ANO 2024 N.º 1

ISSN 2182-9845

Editorial

Horácio Correia Pinto

A acelerada mudança da sociedade e as suas limitações jurídicas e metodológicas. Um Estado Judicial - Realidade, desafio ou absurdo

A crescente velocidade/mudança nas sociedades modernas como problema jurídico metodológico. O aparecimento de lacunas jurídicas-legais
À não denegação de justiça, não pode corresponder uma margem de discricionariedade judicial que vá para lá da simples interpretação e aplicação da lei, incluindo a lei constitucional. São inúmeras as matérias que no espaço da UE (União Europeia) não estão devidamente legisladas e suscitam respostas adequadas dos tribunais:
a) A internacionalização das relações económicas;
b) A globalização analisada numa perspectiva transversal, designadamente as alterações climáticas e necessidade de protecção do meio ambiente;
c) A vertente demográfica na inter-relação entre o mundo ocidental e os países mais desfavorecidos. A movimentação demográfica em todos os continentes, principalmente na África, Américas e Ásia. A procura do velho mundo e não só;
d) Os sistemas de comunicação, telecomunicações e os novos meios, incluindo a inteligência artificial;
e) Os inconvenientes tecnológicos e a sua repercussão no mundo do trabalho. A nova dimensão da relação laboral - o conhecimento como criação de uma mais-valia, um valor acrescido;
f) As mudanças no sistema de instrução. Qual a formação mais adequada para dar resposta aos novos desafios;
g) Uma nova consciência cultural. Uma nova representação dos valores culturais.
Esta informação sobre matérias tão vertiginosas, não traz nada de novo e sempre existiu — cessante ratione legis, cessat lex ipsa — cessando o motivo da lei, cessa a própria lei. A lei perde a sua validade, daí que rebus sic stantibus — mantendo-se assim as coisas!
Acontece é que aquela aceleração é mais intensa no mundo hodierno, mais precisamente desde o fim do século passado. As mudanças da sociedade; globalização, demografia (migrações); novos bens tecnológicos, económicos e culturais conduzem a problemas e conflitos completamente novos.
A Constituição deve sempre procurar responder a estes novos desafios, ainda que servindo-se do quadro de revisão e seus limites materiais (cláusula pétrea).
O direito constitucional como ramo base (fundamental) de direito deve estar pronto a dar resposta a todas as perguntas. Os tribunais comuns e o tribunal constitucional podem dar resposta satisfatória perante todas as lacunas da lei e até em casos onde há um vazio legal — rechtsleererraum. Há um conjunto de comportamentos que o direito não toma absolutamente em consideração e por isso são juridicamente irrelevantes ou indiferentes. O que não está expressamente proibido pelo direito positivo, cai no âmbito da liberdade natural préjuridica e é permitido. Conceito diferente da integração — lacunas jurídicas — que podem ser colmatadas criando-se uma norma de caso, com metodologia própria. A situação portuguesa, sobre esta matéria, é pouco expressiva no contexto internacional. Diplomas mais recentes (Constituição e códigos) evitaram, nestes casos, maior labor jurisprudencial. A função jurisprudencial desenvolve-se com normalidade, salvo pequenas intermitências. Contudo, há países como Alemanha e França que nunca disciplinaram determinadas matérias e sempre foram dando resposta às questões colocadas pela sociedade. Naqueles países a resposta foi sempre veiculada pelos tribunais, que funcionaram, muitas vezes, como legisladores substitutos — estes tribunais superiores tendem a substituir a lei pelas suas próprias concepções de justiça. A situação ultrapassa a norma de caso para se converter em novíssima interpretação do ordenamento jurídico.
Certamente a ideia de codificação está parcialmente ultrapassada mas a resposta não pode subverter o Estado de Direito, a tradicional separação de poderes. Há ramos de direito mais vulneráveis a estes procedimentos, grande parte do direito privado e algum direito público, contudo o direito penal continua a figurar como excepção, mesmo assim com algumas reservas. Mesmo neste ramo de direito há interpretações do Tribunal Constitucional nacional (TC) que suscitam acalorado debate. Recordo a interpretação do artigo 254.º, n.° 1, alínea a), do CPP — prazo de detenção — interpretado pelo TC como prazo que decorre entre a detenção e a apresentação ao juiz, e não até à decisão sobre a validade da detenção. Ou o caso do reexame dos pressupostos da prisão preventiva previstos no artigo 213.º do CPP. O que se entende (n.° 3): sempre que necessário o juiz ouve o MP e o arguido. Ou que dizer da remissão para despacho anterior onde já foi avaliada periodicamente a prisão preventiva... Ou matérias como, a dos requisitos gerais para aplicação da medida de coacção e ainda a controversa perda alargada como verdadeiro confisco... Temas que continuam a suscitar grande debate. Acontece que no direito penal, os princípios da legalidade e tipicidade funcionam como limites à interpretação extensiva e analogia legis. Os limites para fundamentar esta pretensão ou agravar estão sempre proibidos.
A interpretação e integração da lei estão previstas no Código Civil (artigos 9.º e 10.º) e vão sendo aplicadas nos outros ramos de direito, com evidentes especificidades, como por exemplo prevê o artigo 4.º do CPP. A integração em Portugal não é preocupante. Os casos decididos por analogia iuris são frequentes, enquanto a analogia legis é menos comum.
 
Do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, quando a questão de direito (decisão) assentar em soluções opostas
O objectivo da lei traduz-se nos princípios da unidade, certeza e segurança jurídicas. A sua estrutura assenta no âmbito da primitiva Lei de Autorização Legislativa, n.º 43/86 de 26 de Setembro. Posteriormente esta matéria ficou codificada. A matéria prende-se com a natureza dos velhos assentos (força obrigatória geral) e da sua legitimidade como fonte de direito (inconstitucionalidade), daí que o legislador, no actual Código de Processo Penal, tivesse estabelecido regras (artigo 445.º do CPP) muito apertadas quanto à eficácia desta decisão: a decisão que resolver o conflito tem eficácia no processo em que o recurso foi interposto... A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão. A tudo isto, acresce que os recursos no interesse da unidade jurídica podem ser modificados (artigo 447.º do CPP) quando a jurisprudência estiver ultrapassada (reexame). O direito civil também permite recurso, para uniformização de jurisprudência (artigo 688.º e seguintes do CPC)...
Esta matéria embora sob grande discussão noutros países da Europa, nem sempre teve o mesmo tratamento e cuidado que em Portugal. Não raras vezes em países onde a doutrina e jurisprudência obedecem a cuidado labor, os tribunais são frequentemente alvo de ataques por atrevimento na criação de um novo conceito de direito; uma nova teoria das fontes de direito; uma nova metodologia. Na circunstância alguns tribunais superiores, incluindo o Tribunal Constitucional Alemão, bem como o Tribunal de Justiça da EU — aqui por razões mais evidentes — e o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tratam matérias (criação de normas) inovando, o que levou, num passado recente, a grandes fricções entre a visão continental e a visão anglo-saxónica, conceptualmente distintas. A doutrina alemã tem chamado atenção (actualmente) para esta Revolução Secreta com a directa participação de um Estado Judicial. Há matérias não disciplinadas que continuam a ser decididas pelos tribunais superiores — resolução de conflitos de interesses não regulados pela lei. O que se compreende pela expressa proibição de denegação de justiça, não obstante todas as limitações impostas.
Ficamos entre o elogio e o perigo de desejos incontidos. A memória histórica sobre a Alemanha recorda facilmente o tratamento dado a muita legislação do Estado de Weimar, no decorrer do Estado Nacional-Socialista. Recorda o nefando contributo dos tribunais da época e de certa doutrina (Theodore Maunz, Carl Schmith e Karl Larenz) na procura de soluções conformes aovoksgeist (renovação jurídica popular como fonte de direito). O Estado Nacional-Socialista não tinha Constituição escrita. Como também recorda a DDR-Républica Democrática Alemã (1949-1990) e a procura da legalidade socialista em nome do Partido Socialista Unificado...
Os métodos de interpretação e integração têm de estar rigorosamente definidos na lei, os tribunais não são livres na eleição desses métodos. O Tribunal Constitucional de Portugal julga recursos restritos à questão da inconstitucionalidade ou da ilegalidade, conforme os casos (artigo 280.º, n.° 6, da CRP), no exercício da fiscalização da constitucionalidade concreta (das decisões dos tribunais) mas não dispõe de um acervo de normas constitucionais para estabelecer o método de interpretação e integração, matéria entre nós ordinariamente codificada, nos termos supra referidos. Não obstante o TC pratica um exercício normal e corrente de interpretação das leis ordinárias e constitucionais... A questão parece ser bem mais séria em países como por exemplo USA, Brasil e Alemanha. A estrutura destes tribunais prende-se com a sua origem, modo de funcionamento e da própria conformação política. Nos Estados Unidos os 9 (nove) juízes são nomeados pelo Presidente e confirmados com um voto de maioria do Senado - o tribunal interpreta e decide questões relativas à lei federal, incluindo a própria Constituição. Os poderes da Suprema Corte são amplos e estão definidos na Constituição norte-americana (Secção 1 e 2) — todos os casos de aplicação da lei e de equidade em matéria constitucional; leis estaduais; tratados e muitas outras atribuições previstas nestas normas... Tem jurisdição originária e decidem em grau de recurso final (revisão), pelo que o seu poder de interpretação é vasto e transversal. Em muitos casos um verdadeiro poder legal.
No caso do Brasil, o Supremo Tribunal Federal é um órgão de cúpula do poder judiciário e tem por função primordial a salvaguarda da Constituição. Os 11 juízes são nomeados pelo Presidente da República e confirmados mediante maioria absoluta do Senado Federal. Por emenda n.° 45/2004 o Supremo Tribunal Fedpode emitir sumulas vinculantes (mediante sufrágio de 2/3 dos seus membros) para os demais órgãos do poder judicial, bem como à própria administração pública. A súmula vinculante tem carácter obrigatório, bem diferente do caso precedente — fixação de jurisprudência — que não tem obrigatoriamente de ser seguido. O Tribunal Constitucional Federal Alemão (1951) foi criado pela Lei Fundamental Alemã (grundgesetz) e tem por função o cumprimento da ordem constitucional. As duas salas, constituídas (cada uma) por 8 (oito) juízes, com mandato de 12 (doze) anos (8 eleitos pelo Parlamento — Bundestag — e a outra metade pelo Conselho Federal Alemão — Bundesrat) decidem sobre a constitucionalidade das decisões, para lá dos direitos fundamentais dos cidadãos, designadamente sobre direitos e obrigações dos restantes órgãos constitucionais. As decisões são vinculantes para os demais órgãos constitucionais, bem como para a sociedade em geral. A relevância da decisão do Tribunal Constitucional Alemão é não só muito importante para os órgãos judiciais, como políticos...
A maior parte dos tribunais superiores da UE estão confinados à estrita actividade jurisprudencial. A transformação da sociedade através do ordenamento jurídico, em particular da própria Constituição, é tarefa dos órgãos legislativos legitimados democraticamente pelo Estado de Direito.
Qualquer tentativa de fortalecer o Estado Judicial, sacrificando o Estado de Direito, advém de uma crise de regulação do Estado.Há emergências na actualidade que perpassam o Estado de Direito vigente e constituem um sério desafio para futuro. 
— Enfraquecimento do modelo democrático consequência de crises políticas sucessivas que por sua vez fragilizam a democracia constitucional, na sua dimensão substancial/jurídica. Muitas das vezes a crise política permite colocar em causa a democracia representativa, os partidos e a própria génese do modelo (alternância). O descrédito do agente político repercute-se a nível superestrutural, e também ao nível de base, das organizações económicas, financeiras e laborais (empresas). A desregulação de parte da comunicação social; a procura do politicamente correcto e a influência de alguns grupos entretanto fortalecidos, em nome de um ideário populista, debilitam a organização do Estado e necessariamente do poder judicial.
— A origem e consequências demográficas colocam grandes desafios às sociedades ocidentais, nomeadamente à UE.
A pobreza, guerra, analfabetismo e falta condições nos países de origem, aliada à necessidade dos países hospedeiros em manter um exército de mão-de-obra barata, para dar saída à ocupação de actividades laborais indiferenciadas, criaram antagonismos culturais, religiosos, políticos, hoje praticamente em todos os países da Europa. O tratamento político (desajustado) desta matéria é preocupante, permitindo culturas e tentativas de práticas xenófobas, alheias ao multiculturalismo.
A chegada dos novos bárbaros tem repercussões jurídicas: no domínio da legalização, nacionalidade e integração ... com todas as consequências que daí derivam.
— A guestão ambiental.
O aparelho produtivo e as necessidades emergentes têm consequências no meio ambiente e levam a repensar a organização política, social e económica. Continuar ou sobrevivei...
— A aparente inevitabilidade dos conflitos bélicos como instrumento adverso à democracia, à participação, à convivência e cooperação. As propostas alternativas e o novo modelo de regime. Os desequilíbrios e confrontos: um novo ideário que pode questionar conceitos tão simples e fundamentais como liberdade, igualdade e segurança...
— A globalização, a internacionalização das relações económicas e financeiras e a pressão demográfica potenciaram estruturas de criminalidade organizada e criminalidade transnacional. A capacidade de contágio e condicionamento propagaram-se aos poderes instituídos. Os novos desafios vieram colocar o aparelho judicial à prova, exigindo renovação e condições materiais, designadamente recurso às novas tecnologias.
A perspectiva traçada em linhas gerais é um processo endógeno e exógeno: depende do funcionamento e da actividade judicial, sem prescindir de analisar a conjuntura.
Apesar destes comportamentos e consequente mediatização, parece evidente que o sistema vai caminhando titubeante, embora cumprindo a sua função.
Resulta evidente que o poder judicial está sistematicamente confrontado, a que não é estranha a sua condição funcional e emergência de medidas.
Acreditamos ser importante que o poder judicial suscite algumas interrogações como meio de dar respostas mais eficazes.
a) O que pensa a sociedade civil dos tribunais, concretamente da função judicial;
b) Acredita na justiça quando um processo decorre por largos anos;
c) Quanto custa ao Estado um processo (especial complexidade) que se protela no tempo por um longo prazo;
d) A função da administração de justiça e a presunção de inocência compadecem-se com estas delongas;
e) Justificam-se duas jurisdições: administrativa e comum;
f) O exercício da magistratura por tempo indeterminado no mesmo local viola a ideia de juiz natural;
g) As novas tecnologias, designadamente a inteligência artificial, podem dar resposta a grande parte das questões colocadas.
As respostas podem ser várias e algumas delas certamente merecerão séria reflexão, porém as perguntas correspondem sempre à interrogação do cidadão leigo, anónimo, mas atento, que deve ser esclarecido e por vezes até persuadido...