ANO 2023 N.º 1

ISSN 2182-9845

Editorial

Rui Pinto Duarte

A ideia de equilíbrio contratual

Na literatura jurídica, a ideia de equilíbrio contratual está longe de ser unívoca, o que, naturalmente, contribui para o desencontro de opiniões acerca da mesma. De resto, algumas das exposições manualísticas sobre contratos nem lhe fazem referência, exceto a propósito da “alteração de circunstâncias”. Nos textos conjunturais, o recurso à ideia torna-se mais frequente nas épocas de crise, como a económico-financeira de 2007/2008 e a sanitária iniciada em 2020.
Embora o tema seja dos que podem suscitar milhares de páginas, algumas reflexões breves a seu propósito, em jeito de sumário, poderão ser úteis — mesmo que tomando por referência (quase) apenas o direito português. Esclareço que estou do lado dos que defendem que no mundo dos contratos de direito privado (só desses me ocupo) vigoram muitos preceitos que permitem afirmar a existência de um princípio de equilíbrio contratual. 
Para fundamentar a tese, há que começar por esclarecer que ela não significa a vigência de uma regra segundo a qual as prestações emergentes dos contratos devem ter valor igual ou aproximado. Longe disso. “Princípio”, para o efeito em causa, significa uma diretriz do sistema jurídico, manifestada em diversas normas, não uma norma entendida como um comando que liga uma certa estatuição à previsão de uma certa situação da vida. Uma tal diretriz resulta da análise do sistema jurídico, entrando na sua descrição, mas é também elemento a ter em conta na aplicação do direito, i.e., no achamento da regulação de casos, sobretudo dos difíceis. 
Posto o esclarecimento, passe-se a explicar porque se dá prioridade ao plano do contrato sobre o das obrigações ou o das prestações, seu objeto. Duas razões há para tanto: o equilíbrio não se manifesta apenas entre obrigações ou prestações, mas também noutros aspetos, como se verá, e a compreensão integral da relação entre obrigações ou prestações implica o conhecimento da sua origem.   
Entrando no âmago do tema, um novo esclarecimento se impõe, aprofundando o feito acima: equilíbrio, no caso, não implica peso igual, mas tão-só limitação da diferença de pesos! As normas que baseiam o princípio não impedem que haja desigualdade: apenas tornam ilícitas desproporções chocantes.   
Continuando, há que desenvolver algo que já atrás ficou quase dito: o equilíbrio como princípio respeita ao contrato como um todo, não apenas à relação entre as prestações principais.
Tal fica claro sublinhando que o princípio se manifesta em todos os momentos da contratação: primeiro, na definição do conteúdo do contrato, depois, na execução do contrato, e ainda nas eventuais fases de alteração ou desvinculação unilateral (por resolução, declaração de nulidade ou anulação).
Isso mesmo se pode observar durante um percurso pelo código civil — de que, por razões de brevidade, citarei artigos sem referir conteúdos. 
Exemplos da manifestação do princípio na definição do conteúdo do contrato constam dos arts. 237.º, 239.º, 282.º, n.º 1, 400.º, n.º 1, 883.º, n.º 1, parte final (amplificado pelo 939.º), 992.º, n.ºs 1 e 3, 993.º, e 1158.º, n.º 2, parte final (amplificado pelo 1156.º).
Exemplos da manifestação do princípio na execução do contrato constam dos arts. 428.º, n.º 1, e 762.º, n.º 2.  
Exemplos da manifestação do princípio nas eventuais fases de alteração ou desvinculação unilateral constam dos arts. 252.º, n.º 2, 289.º, n.º 1, 290.º, 434.º, n.º 2, 437.º, 793.º, n.º 1, 795.º, n.º 1, 801.º, n.º 2, 802.º, n.º 1, 812.º, n.º 1, 815.º, n.º 2, segunda parte, 884.º (amplificado pelo art. 939.º), 935.º (amplificado pelo 936.º, n.º 1), 1040.º, n.º 1, e 1229.º.
Muito relevante é chamar a atenção para que várias normas de direito público também projetam efeitos de equilíbrio nos contratos de direito privado. Sirvam de exemplos o art. 11.º, n.º 2, alínea a), da Lei da Concorrência (que, ao regular o abuso de posição dominante, proibindo a exploração abusiva, por uma ou mais empresas, de uma posição dominante no mercado nacional ou numa parte substancial deste, estabelece que pode ser considerado abusivo, nomeadamente, “Impor, de forma direta ou indireta, preços de compra ou de venda ou outras condições de transação não equitativas”) e os preceitos do Código de Valores Mobiliários que regulam a intermediação excessiva e os benefícios ilegítimos recebidos ou pagos a terceiros (mormente, os arts. 310.º e 313.º -B).
Se passarmos para o plano das cláusulas contratuais gerais e dos contratos de adesão (Dec.-Lei 446/85, de 25 de outubro), a intensidade das manifestações do princípio acentua-se. 
Nas regras gerais desse diploma, destaquem-se as dos arts. 9.º, n.º 2, e 14.º, ambos fazendo referência a desequilíbrio das prestações gravemente atentatório da boa fé
Nas regras do diploma dedicadas em especial às relações entre empresários ou entidades equiparadas, sirva de exemplo o art. 19.º, ao determinar, nas alíneas b)c)f)g) h), que, são proibidas, “consoante o quadro negocial padronizado”, as cláusulas gerais que “estabeleçam, a favor de quem as predisponha, prazos excessivos para o cumprimento, sem mora, das obrigações assumidas”, “consagrem cláusulas penais desproporcionadas aos danos a ressarcir”, “coloquem na disponibilidade de uma das partes a possibilidade de denúncia imediata ou com pré-aviso insuficiente, sem compensação adequada, do contrato, quando este tenha exigido à contraparte investimentos ou outros dispêndios consideráveis” e “consagrem, a favor de quem as predisponha, a faculdade de modificar as prestações sem compensação correspondente às alterações de valor verificadas”.
As regras do diploma dedicadas em especial às relações de consumo mostram nova acentuação da intensidade do princípio (até porque neste plano o princípio tem base no art. 60.º, n.º 1, da Constituição, no segmento que refere que os consumidores têm direito à proteção dos seus interesses económicos). Sirva de exemplo o art. 22.º, n.º 1, nas alíneas d)e) e m): nas relações com consumidores finais, são proibidas, “consoante o quadro negocial padronizado”, as cláusulas gerais que “estipulem a fixação do preço de bens na data da entrega, sem que se dê à contraparte o direito a resolver o contrato, se o preço final for excessivamente elevado em relação ao valor subjacente às negociações”, as que “permitam elevações de preços, em contratos de prestações sucessivas, dentro de prazos manifestamente curtos, ou, para além desse limite, elevações exageradas (…)” e as que “estabeleçam garantias demasiado elevadas ou excessivamente onerosas em face do valor a assegurar”. 
Se espraiarmos os olhos para os regulamentos, também aí encontramos claras manifestações do princípio, sobretudo no tocante a relações de consumo. Bom exemplo (e adequado à Revista Electrónica de Direito!) é a Portaria 284/2022, de 28 de novembro, que, em execução da Lei 16/2022, de 16 de agosto (Lei das Comunicações Eletrónicas) estabelece uma “Plataforma de cessação de contratos”, que permite aos consumidores “titulares de contratos de comunicações eletrónicas” “submeter” pedidos de informações contratuais, de suspensão de contratos e de cessação de contratos de comunicações eletrónicas — procurando facilitar os contactos entre consumidores e prestadores desses serviços.
Esta não é ocasião para demonstrar que o que vale para o direito português vale para a generalidade dos sistemas jurídicos com que vulgarmente comparamos o nosso e para os instrumentos de soft law de maior prestígio internacional. É, porém, irresistível enunciar dois indícios, ambos de direito francês, relativos a lugares diferentes desse ordenamento: o art. 1171 do Code Civilestabelece hoje que “Dans un contrat d'adhésion, toute clause non négociable, déterminée à l'avance par l'une des parties, qui crée un déséquilibre significatif entre les droits et obligations des parties au contrat est réputée non écrite”, acrescentando que “L'appréciation du déséquilibre significatif ne porte ni sur l'objet principal du contrat ni sur l'adéquation du prix à la prestation”; o Code de Commerce, ao regular as práticas restritivas da concorrência, na sua versão atual, estabelece no art. L442-1, I, que “Engage la responsabilité de son auteur et l'oblige à réparer le préjudice causé le fait, dans le cadre de la négociation commerciale, de la conclusion ou de l'exécution d'un contrat, par toute personne exerçant des activités de production, de distribution ou de services: […] 2° De soumettre ou de tenter de soumettre l'autre partie à des obligations créant un déséquilibre significatif dans les droits et obligations des parties”.
Como todos os princípios, o do equilíbrio contratual não se aplica numa lógica de “tudo ou nada”, antes vale gradativamente e de forma coordenada com os demais elementos do sistema jurídico, nomeadamente com os outros princípios, incluindo os com ele potencialmente contraditórios, a começar pelo essencialíssimo pacta sunt servanda. A sua existência parece, em qualquer caso, difícil de negar.


[Rui Pinto Duarte é Professor Catedrático da Escola de Lisboa da Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa e Advogado]