ANO 2021 N.º 3

ISSN 2182-9845

Editorial

Maria Regina Redinha /Maria Raquel Guimarães

Clima estável: a urgência de um direito, a propósito do caso Milieudefensie et al. v. Royal Dutch Shell

1. O reconhecimento do direito a...
A preocupação social e individual com a questão ambiental e com as suas múltiplas dimensões tem já largas décadas de existência e, por conseguinte, vão-se acumulando estratos sedimentares na sua construção jurídica, sem que, verdadeiramente, possamos reconhecer um instrumento que, no plano macro ou micro jurídico da estrutura normativa se possa reconduzir à ideia de direito a... 
Com efeito, o direito subjectivo é a única formulação jurídica que permite a afirmação de uma situação de prevalência de determinado interesse e que está apta a ser imediatamente mobilizada para tutela efectiva pelo ordenamento jurídico. Ter direito é ter santo e senha para reconhecimento da posição primacial do seu titular face aos demais sujeitos e para com isso aceder à protecção preventiva e repressiva do Direito. 
No entanto, um direito não é uma realidade a se, salvo talvez para alguns jusnaturalistas extremes, nem sequer voluntarística ao serviço de um qualquer projecto pessoal ou social, como tragicamente a História se encarrega de nos elucidar. Os direitos são para o que servem, como tudo o que o homem faz na sua relação com o mundo exterior, e servem, precisamente, para protecção de bens jurídicos que o Direito transmuda tecnicamente em objectos. 
Deste modo, se queremos percorrer a via de um Direito que o seja em matéria de protecção e reconversão ambiental temos necessariamente que revisitar a própria ideia de objecto de direito e nela descobrir o quid que nos permita estruturar um direito que possa cumprir a funcionalidade que a realidade solicita.
O que faz então de um qualquer bem, um bem jurídico? A resposta é simples, não obstante a sua pulverização teórica: a universalidade e a democracia da consciência ético-jurídica. A interpelação pelo colectivo, a vontade de que assim seja para que se cumpra uma finalidade que ultrapassa o indivíduo, a tribo, o grupo, a nação e de que se faça valer a sua afirmação como cânone através do selo da juridicidade pela sua instante necessidade. 
Ora, esse tempo chegou à questão ambiental, (ontem, anteontem, quiçá?), se bem que nem sempre muito claramente reconhecido, como sempre acontece quando se intenta a ordenação-criação. Temos as peças, mas temos dificuldade no jogo da sua montagem e temos essas peças há demasiado tempo. Na ordem jurídica portuguesa podemos, inclusive, reclamar a positividade inequívoca desse reconhecimento ao artigo 66º da versão original da Constituição da República de 1976, se bem que ainda na forma de start-up jurídica que são as normas programáticas. Mais recentemente, podemos igualmente corroborar o amadurecimento da preocupação com a referência ao direito do consumidor “à protecção ambiental e ao consumo sustentável”, na Proposta de Lei 915/XIV/2.ª, de 20 de Julho de 2021. 
Evolução que no plano internacional pode, do mesmo modo, ser rastreada até à proclamação do direito humano a um ambiente seguro, limpo e saudável na Resolução 48/13, de 8 de Outubro de 2021, do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas.
Reconhecida a imperiosa necessidade de um direito operacional sem recurso a referências indeterminadas e difusas impõe-se, a nível da sua titularidade individual, delimitar o seu objecto, tarefa que metodologicamente se cumpre com a importação do dado pré-jurídico fornecido pelo melhor estado da ciência.  
Uma proposta consistente será, porventura, fazer entrar na camera obscura do Direito a noção de clima estável ­— manifestação de um padrão de funcionamento estável e definível do Sistema Climático, dentro dos limites de variabilidade natural que foi observada após a última glaciação (período do Holoceno), e que resultou numa biodiversidade funcional rica (in Recomendação sobre uma Lei do Clima do CNADS, Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável). Noção que passa o crivo da mais estrita técnica jurídica, pois, não obstante a sua intangibilidade, assenta numa fisicalidade mensurável que lhe confere determinação objectiva e pulsão concretizadora. O Direito tem, de resto, uma experiência secular no tratamento de bens intangíveis — Et quidem naturali jure communia sunt omnium haec: aer, aqua profluens, et mare et per hoc litora maris (Institutas, II, I, §I) — e cada vez mais aperfeiçoa um instrumentário flexível de adaptação (conceitos indeterminados, cláusulas gerais, “recomendologia”, códigos de boas práticas, etc.) aos tempos de aceleração e fluidificação da modernidade (Zygmunt Bauman) que, sem dúvida, possibilitam o acolhimento de uma noção que, apesar de complexa, tem sobre outras a vantagem acrescida da parametrização científica. 
 
2. A concretização do direito a... 
O Tribunal Distrital da Haia, em 26 de Maio deste ano, condenou a RDS — Royal Dutch Shell, com sede nos Países Baixos, enquanto empresa-mãe do grupo Shell, a reduzir as emissões de CO₂ do grupo em 45% até 2030, por referência às emissões de 2019 [Milieudefensie et al. v. Royal Dutch Shell]. Entendeu o Tribunal que recaía sobre o grupo Shell um “dever de cuidado não escrito”, à luz do Livro 6, Secção 162, do Código Civil neerlandês, que lhe impunha a limitação dos volumes anuais das emissões de CO₂ lançadas para a atmosfera, com vista à protecção dos interesses dos habitantes dos Países Baixos.
Esta decisão foi, de uma forma generalizada, considerada como um marco fundamental na “jurisprudência ambiental”, independentemente da ponderação final de interesses que venha a ser alcançada em sede de recurso, tendo em conta que a Shell anunciou logo em Julho que iria recorrer da condenação.
Note-se que o Tribunal não admitiu, por razões processuais, a intervenção na acção (“collectieve actie”) dos mais de 17.000 indivíduos representados pela associação ambiental Milieudefensie, com o argumento de que os interesses que estes pretendiam proteger com a acção eram já acautelados pela Milieudefensie e pelas demais ONGs envolvidas no processo. Considerou também que a acção em causa não poderia ter como fundamento a protecção dos interesses de toda a população mundial relativamente aos perigos das alterações climáticas provocados pelas emissões de CO₂, dado que o nível da afectação desses interesses não se colocaria no mesmo plano do dos interesses da população neerlandesa, e por essa razão também entendeu que a associação ActionAid não tinha legitimidade activa para propor a acção, uma vez que o foco da sua actuação, no combate à pobreza e injustiça no mundo, se centra nos países africanos. 
A pretensão da demandante Milieudefensie et al., de ver reconhecida relativamente à Shell a existência de um “dever de cuidado não escrito” de contribuir para a prevenção dos perigos das alterações climáticas através da política ambiental definida para o grupo, com base no referido Livro 6, Secção 162, do Código Civil neerlandês, foi, não obstante, atendida. O Tribunal Distrital da Haia convocou, para a integração da cláusula geral dos “deveres de cuidado não escritos” (“ongeschreven zorgvuldigheidsnorm”) impostos à demandada — com um sentido próximo do de uma cláusula geral de ordem pública (na medida em que se afirma que é ilícito o comportamento contrário às regras jurídicas não escritas generalizadamente aceites: “handelen in strijd met hetgeen volgens ongeschreven recht in het maatschappelijk verkeer betaamt onrechtmatig is”) —, entre outros elementos, a posição da RDS no seio do grupo, enquanto entidade que define as políticas empresariais, as consequências “potencialmente muito sérias e irreversíveis” da emissão de CO₂ para os Países Baixos, e o “direito à vida e ao respeito pela vida privada e pela vida familiar” dos residentes nos Países Baixos. Foi ainda tida em consideração a soft law que decorre, nomeadamente, dos princípios orientadores da ONU para as empresas e Direitos Humanos (UNGPs — UN Guiding Principles on Business and Human Rights), de 2011, a necessidade do contributo dos vários stakeholders, e não só dos Estados, para alcançar os objectivos fixados pelo Acordo de Paris, e o consenso generalizado no sentido de que a colaboração entre diferentes actores é fundamental para se atingir o objectivo global de zero emissões líquidas, sendo a Shell chamada a fazer a sua parte, assegurando-se que as emissões do grupo são reduzidas. No entender do Tribunal, o facto não contestado de que a Shell não é a única empresa responsável por comportamentos perigosos não a “absolve” da sua parcela de responsabilidade na luta contra as alterações climáticas, com os meios ao seu alcance. Tendo por base os relatórios científicos sobre a questão, considerou o Tribunal que o grupo Shell teria que assegurar a redução das emissões de CO₂ até ao fim do ano de 2030 em 45%, líquidos, por referência aos níveis de 2019, sendo esta uma obrigação de resultado.
As alterações climáticas foram encaradas como uma das ameaças mais prementes aos “direitos à vida e ao respeito pela vida privada e familiar” das gerações presentes e futuras. O Tribunal não reconheceu abertamente na ordem jurídica neerlandesa um direito subjectivo a um ambiente estável, mas identificou a influência negativa das alterações climáticas sobre os direitos dos residentes nos Países Baixos e a contrariedade à ordem pública dos comportamentos que as potenciam. E reconheceu que os interesses destes residentes na acção em causa eram acautelados pela actuação das associações demandantes, justificando a legitimidade processual activa destas associações. 
O bem jurídico foi identificado e foram também individualizados os titulares dos interesses que convocam a sua protecção. A integração destes interesses num instrumento que possibilite o livre desenvolvimento da personalidade, acautele a interacção social num clima estável e permita uma reacção em face da sua ameaça, poderá ser o passo seguinte, se ainda houver tempo e caminho.

[Maria Regina Redinha e Maria Raquel Guimarães são Professoras da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e Investigadoaras do CIJ]