artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 127/2012) é necessário que, cumulativamente:
(i) Estejam preenchidos os requisitos cumulativos (quantitativos) fixados no SEC 95 (cfr. supra) para efeito de classificação ou reclassificação de unidades organizacionais no âmbito das “Administrações Públicas” (S.13) – pressuposto material;
(ii) A unidade organizacional tenha sido incluída na listagem elaborada pelo INE no âmbito de um dos subsetores do setor público administrativo (S.13)
[21] – pressuposto formal ou procedimental.
Temos ainda por certo que, para efeito de integração de uma determinada unidade organizacional no âmbito do setor público administrativo, é indiferente a sua forma ou natureza jurídica, designadamente se a mesma possui ou não personalidade jurídica própria.
Podemos desde já avançar, como exemplo de unidades institucionais não dotadas de personalidade jurídica própria a figura da
quase-sociedade (cfr. 2.16., alínea
b)), a qual, quando preenchidos os pressupostos de mercantilidade (isto é, quando se verifique que os custos de produção são cobertos em 50% pelas vendas), são classificadas como sociedades não financeiras (S.11.). Voltaremos a esta questão.
Para além disso, analisando a lista de “Entidades do Sector Institucional das Administrações Públicas 2011”
[22] publicada pelo INE
[23] constata-se que, pelo menos, dois tipos de organismos sem personalidade jurídica são incluídos expressamente na lista: são os casos das (de todas as) Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (até 2022 integradas no subsetor da Administração Central, como serviços e fundos autónomos – S.13112
[24]) e dos serviços de ação social (SAS) de instituições de ensino superior públicas, como por exemplo os SAS do Instituto Politécnico do Porto e os SAS da Universidade do Minho, entre outros (integrados no subsetor da Administração Central como serviços e fundos autónomos – S.13112).
Ora, as CCDR são serviços periféricos da administração direta do Estado, dotados de autonomia administrativa e financeira, que integram a pessoa coletiva Estado e, portanto, a administração direta estadual (artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 228/2012, de 25 de outubro).
Por seu turno, os SAS de instituições de ensino superior públicas, quando não possuam forma fundacional, são elas próprias consideradas serviços e fundos autónomos para efeito de integração no Setor Público Administrativo. Em regra assumem a natureza de serviços autónomos, dotados de autonomia administrativa e financeira e integrados na estrutura organizacional das instituições de ensino superior públicas a que respeitam: é o que sucede, a título de exemplo, com os SAS do Instituto Politécnico do Porto, que são serviços não personalizados vocacionados para assegurar as funções de ação social escolar, cabendo-lhes executar as políticas de ação social, garantindo a prestação de apoios sociais, diretos e indiretos, sendo dotados de autonomia administrativa e financeira, e, portanto, integrados na administração indireta da instituição de ensino (artigo 37.º, n.ºs 1 e 2 dos Estatutos do IPP
[25]).
Por conseguinte, e considerando tudo o que já se disse sobre o conceito de Setor Público Administrativo (S.13) e sobre o modo de classificação institucional que deverá ser adotado nesta sede, temos por certo que a personalidade jurídica é totalmente irrelevante para efeito de integração ou não integração de uma unidade organizacional (dotada de certo grau de autonomia) no âmbito do Setor Público Administrativo.
b) Os SMTUC: breve caraterização
Os SMTUC são serviços municipalizados, isto é, formas jurídicas de organização que visam a exploração, sob forma industrial, de serviços públicos de interesse local no domínio dos transportes regulares urbanos de passageiros, anteriormente enquadrados juridicamente pelo Código Administrativo de 1936-40 (Decreto-Lei n.º 31:095, de 31 de dezembro de 1940) e atualmente pela Lei n.º 50/2012, de 31 de Agosto) – artigos 164.º, n.º 7 do Código Administrativo e 9.º e 10.º da Lei n.º 50/2012).
Aos SMTUC cabe a responsabilidade por assegurar os serviços públicos (locais) essenciais de transporte público no concelho de Coimbra, sendo dotados de uma estrutura autónoma, no âmbito da administração municipal, organizada sob forma empresarial, com vista à satisfação de necessidades coletivas da população do município (artigos 168.º do Código Administrativo, 8.º, n.º 2 e 9.º da Lei n.º 50/2012).
Os SMTUC são assim estruturas organizacionais dotadas de órgãos próprios, com competências próprias no domínio da gestão dos serviços, que não estão sujeitos a uma relação de hierarquia com os órgãos “centrais” do município, atento o elevado grau de autonomia jurídica que a estrutura ostenta (cfr. artigos 169.º e 170.º do Código Administrativo e 13.º da Lei n.º 50/2012).
A autonomia dos serviços municipalizados integra, pelo menos, as seguintes dimensões:
a) Autonomia administrativa;
b) Órgãos próprios com capacidade de representação externa e de imputação dos seus atos ao município
[26] para efeitos de assunção de obrigações e exercício de direitos, incluindo ainda poderes de autoridade
[27];
c) Autonomia financeira, que abarca, designadamente, a autonomia orçamental (orçamento próprio)
[28] e de tesouraria, sendo dotados de contabilidade própria, ainda que sujeita, por motivos de uniformização da contabilidade local, ao cumprimento das regras de contabilidade aplicável aos municípios (o POCAL);
d) Personalidade tributária;
e) Personalidade judicial.
Os serviços municipalizados visam a prestação de serviços públicos essenciais, de âmbito ou com incidência local, sob forma empresarial (industrial), de carater económico e, no caso dos SMTUC, como veremos, também mercantil. Nos termos do artigo 165.º do Código Administrativo (atualmente do artigo 71.º da Lei n.º 50/2012), “[
o]s serviços municipalizados visarão a satisfazer necessidades coletivas da população do concelho a que a iniciativa privada não preveja de modo completo e deverão fixar as tarifas [preços] de modo a cobrir os gastos de exploração e de administração, bem como a permitir a constituição das reservas necessárias”.
Sendo assim, os serviços municipalizados não são meros serviços municipais, mas antes “organizações do tipo empresarial, (…) empresas públicas municipais, empresas integradas ou internalizadas” ainda que sem personalidade jurídica própria
[29]. Trata-se, pois, de “empresas públicas cujo empresário é o município, embora essas empresas não tenham personalidade jurídica”
[30], constituindo, portanto, “um património autónomo ou separado dos municípios: eis o que explica que se possa falar de créditos e de dívidas entre os municípios e os serviços municipalizados”
[31].
2.6. A “personalidade jurídica parcial”, “empresarialidade” e “mercantilidade” como atributos dos SMTUC
Torna-se claro o terem caído o Tribunal de Contas e o Tribunal Constitucional numa típica armadilha de “jurisprudência dos conceitos”, revelando um excessivo apego aos conceitos de
personalidade coletiva e de
sociedade comercial, em detrimento do comezinhamente disposto no direito financeiro público positivo
[32].
Comece-se por se dizer, quanto ao conceito de personalidade jurídica, que não estamos numa zona do “tudo ou nada”: simetricamente à problemática do chamado “levantamento do véu da personalidade jurídica” (desconsideração da personalidade jurídica própria para determinados efeitos), temos a temática da designada “personalidade jurídica parcial”, fenómeno que ocorre, no domínio da organização administrativa, com os chamados “fundos e serviços autónomos” (seja ao nível do Estado e das Regiões Autónomas, seja ao nível das universidades públicas – são os casos das Faculdades que as integram e dos respetivos serviços sociais –, seja ao nível dos municípios, como é o caso que ora nos ocupa dos serviços municipalizados)
[33].
Significa tal que mesmo não tendo uma determinada entidade uma personalidade jurídica completa, pode a lei atribuir-lha (apenas) para determinados efeitos – tributários (é a chamada
personalidade tributária), judiciais (
personalidade judiciária), etc. No caso dos Serviços Municipalizados cujas receitas cubram mais de 50% dos respetivos custos de funcionamento, claro se afigura o ser atribuída a tais organismos pela legislação financeira pública, para estes específicos efeitos, a dita personalidade parcial, neste caso uma
personalidade financeira pública.
Debrucemo-nos agora sobre as noções jurídicas de
empresa ou
“sociedade mercantil” e de
atividade empresarial ou mercantil.
Quanto à noção de “
empresa”, é sobejamente conhecida a dificuldade de enunciação de uma sua definição geral que possa ser universalmente aplicada em todas as áreas jurídicas. Segundo A. Sousa Franco & G. Oliveira Martins, o conceito de empresa compreende todas as organizações com “
um património autónomo, afeto especificamente à produção especializada de certos bens ou serviços”, que baseiem “
a sua organização na contribuição diferenciada dos fatores de produção”
[34] – reconhecendo os autores no mesmo trabalho, e um pouco adiante, e bem, que
o conceito de empresa vai para além da mera forma societária[35].
Tenha-se ainda presente que os serviços municipalizados, enquanto empresas públicas, dada a sua natureza e estrutura, se reconduzem ao conceito de empresa pública clássica ou institucional (hoje legalmente designada entre nós ao nível estadual, no Regime Jurídico do Sector Empresarial do Estado, por “entidade pública empresarial”).
Não é, pois, essencial ao preenchimento do conceito de empresa o aspeto formal ou jurídico, nomeadamente societário, pela mera remissão para conceitos legais infraconstitucionais ademais privativos de um determinado ramo do direito (designadamente do direito comercial). Como bem observa J. M. Coutinho de Abreu, não pode constituir para tanto um critério seguro e definitivo a distinção que nos é proposta pelo nosso oitocentista Código Comercial, entre atividades económicas sujeitas ao direito comercial e atividades não sujeitas ao mesmo direito – não constituindo sobretudo hoje o critério legal para a qualificação de uma organização produtiva como empresa (com a consequente sujeição ao referido ramo do direito) fixado no século passado um critério racional e justo, mesmo para efeitos do próprio direito comercial
[36]. Não será, por conseguinte, a forma jurídica sob a qual é exercida uma atividade económica, e a concomitante circunstância de se lhe aplicar ou não o direito comercial, o
critério decisivo para enquadrar a mesma atividade como “empresarial”
[37].
Enfim, não nos esqueçamos que a categoria em causa (serviços municipalizados) não é a geral da “empresa”, mas a específica (espécie do género) “empresa pública institucional”; aliás, os SM são hoje o único formato de empresa pública institucional que está ao alcance dos municípios, já que a figura homóloga ao nível local da “entidade pública empresarial” desapareceu do atual regime do setor empresarial local. Acompanhando, uma vez mais, Coutinho de Abreu – agora numa outra sua obra mais próxima desta específica problemática – o cerne do “conceito de empresa (pública), por confronto com a figura do instituto público (na modalidade de estabelecimento público) e com figuras afins (que podem ser organizações produtivas também pertencente ao Estado), está, também a nosso ver, não própria e formalmente no fim (legal e/ou estatutariamente) lucrativo, mas no facto de se tratar (ou não) de uma organização produtiva preordenada a atingir algum equilíbrio entre receitas e custos
[38].
O cerne da questão não está pois na natureza ou finalidade da entidade em causa – ou seja, não é determinante o ter ela ou não, formalmente, um escopo lucrativo, ou apresentar ela (ou não) a designação ou forma societária, ou outro formato empresarial –, mas o facto de se tratar (ou não) de uma
entidade estruturalmente deficitária.
Note-se que Coutinho de Abreu ressalva o poder uma empresa pública reconduzível a este conceito tal qual se acaba de enunciar (de verdadeira empresa), em certos casos, como o que ora se discute – por força nomeadamente de especiais obrigações de interesse público decorrentes da lei ou acordadas com o (ou impostas pelo) Estado ou outro ente matriz territorial (região autónoma ou município) – ter de funcionar deficitariamente
[39].
E aqui a linha vermelha separadora do universo das entidades estruturalmente deficitárias que são insuscetíveis de serem qualificadas como “sociedades” ou empresas “mercantis” (salvaguardada a impropriedade dos termos entre comas), por confronto com as verdadeiras empresas reconduzíveis àqueles conceitos,
pode (deve) ser normativamente fixada com base num critério quantitativo – critério esse que os direitos financeiros públicos comunitário e nacional fazem assentar como vimos na capacidade de o ente em causa cobrir mais de 50 % dos seus custos com receitas próprias.
2.7. Aplicação dos critérios de classificação institucional aos SMTUC
Importa agora proceder à classificação institucional dos SMTUC à luz dos critérios estabelecidos no SEC 95.
Relembre-se que para uma determinada estrutura ou unidade organizacional ser classificada no setor das “Administrações Públicas” (S.13) é necessário que constitua, cumulativamente
[40]: (i) uma unidade institucional; (ii) pública; e (iii) não-mercantil. Importa assim explicitar cada um desses requisitos e verificar se os mesmos se encontram preenchidos pelos SMTUC. Vejamos.
a) Os SMTUC são uma unidade institucional: quase-sociedade (2.13. al. f))
O SEC 95 define “unidade institucional” no ponto 2.12. como “
um centro elementar de decisão económica”, que se caracteriza por “
uma unicidade de comportamento e uma autonomia de decisão no exercício da sua função principal”. Assim,
“[c]onsidera-se que uma unidade residente constitui uma unidade institucional desde que goze de autonomia de decisão no exercício da sua função principal, disponha de uma contabilidade completa ou que seja possível e significativo, tanto de um ponto de vista económico como jurídico, elaborar uma contabilidade completa se tal for necessário.”
Uma unidade goza de
autonomia de decisão no exercício da sua função principal:
“a) Tem direito a ser proprietária de bens ou ativos; poderá, por conseguinte, transacionar a propriedade dos bens ou ativos em operações com outras unidades institucionais”;
b) Tem capacidade para tomar decisões económicas e realizar atividades económicas pelas quais é diretamente responsável perante a lei;
c) Tem capacidade para contrair passivos em seu próprio nome, aceitar obrigações ou compromissos futuros e celebrar contratos.”
Uma unidade possui contabilidade completa se “
dispõe de documentos contabilísticos onde aparece a totalidade das suas operações económicas e financeiras efetuadas no decurso do período de referência das contas e de um balanço dos seus ativos e passivos”.
Quanto aos organismos que não possuem, cumulativamente, aquelas duas características referidas supra (autonomia de decisão mais contabilidade completa), temos de aferir se estão ou não integrados num dos tipos de unidade previstos nas várias alíneas do ponto 2.13. do SEC 95.
Ora, de entre as várias unidades aí previstas constam as “quase sociedades”, que são unidades institucionais que “
dispõem de contabilidade completa, mas não são dotadas de personalidade jurídica”, mas em que, contudo, “
o respetivo comportamento económico e financeiro é diferente do dos seus proprietários e semelhante ao das sociedades”, devendo por isso considerar-se que “
gozam de autonomia de decisão e que constituem unidades institucionais distintas”. Portanto, as quase-sociedades são unidades institucionais “
que têm contabilidade completa e que se considera terem autonomia de decisão” (ponto 2.16. alínea
b)), não obstante não possuírem personalidade jurídica própria.
As “quase-sociedades”, enquanto produtores, podem ser públicas ou privadas consoante sejam ou não, respetivamente, controladas pelas administrações públicas (3.28. e 3.29.).
Importa saber se os SMTUC são ou não qualificáveis como uma unidade institucional (diferente do Município de Coimbra), designadamente se podem ser classificadas como “quase-sociedades”.
Como vimos, os SMTUC são serviços municipalizados para a gestão, sob forma empresarial e industrial, de serviços públicos de interesse local e caráter económico (e mercantil, como veremos), no domínio dos transportes coletivos de pessoas no âmbito da circunscrição do município de Coimbra. Conformam uma verdadeira empresa, dotada de autonomia administrativa e financeira, de órgãos próprios, com competências próprias e capacidade de imputação dos atos, não sujeitos a uma relação de hierarquia perante os órgãos “centrais” do município (designadamente perante a câmara municipal). Constituem assim um património autónomo especificamente afeto a prestação de serviços públicos económicos, cobrando preços que constituem a sua principal receita. Além disso, e no âmbito da autonomia financeira, são dotados de orçamento próprio e de contabilidade própria e completa, isto é, “
dispõe de documentos contabilísticos onde aparece a totalidade das suas operações económicas e financeiras efetuadas no decurso do período de referência das contas e de um balanço dos seus ativos e passivos”
[41] (cfr. artigo 16.º, n.º 3, da Lei n.º 50/2012), o que se pode constatar pela mera análise dos documentos de prestação de contas dos SMTUC
[42].
Pelo exposto, constata-se que os SMTUC, embora não dotados de personalidade jurídica própria, têm efetivamente contabilidade completa, sendo certo que as suas caraterísticas jurídicas e económico-financeiras bem demonstram que o seu comportamento (económico-financeiro) é diferente do dos seus proprietários (o Município de Coimbra) e semelhante ao das sociedades, razão pela qual que se considera que os SMTUC “
gozam de autonomia de decisão e que constituem unidades institucionais distintas” da pessoa coletiva Município de Coimbra (cfr. 2.13. alínea
f) e 2.16. alínea
b)).
Concluindo, os SMTUC são uma unidade institucional distinta do Município de Coimbra, constituindo uma “quase-sociedade”.
b) Os SMTUC são uma unidade institucional pública: quase-sociedade pública
Se é certo que os SMTUC devem ser classificadas como “quase-sociedade”, importa agora determinar se constituem uma unidade institucional pública ou uma unidade institucional privada (neste último caso, teriam de ficar liminarmente excluídos do Setor das “Administrações Públicas”).
As quase-sociedades podem ser produtores públicos ou privados. Nos termos do ponto 3.29. “
os produtores privados encontram-se em todos os sectores, exceto no sector das administrações públicas. Em contrapartida, os produtores públicos apenas se encontram nos sectores das sociedades (não financeiras e financeiras) e no sector das administrações públicas”. Segundo o ponto 3.28. um produtor é um produtor público se for “
controlado pelas administrações públicas”. Ora, sem necessidade de analisar o conceito de controlo, e por tudo o que supra ficou exposto, resulta claro que os SMTUC são um produtor público e, portanto, uma
quase-sociedade pública. Resta agora saber se os SMTUC integram o setor das sociedades (“financeiras” ou “não financeiras”) ou das “administrações públicas”, o que depende da análise do critério da mercantilidade ou não mercantilidade que consiste no designado “critério dos 50%”, que passaremos a analisar já de seguida.
c) Os SMTUC são uma unidade institucional de caráter mercantil: quase-sociedade pública mercantil
Como já deixámos claro, uma unidade institucional pública só é classificada no âmbito do setor das “Administrações Públicas” se não for de caráter mercantil, de acordo com os critérios fixados no SEC 95. Caso tenha caráter mercantil, a unidade institucional pública integrará o setor das sociedades financeiras ou das sociedades não financeiras, ficando, por isso, excluída do âmbito subjetivo de aplicação da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012.
De acordo com o ponto 3.37, os “
produtores públicos podem ser produtores mercantis ou outros produtores não mercantis. Se o critério dos 50% decide que a unidade institucional deve ser considerada como um produtor mercantil, ela é classificada nos sectores das sociedades não financeiras e financeiras”.
Mas em que consiste este critério dos 50%?
A distinção entre produtores mercantis e não mercantis depende de um critério económico (quantitativo): os preços cobrados serem ou não
preços economicamente significativos.
No SEC 95, este conceito (de
preços economicamente significativos) é aplicado com base no
critério dos 50% da cobertura de custos de produção pelas vendas (ponto 3.19).
Se os custos de produção não são cobertos pelas vendas em mais de 50%, a unidade institucional pública considera-se não mercantil, integrando-se, por isso, no sector das
“Administrações Públicas”.
Se for o inverso, ou seja, se os custos de produção forem cobertos pelas vendas em mais de 50%, a unidade institucional é mercantil e, portanto, excluída do setor das “Administrações Públicas”.
Este critério dos 50% assenta, pois, numa relação entre dois conceitos: vendas e custos de produção. Conceitos esses que são definidos no SEC 95.
Com efeito, o conceito de vendas abrange “
as vendas, excluindo os impostos sobre os produtos mas incluindo todos os pagamentos efetuados pelas administrações públicas ou pelas instituições da União Europeia e concedidos a toda a espécie de produtor neste tipo de atividade, isto é, incluem-se todos os pagamentos ligados ao volume ou ao valor da produção, mas excluem-se os pagamentos efetuados para cobrir um défice geral” (alínea
a) do ponto 3.33).
Por sua vez, os custos de produção “
são a soma do consumo intermédio, remunerações dos empregados, consumo do capital fixo e outros impostos sobre a produção” (alínea
b) do ponto 3.33).
Conforme o que se retira do acórdão sob anotação, os SMTUC pediram ao INE
[43] que se pronunciasse sobre a classificação dos SMTUC à luz do SEC 95, com vista a determinar se os mesmos se integravam ou não no setor das “Administrações Públicas”, o que fez por duas ocasiões, nos seguintes termos:
(i) Na primeira resposta (datada de 29.10.2012), o INE comunicou que os SMTUC constituem “uma unidade institucional pública controlada pela AP” e que, para efeito de aplicação do critério dos 50% (cfr. supra), se verifica que os “rácios elaborados a partir dos documentos de prestação de contas da entidade em questão [os SMUTC] para os últimos quatro anos, são superiores a 50% para todos os anos em análise”, pelo que, “[v]erifica-se assim, que os SMTUC são uma entidade mercantil”. Conclui o INE que os SMTUC “devem ser considerados como uma entidade que integra o setor institucional das sociedades não financeiras, pelo que não constam da lista de entidades que integram as AP”;
(ii) Na segunda resposta (datada de 13.11.2012), o INE vem reiterar que “os critérios do controlo e de mercantilidade (…) têm carácter cumulativo, isto é, é necessário que uma entidade cumpra os dois para ser considerada como pertencente às AP”, sendo que no “caso dos Serviços Municipalizados de Transportes Urbanos de Coimbra (SMTUC) estes tinham natureza mercantil, pelo que, para efeitos de contas nacionais, não fazem parte das AP (estão num setor institucional distinto, designado por Sociedades não Financeiras”. E, para além disso, refere ainda que “caso os rácios de mercantilidade da entidade em questão fiquem aquém dos 50% no futuro, então os SMTUC passam a cumprir os dois critérios por nós monitorizados e tal pode, de facto, motivar uma revisão na sua classificação institucional. Nesse caso, os SMTUC figurarão autonomamente na lista publicada no portal do INE”.
A resposta do INE, autoridade em matéria de estatística nacional e dotada dos recursos humanos qualificados e de técnicas e procedimentos adequados nesta matéria, foi clara no sentido de que, de acordo com os documentos de prestação de contas, e tendo por referência um horizonte temporal de quatro anos, os SMTUC devem ser considerados como uma unidade institucional pública de natureza mercantil, pelo facto de mais de 50% dos custos de produção serem cobertos por receitas provenientes de vendas (designadamente, de títulos de transporte).
Assim sendo, forçosa é a conclusão de que os SMTUC são uma unidade institucional pública de natureza mercantil (produtor público mercantil) – o que, consequentemente, impede a sua classificação no âmbito das “Administrações Públicas” e determina, de
per si (considerando todo o exposto supra), o não lhes serem aplicáveis a LCPA e o Decreto-Lei n.º 127/2012.
Mas se não integram o setor institucional das “Administrações Públicas”, caberá perguntar-se em que setor institucional deverão ser eles (SMTUC), afinal, classificados.
d) Os SMTUC são quase-sociedades públicas de natureza mercantil integradas no setor institucional das “Sociedades Não Financeiras” (2.21.) no subsetor das “Sociedades Não Financeiras Públicas” (S.11001)
Atento o tipo de atividade mercantil levada a cabo pelos SMTUC, e sendo certo que não se trata, como sabemos, de uma atividade financeira, temos de considerar que os SMTUC integram o setor das “Sociedades Não Financeiras” (S.2.21.), que “
agrupa as unidades institucionais cujas operações de distribuição e financeiras são distintas das dos seus proprietários e que são produtores mercantis (...) cuja atividade principal é a produção de bens e de serviços não financeiros”.
Ora, reconduzem-se à designação de “Sociedades Não Financeiras” as entidades que são produtores mercantis e cuja atividade principal consiste em produzir bens e serviços não financeiros, sendo abrangidas por esta designação, entre outras, as “
quase-sociedades públicas e privadas que são produtores mercantis principalmente envolvidos em produção de bens e de serviços não financeiros” (2.23., alínea
f)). São designadas “quase-sociedades não financeiras” “
o conjunto de entidades não dotadas de personalidade jurídica que são produtores mercantis principalmente envolvidos na produção de bens e de serviços não financeiros e que obedecem aos requisitos de qualificação como quase-sociedades” (2.24.), merecendo o predicado “públicas” quando pertençam diretamente a administrações públicas (2.29.), como é o caso.
As quase-sociedades não financeiras públicas integram-se no subsetor das “Sociedades Não Financeiras Públicas” (S.11001), no âmbito do setor das “Sociedades Não Financeiras” (S.11).
Pelo exposto, conclui-se que os SMTUC são quase-sociedades não financeiras públicas (S.11001) integradas no setor das “Sociedades Não Financeiras” (S.11).
2.8. Conclusão: a inaplicabilidade da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012 aos SMTUC
Dada a classificação dos SMTUC no subsetor das sociedades não financeiras públicas (S.11001), no âmbito do setor das “sociedades não financeiras”, e tendo em atenção o que se disse quanto ao âmbito subjetivo de aplicação da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012, temos de concluir que os SMTUC não estão sujeitos ao cumprimento da disciplina estabelecida no instituto dos compromissos e dos pagamentos em atraso.
Por isso a alegada inexistência de fundos disponíveis não viola no caso vertente o disposto nos artigos 5.º, n.º 1 da LCPA, 7.º, n.º 2 e 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 127/2012 – pelo simples facto de tais normativos (tal como os próprios diplomas) não serem aplicáveis aos SMTUC, razão pela qual, nesta parte, não existe fundamento para a recusa da concessão de visto ao contrato em apreciação.
Em suma:
— O âmbito subjetivo de aplicação da LCPA e do próprio Decreto-Lei n.º 127/2012 é delimitado tendo por referência tão só as entidades (classificadas ou reclassificadas) que integrem o setor público administrativo, tal como este é definido a partir dos critérios estabelecidos no SEC 95, e que integrem a lista elaborada pelo INE – pelo que todas as demais entidades não identificadas nesta lista e, em todo o caso, que não preencham os requisitos materiais de classificação ou reclassificação estabelecidos no SEC 95, não estão abrangidas pelo âmbito de aplicação da LCPA.
— Incluem-se no âmbito subjetivo de aplicação da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012 os organismos que, independentemente da sua forma e natureza jurídica, tenham sido classificados/reclassificados nos subsetores da administração central (S.1311), regional ou local (S1313), ou da segurança social (S.1314), no âmbito das “Administrações Públicas” (S.13), na definição conforme ao Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais (SEC 95) constante das últimas contas setoriais publicadas pela autoridade estatística nacional (cfr. artigo 2.º da LEO);
— Definição essa que assenta apenas em elementos económico-financeiros de classificação institucional decorrentes de critérios essencialmente quantitativos, de acordo com o regime estabelecido no SEC 95, aqui aplicável por força de sucessivas remissões normativas (do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 127/2012 para o artigo 2.º da LCPA, deste último para o artigo 2.º da LEO e deste normativo para os critérios de classificação institucional estabelecidos no regime de contabilidade nacional que, por sua vez, adota os critérios do SEC 95).
— Tendo por base o edifício normativo contido na SEC 95, para se classificar (ou reclassificar) uma certa unidade organizacional no setor das “Administrações Públicas” (S.13) é necessário que seja, cumulativamente: (i) uma unidade institucional; (ii) pública; e (iii) não-mercantil. A não verificação de um destes requisitos determina, consequentemente, a não classificação da unidade institucional no âmbito do setor público administrativo.
— De acordo com os critérios de classificação institucional estabelecidos no SEC 95, os SMTUC constituem uma unidade institucional pública, diferente do Município de Coimbra, que devem ser classificados como
quase-sociedades públicas, de natureza mercantil, não financeiras, integrados no setor das “Sociedades Não Financeiras” (S.11), no subsetor das “Sociedades Não Financeiras Públicas” (S.11001).
— A não integração dos SMTUC no âmbito do setor das “Administrações Públicas” determina, por si só, a sua não inclusão no âmbito subjetivo de aplicação da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012.
— Pelo que os princípios e as regras estabelecidas na LCPA e no Decreto-Lei n.º 127/2012 não são aplicáveis aos SMTUC, os quais, por isso, não estão obrigados a dar cumprimento aos mesmos.
— Não sendo aplicável aos SMTUC a disciplina do instituto dos compromissos e dos pagamentos em atraso, não é possível invocar a violação dos artigos 5.º, n.º 1 da LCPA, 7.º, n.º 2 e 8.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 127/2012, referente às regras de assunção de compromissos, pelo que, nesta parte, não padece o Contrato de vicio gerador de nulidade que possa constituir fundamento de recusa do visto.
3. Segunda questão: a da inconstitucionalidade ou não dos artigos 2.º da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012 quando interpretados no sentido de abrangerem serviços municipalizados com natureza mercantil
3.1. Breve recapitulação da questão de (in)constitucionalidade das normas legais em causa tal como foi colocada ao Tribunal de Contas e ao Tribunal Constitucional
Da interpretação jurídica das normas dos artigos 2.º da LCPA e 2.º do Decreto-Lei n.º 127/2012 que se vem de fazer decorre forçosamente a conclusão de que, dada a classificação institucional dos SMTUC à luz do SEC 95 e tendo por referência uma interpretação sistemática e teleológica daqueles normativos, se deve considerar que estão os mesmos (os SMTUC) excluídos do âmbito de aplicação subjetivo daqueles diplomas.
De todo o modo, para além de serem os elementos literais e sistemáticos suficientemente fortes e claros para esclarecer, como o desejável grau de segurança e certeza, o âmbito subjetivo de aplicação da LCPA, é de concluir, contrariamente ao decidido pelo Tribunal Constitucional no acórdão sob anotação, pela inconstitucionalidade da interpretação que acabou por vingar, da aplicabilidade da LCPA e do Decreto-Lei n.º 127/2012 aos serviços municipalizados com natureza mercantil.
Como se refere no parecer junto ao processo, a LCPA vem restringir consideravelmente a capacidade de decisão financeira pública, o mesmo é dizer, e no que aos municípios concerne, a respetiva autonomia financeira – fundamental vertente da autonomia local consagrada nos artigos 6.º, n.º 1 e 235.º e seguintes da Constituição.
Não está em dúvida, como é evidente, a conformidade com a lei fundamental deste e de outros diplomas recentes de restrição e contenção da despesa pública, atendendo sobretudo ao “estado de emergência financeira” em que se encontrava o país (e em que, por exemplo, se voltou a encontrar recentemente, mercê da pandemia do SARS-Covid-19).
O problema reside no especial prejuízo que tal entendimento (aliás, infundado, reitere-se, no plano da interpretação da lei ordinária) poderá comportar para os municípios (para a iniciativa económica pública local) – e já não para o Estado e para as Regiões Autónomas (para as iniciativas económicas públicas estadual e regional).
Na verdade, a interpretação do Tribunal de Contas, sufragada pelo Tribunal Constitucional, mais não vem fazer do que, por assim dizer, “castigar” o Município de Coimbra por ter escolhido (ou mantido a escolha), para a exploração do seu serviço público de transportes públicos urbanos, o formato do Serviço Municipalizado, de entre os dois formatos possíveis de que se pode revestir a respetiva atividade empresarial (o formato publicístico do Serviço Municipalizado e o privatístico da Empresa Local constituída ao abrigo da lei comercial e sujeita em primeira linha ao direito privado – cfr. artigo2.º da Lei 50/2012, de 31 de Agosto – Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local).
Com efeito, a vingar este entendimento exclusivamente assente em argumentos conceptualistas puramente tributários do direito da organização administrativa clássico (não do direito financeiro público organizativo), o formato SM está condenado para aquelas atividades empresariais que impliquem a cobrança aos utentes dos bens ou serviços prestados a preços economicamente significativos (como é o caso das tarifas praticadas pelos SMTUC, cujas receitas cobrem por isso mais de 50% dos custos da empresa). É que, deixando a empresa municipal com tal formato de poder beneficiar da margem mínima de manobra (em matéria de gestão de tesouraria) que a lei garante a esta categoria de entidades (ditas “sociedades mercantis”) na gestão corrente da respetiva atividade, então outro remédio não restará aos municípios que não a adoção da forma societária e a sujeição ao direito privado, através do formato “Empresa Local”.
Mas este resultado da interpretação do Tribunal de Contas (depois coonestada pelo acórdão do Tribunal Constitucional sob anotação) não é também a nosso ver constitucionalmente admissível, por contender com a vertente da autonomia organizativa dos municípios objeto igualmente da garantia constitucional.
Na verdade, quase todas as atividades desenvolvidas em setores básicos da economia reservados aos poderes públicos, ao abrigo do artigo86.º, n.º 3 CRP – nomeadamente de produção e prestação de bens e serviços essenciais ou de interesse económico geral – constituem um monopólio legal do poder local, designadamente dos municípios: são, a saber, os casos do abastecimento público de água, do saneamento de águas residuais, da recolha e tratamento de resíduos sólidos urbanos, da exploração dos transportes públicos regulares urbanos e locais de passageiros e da distribuição de energia elétrica em baixa tensão.
Ora, como é de bom de ver, se não está vedada aos municípios a opção pelo formato societário e pela aplicação em primeira linha do direito privado no desenvolvimento destas específicas atividades económico-empresariais, o formato que mais se lhes ajusta é o do serviço municipalizado, desde logo pela titularidade dos poderes públicos municipais que neles (serviços municipalizados) se mantêm na íntegra, sem necessidade de qualquer expressa e específica delegação de atribuições e competências. Não por acaso, note-se, são precisamente as referidas atividades que constituem o objeto normal e típico dos serviços municipalizados, nos termos do n.º 1 do artigo10.º da Lei n.º 50/2012.
Assim sendo, como é que se pode afigurar constitucionalmente legítima – e sobretudo em sede de serviços públicos locais essenciais – uma tal constrição à empresarialização dos serviços públicos locais, sem paralelo ao nível do Estado e das Regiões Autónomas?
Com efeito, esta excessiva e a todos os títulos (sobretudo do ponto de vista material ou substantivo)
injustificada restrição da autonomia económico-financeira e organizativa dos municípios (de escolha do formato organizativo adequado à iniciativa económica municipal em causa) nas sua atividades económico-empresariais mais rentáveis (ou menos onerosas para os cofres municipais) traduz-se, em
ultima ratio, numa violação da garantia institucional da livre iniciativa económica municipal consubstanciada, nos artigos 80.º, al.
b) e
c) e 86.º, n.º 3, e (conjugadamente) artigos 235.º, 237.º e 238.º CRP.
Em suma:
Sem embargo do que se disse
supra, forçosa é a conclusão de que uma interpretação que considera ser aplicável aos serviços municipalizados de transportes urbanos à LCPA e o Decreto-Lei n.º 127/2012, para além de não encontrar qualquer base de fundamentação (pois os elementos literais e sistemáticos são suficientemente fortes e claros para esclarecer, como o desejável grau de segurança e certeza, o âmbito subjetivo de aplicação da LCPA), é inconstitucional por constituir uma excessiva e a todos os títulos injustificada restrição da autonomia económico-financeira e organizativa dos municípios (de escolha do formato organizativo adequado à iniciativa económica municipal em causa), violando como viola a garantia institucional da livre iniciativa económica municipal consubstanciada, nos artigos 80.º, al.
b) e
c) e 86.º, n.º 3, e (conjugadamente) artigos 235.º, 237.º e 238.º CRP.
3.2. Análise crítica da fundamentação do acórdão sob anotação
a) (Re)enunciação do problema de inconstitucionalidade suscitado (e que o TC não almejou apreender)
Bem se vê, pela fundamentação do acórdão sob anotação, que o Tribunal não alcançou o cerne do problema suscitado.
O acórdão começa, no ponto 10, por invocar (e totalmente a despropósito, sublinhe-se), uma sua anterior jurisprudência sobre a prerrogativa dos concessionários do serviço público de telecomunicações em sede de ocupação e utilização de vias de comunicação do domínio público – isto tão só para, abstratamente, salientar o (pelo vistos muito baixo!) “
grau de resistência” da garantia constitucional da autonomia local “
à prossecução de outros interesses públicos que transcendam os específicos interesses comunitários locais que a possam condicionar ou limitar”.
De seguida (no ponto 11) debita o acórdão (e de novo escusadamente) outra generalidade: a de não decorrer da mesma garantia constitucional “
a imunidade dos entes locais a limitações e constrangimentos de índole financeira, nos termos de lei”, desde que “
tais imposições não anulem ou restrinjam arbitrariamente o núcleo essencial da autodeterminação organizativa decorrente do princípio autonómico”.
E destas premissas sumamente genéricas parte, no ponto seguinte (ponto 12)… para a conclusão da inexistência, ou não invocação, pelo município recorrente, das “
concretas regras e princípios que, por conterem imposições excessivas e injustificadas, reduzem injustificadamente a margem de “gestão de tesouraria””! Interroga-se o Tribunal, bem assim, por que razão a sujeição a uma disciplina votada a controlar a assunção de compromissos e a impedir, ou pelo menos reduzir, a geração de pagamentos em atraso, “
põe inexoravelmente em causa a manutenção do modelo de exploração dos serviços municipalizados” em causa (de natureza mercantil). Ao que acresceria, diz ainda o TC, a necessidade de “
demonstrar que os vários instrumentos de gestão de tesouraria que o regime também contém, como sejam o aumento temporário dos fundos disponíveis e a autorização de encargos plurianuais, não permitem resolver os problemas de gestão necessários à realização da missão pública”. E termina o acórdão estas considerações “
relembrando” o não terem sido sequer dirigida pelo município recorrente qualquer “
crítica de desconformidade constitucional, mormente face às exigências do princípio da proporcionalidade em sentido estrito”, ao regime propriamente dito da LCPA e do DL 127/2012, de 21 de junho.
No ponto 13, o Acórdão afirma apoditicamente que “
a aplicação do sentido normativo cuja inconstitucionalidade é impugnada deixa intocado o direito e a capacidade efetiva do recorrente prosseguir livremente a realização das suas atribuições…, optando, em matéria de gestão financeira e administrativa e dentro das soluções legais disponíveis a cada momento, pela estrutura organizativa mais adequada e conveniente à prossecução de tarefas públicas locais”.
Na parte final do ponto 13 e no ponto 14, termina o aresto sob anotação com uma defesa da razoabilidade e da proporcionalidade dos princípios e critérios de gestão consagrados quer no regime dos serviços municipalizados, quer no regime das empresas locais (societárias).
Não prima um tal percurso argumentativo pela pertinência e pela coerência lógica, como se passa a demonstrar, com as seguintes recapitulação e explicitação da problemática subjacente.
b) Recapitulação das premissas da questão colocada
Comece por se ter presente que o regime da LPCA e do DL n.º 127/2012 é um regime útil e necessário, do ponto de vista do controlo da despesa e do endividamento públicos, mas muitíssimo severo para a autonomia de organização e funcionamento da Administração Pública em geral.
Com efeito, estamos perante uma disciplina jurídico-financeira que tornaria impossível a vida aos entes públicos (a todos eles, a começar aliás pelo Estado), passando, aí sim, a linha vermelha da inconstitucionalidade, se não fosse a “válvula de escape” da exclusão do seu âmbito de aplicação das entidades (instrumentais dos referidos entes públicos) consideradas
mercantis, ou seja, com atividade de cariz mais empresarial ou mais “empresarializado”, a saber daquelas cujas receitas próprias (advenientes da venda de bens e/ou serviços) sejam superiores a 50% dos respetivos custos de produção.
Isto porque considera o legislador – e bem – que tais entidades atingem um nível de substancial de autonomia económico-financeira face às fontes de financiamento público direto (às receitas provindas dos cofres do Estado e de outros entes públicos que sobre eles exerçam uma influência determinante, designadamente o controlo da respetiva gestão) que justifica por um lado, e requer por outro (para se manterem como tal), um grau de flexibilidade de gestão incompatível com o regime da LCPA e do DL n.º 127/2012.
A nenhum dos níveis territoriais da Administração – seja ao estadual, seja ao regional/autonómico, seja ao local/municipal – pode, pois, ser negada esta válvula de escape, sob pena de ter que ser posto em causa todo o referido regime à luz da lei fundamental.
c) Dois esclarecimentos prévios
Isto posto, impõe-se dois esclarecimentos prévios.
O primeiro é o residir o critério de exclusão do âmbito subjetivo de aplicação dos referidos normativos de qualquer entidade instrumental sob o controlo da Administração, exclusivamente,
num elemento quantitativo, que é o chamado elemento mercantil, o qual se traduz numa receita resultante da venda de bens ou serviços superior a 50% dos custos de produção de tais bens ou serviços.
E o segundo é o de não ser relevante a existência de personalidade jurídica própria da entidade em causa, podendo por isso ser excluídas do perímetro do dito “Setor Público Administrativo” (no sentido financeiro-público da expressão) as chamadas “quase-sociedades” (por definição destituídas de personalidade jurídica própria), sempre que preencham os pressupostos da mercantilidade (preenchimento esse que leva à sua qualificação como “quase-sociedades não-financeiras”). Importa tão só que se configurem como
unidades institucionais mercantis (ainda que públicas, por via da respetiva sujeição ao controlo de um ente público da Administração), requerendo-se para merecerem tal qualificação (i) que disponham de contabilidade completa e autonomia de decisão, (ii) que o seu comportamento económico e financeiro se desenvolva separadamente do dos seus titulares e seja semelhante ao das sociedades (Ponto 2.1.6, al.
b) do SEC 95).
d) A questão que o TC deveria ter apreciado e decidido – e que não apreciou e não decidiu
Reverificados estes pressupostos (os quais foram de resto esclarecidos e ilustrados até à exaustão, diga-se, pelo município recorrente), a questão colocada ao Tribunal Constitucional (mas que o coletivo de juízes, mesmo assim, não alcançou), é tão-somente a seguinte: a subscrever-se, no plano do direito ordinário, a tese formal, ou formalista (e desarmónica, como vimos, com regime do SEC 95, e, em geral, com o Direito Financeiro Público, cuja lógica se afasta consideravelmente nesta vertente do clássico Direito da Organização Administrativa), de que os normativos em causa (LCPA e DL 127/2012) pressupõem que uma entidade sujeita ao controlo de gestão da Administração, mesmo que de natureza mercantil, tenha ainda que possuir personalidade jurídica própria,
então o formato dos Serviços Municipalizados, enquanto modelo de empresarialização dos serviços públicos alternativo ao da sociedade comercial (da empresa local), traz consigo um novo (e inesperado) limite à autonomia local, reforçando-se consideravelmente nessa hipótese as restrições à autonomia organizativa e de iniciativa económica dos municípios.
Note-se que as alterações ao regime das empresas municipais trazidas pela Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto (RJAEL) já foram,
per se, fortemente limitativas da autonomia organizativa e do direito ou poder de livre iniciativa económica dos municípios. Com efeito, dos três modelos de empresarialização dos serviços públicos à disposição dos municípios, foi eliminado o da empresa pública institucional dotada de personalidade jurídica própria de direito público (“entidade empresarial local”), e isto pelas mesmas razões, à época imperiosas, de “travagem a fundo” da despesa municipal e do endividamento municipal encapotado ou “protelado”.
De facto, e como sublinha o acórdão sob anotação, “o resultado líquido dos serviços municipalizados reflete-se no resultado líquido dos municípios e releva integralmente para o respetivo endividamento”, acrescendo a circunstância de, no formato alternativo da empresa local (societária), ser a responsabilidade dos municípios obrigatoriamente limitada (cf. artigo19.º/6 do RJAEL: “
Apenas podem ser constituídas empresas locais de responsabilidade limitada”).
Ora, e como já acima se sublinhou, a partir da interpretação puramente formal ou formalista dos normativos legais em causa contestada em juízo pelo município de Coimbra, uma empresa municipal com formato de serviço municipalizado, ainda que atinja um nível de substancial de autonomia económico-financeira face às fontes de financiamento público direto (às receitas provindas dos cofres do município), não obstante justificar, por um lado, e requerer por outro (para se manter como tal), um grau de flexibilidade de gestão incompatível com o regime da LCPA e do DL n.º 127/2012, acaba por ter que se submeter por inteiro a este regime.
Os termos empresarialização (de um serviço ou atividade municipal) e empresa (municipal) esvaziam-se de todo o seu significado útil, por já nada de relevante distinguir o serviço municipalizado do mero serviço municipal
E acaba a empresa municipal com formato de serviço municipalizado cujas receitas próprias sejam superiores a 50% dos respetivos custos por ter que se submeter integralmente ao regime da LCPA e do DL n.º 127/2012
sem que nenhuma razão substancial o justifique: na verdade, com a adoção de tal entendimento passa a impender sobre os municípios (mais) esta discriminação negativa, uma discriminação que atinge (apenas) o setor empresarial local, e não também os demais setores empresariais públicos, enquanto arbitrária ou aleatória consequência de tal opção interpretativa.
Afigura-se-nos seguro, note-se bem, o não ter querido o legislador, à época, que toda a legislação restritiva de emergência ou de crise então por si produzida tivesse esta tão pesada consequência para o setor empresarial local. Isto, porque, reitere-se, a nenhum dos níveis territoriais da Administração – seja ao estadual, seja ao regional/autonómico, seja ao local/municipal – pode ser negada a válvula de escape das exclusões do âmbito de aplicação da LCPA e do DL 127/2012, sob pena de ter de ser posto em causa todo o regime destes diplomas legais à luz da lei fundamental.
Dir-se-á, por último, que não; que a consequência não será necessariamente essa, por restar ainda à disposição dos municípios o formato alternativo da empresa local (de tipo societário) – entidade submetida por inteiro (na sua organização e funcionamento, e na respetiva atividade) ao direito privado e ao Código das Sociedades Comerciais. Tendo personalidade jurídica própria, já não sofrerão as empresas municipais, optando os municípios por este formato, as condicionantes inerentes à integral aplicação da LCPA e do DL 127/2012.
Pois bem, é este o nódulo da questão de inconstitucionalidade suscitada. Com efeito, o problema não reside apenas em tal acrescida constrição aos municípios – a de terem apenas à sua disposição (só eles, não o Estado nem as Regiões Autónomas), na prática, um único modelo para o efeito, sempre que quiserem empresarializar um serviço público ou de interesse económico geral capaz de gerar receitas próprias superiores a 50% dos custos de produção sem se sujeitarem ao espartilho da integral aplicação da LCPA e do DL 127/2012.
A principal dificuldade, face à eliminação também em 2012 da figura da “entidade empresarial local”, está sobretudo no consubstanciar esse modelo (o da sociedade comercial)
em termos práticos único para as atividades económicas locais mais empresariais ou mais “empresarializadas” o protótipo da chamada “fuga para o direito privado”, o qual, do ponto de vista dos princípios constitucionais (e como tem salientado a doutrina dominante, entre nós e nos países com sistemas jurídicos mais próximos do nosso), enquanto modelo único de empresarialização dos serviços públicos locais, levanta inúmeros obstáculos e objeções – resultado este da interpretação acolhida pelo Tribunal Constitucional que é, para além do mais, desrazoável.
Com efeito, a haver razão para confinar as escolhas municipais em sede do direito ou poder de livre iniciativa económica a um único modelo de (verdadeira e própria) empresarialização, então esse modelo seria, teria que ser, o da empresa pública institucional (com ou sem personalidade jurídica própria, não sendo – reitere-se – este aspeto relevante para os princípios e objetivos visados pelo direito financeiro público de emergência que constitui o pano de fundo da problemática
sub judicio, como ficou demonstrado à exaustão).
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[2] O âmbito material da LCPA vem definido no seu artigo 1.º, no qual se dispõe que a “
presente lei estabelece as regras aplicáveis à assunção de compromissos e aos pagamentos em atraso das entidades públicas”, o que bem demonstra a amplitude do seu domínio substantivo de aplicação. A referida lei aplica-se, portanto, à (i) assunção de compromissos e à (ii) regularização de pagamentos atrasos de entidades (organismos) que sejam abrangidos pelo âmbito subjetivo de aplicação, tal como definido no seu artigo 2.º. Para efeito da LCPA consideram-se “compromissos” “
as obrigações de efetuar pagamentos a terceiros em contrapartida do fornecimento de bens e serviços ou da satisfação de outras condições” (artigo 3.º, alínea
a) da LCPA). Por seu turno, são “pagamentos em atraso” “
as contas a pagar que permaneçam nessa situação mais de 90 dias posteriormente à data de vencimento acordada ou especificada na fatura, contrato, ou documento equivalentes” (artigo 3.º, alínea
e), da LCPA). A LCPA está assim teleologicamente orientada para a racionalização e controlo dos gastos públicos (com base em critérios de tesouraria) e na regularização dos pagamentos em atraso já existentes cuja operacionalidade se assume numa dupla vertente (i) preventiva, na medida em que “pretende disciplinar a assunção futura de compromissos, entendidos genericamente como obrigações de efetuar pagamentos em contrapartida do fornecimento de bens ou da prestação de serviços” e (ii) numa vertente sucessiva, “no sentido de regularizar os já existentes pagamentos em atraso, nunca os aumento”. Sobre esta matéria, vide, em especial, Joaquim Freitas da Rocha, Noel Gomes & Hugo Flores da Silva,
Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, Coimbra Editora, 2012, pp. 18 e ss. e 31 e ss. A LCPA foi, entretanto, alterada pela Lei n.º 20/2012, de 14 de maio, pela Lei n.º 64/2012, de 20 de dezembro, pela Lei n.º 66-B/2012, de 31 de dezembro e, finalmente, pela Lei n.º 22/2015, de 17 de março.
[3] Neste sentido, por todos, Guilherme d’Oliveira Martins, Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins & Maria d’Oliveira Martins,
A Lei de Enquadramento Orçamental Anotada e Comentada, Coimbra, 2007, em especial a p. 29.
[4] O SEC 95 foi aprovado pelo Regulamento (CE) n.º 2223/96, do Conselho, de 25 de Junho de 1996, alterado pelo Regulamento (CE) n.º 448/98, do Conselho, de 16 de Fevereiro de 1998, pelo Regulamento (CE) n.º 1500/2000, da Comissão, de 10 de Julho de 2000, pelo Regulamento (CE) n.º 2516/2000, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de Novembro de 2000, pelo Regulamento (CE) n.º 995/2001, da Comissão, de 22 de Maio de 2001, pelo Regulamento (CE) n.º 2558/2001, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Dezembro de 2001, pelo Regulamento (CE) n.º 113/2002, da Comissão, de 23 de Janeiro de 2002, pelo Regulamento (CE) n.º 359/2002, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Fevereiro de 2002, pelo Regulamento (CE) n.º 1267/2003, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de Junho de 2003, pelo Regulamento (CE) 1392/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro de 2007, pelo Regulamento (CE) n.º 400/2009, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Abril de 2009 e, finalmente, pelo Regulamento (CE) n.º 715/2010, da Comissão, de 10 de Agosto de 2010. O SEC 95 foi entretanto substituído em setembro de 2014, pelo novo Sistema Europeu de Contas: (SEC 2010), aprovado pelo Regulamento (UE) n.º 549/2013 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 21 de maio de 2013.
[5] Joaquim Freitas da Rocha, Noel Gomes e Hugo Flores da Silva,
Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, Coimbra Editora, 2012, pp. 35 e ss.
[6] Isto é, “
as entidades previstas no artigo 2.º da lei de enquadramento orçamental, aprovada pela Lei n.º 91/2001, de 20 de agosto, alterada e republicada pela Lei n.º 52/2011, de 13 de outubro”. A LEO foi alterada pela
Lei n.º 37/2013, de 14 de junho e pela Lei n.º 41/2014, de 10 de julho.
[7] Neste sentido, Guilherme D’Oliveira Martins, Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins e Maria d’Oliveira Martins,
A Lei de Enquadramento Orçamental, Anotada e Comentada, Coimbra, pp. 29 e 33, e Joaquim Freitas da Rocha, Noel Gomes & Hugo Flores da Silva,
Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso, Coimbra Editora, 2012, pp. 36 e ss. Os requisitos e procedimentos de classificação serão objeto de tratamento específico mais adiante no presente parecer.
[8] Joaquim Freitas da Rocha, Noel Gomes & Hugo Flores da Silva,
Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso…, cit., p. 36.
[9] Integram o subsetor da administração central, nos termos do ponto 2.71, “
todos os órgãos administrativos do Estado e outros organismos centrais cuja competência abrange normalmente todo o território económico, com exceção da administração dos fundos de segurança social”, bem como “
os organismos sem fim lucrativo controlados e financiados principalmente pela administração central e cuja competência abrange a totalidade do território económico”.
[10] Restringindo-se as regras positivadas temos por seguro que a “
interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas de tempo em que é aplicada” (artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil), enunciado que se limita a dar tradução a uma das principais asserções da teoria da interpretação jurídica (ainda que sem a preocupação de aderir às teses objetivistas ou subjetivistas), e que constitui, portanto, um elemento obrigatório de interpretação, impondo assim a consideração da integração de uma norma no complexo sistema normativo e das relações que ela mantém com outras, designadamente com as que regulem a matéria em causa.
[11] Que integra “todas as administrações públicas cuja competência respeita somente a uma parte do território económico, à exceção dos serviços locais de fundos de segurança social”.
[12] “Manual de Apoio à Aplicação da LCPA no subsetor da Administração Local (Lei dos Compromissos)”, DGAL, julho de 2012, p. 2.
[13] Joaquim Freitas da Rocha, Noel Gomes & Hugo Flores da Silva,
Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso…, cit., p. 38.
[14] Cfr. Acórdão n.º 2/2013 do Tribunal de Contas, pp. 20-21.
[15] O conceito de setor público administrativo é definido na LEO com referência ao SEC 95 (por todos, Guilherme D’Oliveira Martins, Guilherme Waldemar d’Oliveira Martins e Maria d’Oliveira Martins,
A Lei de Enquadramento Orçamental, Anotada e Comentada, Coimbra, 2009, p. 29), sendo certo que a LEO possui, como é de entendimento pacifico, valor reforçado, sobrepondo-se, portanto, as leis ordinárias, incluindo aqui, certamente, a LCPA e, consequentemente, o Decreto-Lei n.º 127/2012.
[16] Neste sentido, por todos, Joaquim Freitas da Rocha, Noel Gomes & Hugo Flores da Silva,
Lei dos Compromissos e dos Pagamentos em Atraso…, cit., pp. 39-40.
[18] Neste sentido, entre outros, Maria D’Oliveira Martins,
Lições de Finanças Públicas e Direito Financeiro,
A Lei de Enquadramento Orçamental, Anotada e Comentada, Coimbra, 2011, p.69.
[19] A razão de ser da construção de um conceito financeiro de SPA está bem patente no SEC 95 em cujo ponto 1.10 é referido que “
os conceitos do SEC diferem normalmente, nalguns aspetos, dos conceitos administrativos correspondentes, porque: a) os conceitos administrativos divergem entre os vários países. Consequentemente, não é possível atingir coerência internacional através de conceitos administrativos; b) os conceitos administrativos mudam com o tempo. Consequentemente, não é possível atingir-se comparabilidade no tempo através de conceitos administrativos; Os conceitos subjacentes às fontes de dados administrativos não são habitualmente coerentes entre si. No entanto, a ligação e a comparação de dados, cruciais para a elaboração da contabilidade nacional, só são possíveis mediante utilização de um conjunto coerente de conceitos; d) Os conceitos administrativos, de um modo geral, não são os mais adequados para a análise económica e a avaliação da política económica.”
[20] Para uma síntese, vide, por todos, EUROSTAT,
Manual on Government Deficit and Debt – Implementation of ESA95, Eurostat, 2010, p. 11.
[21] A qualificação/classificação (ou reclassificação) de certa entidade no âmbito do setor público administrativo pelo INE conforma, a nosso ver, um ato administrativo.
[22] Consta da parte introdutória da mesma que as tabelas que a incorporam “contêm a lista retificada das entidades que, em 2011, integravam o Sector Institucional das Administrações Públicas (S.13 nos termos do código do Sistema Europeu de Contas Nacionais e Regionais – SEC 95”, sendo que a “organização dos setores das Administrações Públicas encontra-se definida pelo SEC 95 estando os subsectores devidamente identificados”
[24] O DL n.º 228/2012 foi, entretanto, revogado pelo
DL n.º 36/2023, de 26/05, que procede (a) à reestruturação das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), convertendo-as em institutos públicos de regime especial e âmbito regional e aprova a respetiva lei orgânica em anexo ao presente decreto-lei e do qual faz parte integrante, (b) transfere atribuições de serviços periféricos da administração direta e indireta do Estado para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional, I. P. (CCDR, I. P.), e (c) reestrutura e procede à integração de diversos serviços periféricos da administração direta e indireta do Estado nas CCDR, I. P.
[25] Homologados por Despacho normativo n.º 5/2009, publicado no Diário da República, 2.ª Série, n.º 22, de 2 de Fevereiro de 2009.
[26] Pedro Gonçalves,
Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local, Coimbra, 2012, p. 74.
[27] Lembre-se que, com a entrada em vigor da Lei n.º 50/2012, deixaram de existir as entidades empresariais locais, anteriormente reguladas nos artigos 33.º e seguintes do hoje revogado RJSEL (Lei n.º 53-F/2006, de 29 de dezembro), caraterizadas por possuírem autonomia administrativa, financeira e patrimonial e poderes de autoridade (artigo 35.º do RJSEL). A Lei n.º 50/2012, de 31 de agosto, foi alterada e republicada pela Lei n.º 53/2014, de 25 de agosto, pela Lei n.º 69/2015, de 16 de julho, pela Lei n.º 7-A/2016, de 30 de março, pela Lei n.º 42/2016, de 28 de dezembro, pela Lei n.º 114/2017, de 29 de dezembro, pela Lei n.º 71/2018, de 31 de dezembro, pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março, pela Lei n.º 24-D/2022, de 30 de dezembro, e, finalmente, pela Lei n.º 12/2022, de 27 de junho.
[28] Artigos 174.º do Código Administrativo e 16.º da Lei n.º 50/2012.
[29] Pedro Gonçalves,
Instrumentos de administração municipal (em especial, as empresas municipais), in “Problemas Atuais da Administração Municipal”, Atas do 8.º Colóquio Luso-Espanhol de Direito Administrativo, NEDAL, 2010, p. 195.
[30] Marcello Caetano,
Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra, 1984, p. 348.
[31] Pedro Gonçalves,
Regime Jurídico da Atividade Empresarial Local, Coimbra, 2012, p. 78.
[32] Note-se que estas específicas instâncias jurisdicionais (quer o Tribunal de Contas, quer o Tribunal Constitucional), por vocação – e mais do que quaisquer outras – devem evitar este tipo de raciocínios e apreciações conceitualistas.
[33] Como esclarece Vital Moreira, nos vários níveis de administração encontram-se organismos que apresentam inegáveis individualidade e autonomia nos campos financeiro, organizativo e administrativo, permitindo-lhe tais atributos ter conta própria e orçamento privativo, um património afeto cuja administração lhe compete, a competência para autorizar despesas e pagamentos, para além do gozo de uma autonomia administrativa em sentido estrito, ou seja, consubstanciada no poder de praticar atos administrativos vertical ou competencialmente definitivos (
Administração Autónoma e Associações Públicas, Coimbra, 1997, p. 273 e 274). Ora, sublinha ainda o autor, para essas
complexas organizações (fundo, estabelecimento ou exploração comercial ou industrial) “
foram sendo encontradas soluções que constituem sucedâneos da personalidade jurídica”. Esta figura é objeto da atenção da melhor doutrina administrativista: enquanto na doutrina francesa Auby & Auby falam de “personalidade jurídica limitada” (
Institutions administratives, 6ª ed., Paris, 1991, p. 19), na Alemanha Ernst Forsthoff (
Traité de Droit Administratif Allemand, trad. Michel Fromont, Bruxelas, 1969, p. 697), Hans Wolff / Otto Bachof / Rolf Stober (
Direito Administrativo, 11.ª ed., trad. António Francisco de Sousa, vol. I, Lisboa, 2004, pp. 484-485) e OttoBachof (
Teilrechtsfähige Verbände des öffentlichen Rechts, em AdOR, 83, p. 208-279) acolhem antes, respetivamente, os conceitos de “
capacidade jurídica parcial” (teilrechtsfähige Verbände) e “
capacidade jurídico-pública parcial” (
teilrechtsfähige Verbände öffentlichen Rechts).
Assim, um organismo que a lei e/ou a prática corrente, fazendo
jus a determinados aspetos de estrutura ou regime, referenciem como instituto público (ou estabelecimento público, nas terminologias francesa e alemã) não só não tem que ter necessariamente personalidade jurídica, como pode ter apenas uma
“personalidade parcial” (
teilrechtsfähige Anstalten) e não uma “
personalidade completa” (
vollrechtsfähige Anstalten); a doutrina alemã é neste ponto particularmente clara e explícita: sublinham Wolff, Bachof & Stober (
Verwaltungsrecht, vol. II, 11.ª ed., , Munique, 1987, p. 301) que o conceito de estabelecimento público não supõe a personalidade jurídica, mas tão só “uma certa medida de autonomia jurídico-organizatória (
apud Vital Moreira,
Administração autónoma e associações públicas, Coimbra, 1997, pp. 332 e 333; ver ainda a bibliografia aí indicada).
[34] A Constituição económica…, cit., pp. 196-197.
[35] A Constituição económica…, cit., p. 208.
[36] Da empresarialidade (as empresas no direito), Coimbra, 1996, pp. 96-97. Note-se sobretudo o hiato que hoje se verifica entre o restrito e formal conceito de empresa que nos oferece o oitocentista Código Comercial, e o cada vez mais importante conceito comunitário de empresa, como se sabe amplíssimo.
[37] Por exemplo, uma empresa agrícola, desde que seja qualificável como empresa pela aplicação dos critérios económicos e organizacionais a que a aceção comum ou corrente do conceito faz apelo, e ainda que não revista a forma de sociedade comercial, nem por isso deixará de ser considerada como “empresa” para o direito em geral.
[38] Definição de Empresa Pública, Coimbra, 1990, pp. 147 e ss. (ponto 1.5.2., “Atividades essencialmente deficitárias, empresas públicas e institutos públicos”).
[40] Para uma síntese, vide, por todos, EUROSTAT,
Manual on Government Deficit and Debt – Implementation of ESA95, Eurostat, 2010, p. 11.
[41] Estabelecia o artigo 174.º do Código Administrativo que a escrituração dos serviços municipalizados devia ser “
montada nos moldes da contabilidade industrial”, embora seja certo que, atualmente, a organização da contabilidade dos serviços municipalizados terá de obedecer as regras do POCAL, e ser os documentos de prestação de contas ser publicitados na Internet, conforme dispõe o artigo 16.º, n.º 3 da Lei n.º 50/2012.
[43] De acordo com o Decreto-Lei n.º 136/2012, de 2 de julho, o INE é um instituto público de regime especial que assume a qualidade de autoridade estatística nacional, com jurisdição sobre todo o território nacional, que desenvolve a sua atividade com base em metodologias cientificamente sólidas e adequadas, tendo por missão a produção e divulgação de informação estatística oficial, promovendo a coordenação, o desenvolvimento e a divulgação da atividade estatística nacional, e sendo o interlocutor nacional junto da Comissão Europeia (Eurostat) para fins estatísticos no âmbito do Sistema Estatístico Europeu (artigos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º do Decreto-Lei n.º 136/2012). Compete-lhe, designadamente, produzir informação estatística oficial, com o objetivo de apoiar a tomada de decisão pública, privada, individual e coletiva, bem como a investigação científica; e elaborar as Contas Nacionais Portuguesas, em articulação com as demais entidades competentes, assegurando o cumprimento das obrigações nacionais no quadro do Sistema Estatístico Europeu, designadamente no que se refere ao Procedimento dos Défices Excessivos (artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 136/2012). Para além disso, cumpre salientar que as entidades sujeitas ao âmbito de aplicação do Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais (POCAL) são obrigadas a remeter ao INE, até 30 dias após a sua aprovação, os documentos de prestação de contas, conforme resulta do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 54-A/99, de 22 de fevereiro, que aprova o POCAL.