Civil Law; Property rights; Law of obligations; Easement; Duties.
A fim de obter a concessão da
Doktorwürde, apresentou Anna Magdalene Geiger-Wiesker o estudo
Dinglichkeit und Pflicht – Eine Untersuchung am Beispiel der Grunddienstbarkeit (“Coisalidade e dever – Uma investigação a partir da servidão predial”). Trata-se, como do título resulta já, de um estudo que se propõe a vivificar a reflexão jurídico-civil numa sua paragem tida, não raro, como de águas nada agitadas – estado este que a autora, como muito bem se saúda, se propõe a modificar.
1. Completada a parte introdutória (§1, pp. 23-30), desenvolve-se o estudo a partir de três etapas apresentadas logicamente de modo sequencial.
Primeira etapa: apresenta-se a evolução da jurisprudência alemã que culminou no reconhecimento de uma “relação obrigacional complementar” (
Begleitschuldverhältnis) como meio para codificar a articulação das posições jurídicas entre o proprietário e o titular do direito de servidão predial sobre uma mesma coisa (§2, pp. 31-96). Tal posição jurisprudencial – pacificamente reconhecida, no Direito alemão, no contexto da articulação de posições entre proprietário e usufrutuário, e cuja valia, em tal âmbito, a autora não deixa de reconhecer – é objecto de ponderação crítica no contexto específico das servidões prediais, permitindo a precisa identificação daquele que constituirá o tema principal da investigação: se da previsão legal de deveres da acção para o titular do direito de servidão predial resulta o necessário reconhecimento de uma relação obrigacional, ou se, pelo contrário, a noção de “dever” ainda é compatível (e em que termos) com a
dominialidade real,[1] de onde se explica o título escolhido para o estudo.
Segunda etapa: constitui a parte mais distendida, e também mais relevante, da investigação, justamente destinada a tratar deste último tema (§3, pp. 97-214). Pretende aí delimitar-se com clareza qual a função e o alcance do conceito de dever real, e qual, em contrapartida, a sua distinção para o dever (e relação) obrigacional. Reconhecerá o jurista português, na economia da exposição, temáticas que lhe são familiares, como é o caso da discussão acerca de saber se o direito real há-de ser interpretado, ou não, em termos predominantemente inter-subjectivos (pp. 99-124). Tal é a posição sustentada pela autora, que não deixa de identificar novas dificuldades daí resultantes (pp. 124-146).
Em primeiro lugar, a necessária distinção entre o dever geral de respeito a um concreto direito real alheio e o dever de cumprimento de uma concreta
pretensão (
Anspruch), conceito este último, como é sabido, de especial relevância no Direito alemão: direito a exigir de outrem uma acção ou uma abstenção.
[2] Do direito real sobre uma coisa decorre, segundo a autora, o dever, para todos os demais, de o respeitarem; mas não uma
concreta pretensão a exigir um preciso comportamento (activo). Assim, e a título de exemplo, se do direito de propriedade decorre um feixe de deveres, para todos os demais, de o respeitarem, já a concreta
pretensão à restituição é exercida contra aquele que priva o proprietário do seu gozo da coisa (pp. 146-151).
Em segundo lugar, a distinção entre a índole deste dever de respeito de um direito real alheio e os deveres de comportamento próprios das relações obrigacionais (pp. 152-214). De onde a questão: o que constitui a obrigacionalidade de um certo dever de comportamento? Chegado a este ponto culminante da dissertação, serve-se a autora da distinção entre deveres de prestação (
Leistungspflichten) e deveres de protecção (
Schutzpflichten) – neste último caso dirigidos a conservar a ordem de afectação dominial –, distinção que é conhecida da conceptualização da complexidade da relação obrigacional (pp. 184-185), e aqui reaproveitada para distinguir as categorias exclusivamente obrigacionais das de índole especificamente real. No contexto da relação entre titulares de dois direitos reais sobrepostos, apenas seria, então, de afirmar a existência de “relação obrigacional complementar” (
Begleitschuldverhältnis) onde se constituíssem efectivos deveres de prestação; onde, pelo contrário, os deveres constituídos – mesmo que exigindo determinadas condutas activas (
Handlungspflichten) – se atenham à protecção da integridade da parte contrária, a conclusão pela existência de uma relação obrigacional complementar não será necessária. Por conseguinte, pode concluir-se que a
dominialidade real é fonte de
deveres, sem que daí resulte necessariamente o reconhecimento da constituição de obrigações (com toda a sua constelação conceptual e normativa associada, como, por ex., o papel reitor da “boa-fé” no sentido do § 242 BGB
[3] ou a responsabilidade obrigacional decorrente da respectiva violação).
Terceiro estádio: propõe-se a autora a estudar o concreto regime das servidões prediais do Direito alemão de acordo com as conclusões conceptuais antes obtidas, intentando demonstrar como a conceituação proposta na parte central do estudo se adequa ao regime legal aplicável e se presta à sua melhor interpretação (§4, pp. 215-308).
O estudo termina com a apresentação de umas concisas conclusões, que sintetizam de modo tão breve quanto fiel o teor do estudo (§5, pp. 309-315). Como é uso em escritos publicados no espaço editorial alemão, a obra, após indicação da lista bibliográfica (pp. 315-325), oferece um valioso índice analítico (pp. 327-328).
2. De quanto se expôs, é já possível concluir por duas características distintivas do presente estudo que são irrestritamente de aplaudir.
Primeiro, o respectivo esforço, muito empenhado, de construção conceptual. Agora que, decerto, sucessivas gerações de juristas já não são formadas mediante a introdução a um fino e trabalhado quadro conceptual, e em que, portanto, também já não são sensíveis a uma crítica, quase sempre formulada com insustentável leveza, a um “conceptualismo” que nunca conheceram – como se alguma vez a decisão por dispor ou não de uma conceituação, e não pelo mérito e da valia daquela específica que é mobilizada, pudesse realmente ser tomada –,
[4] estamos porventura de regresso a um tempo favorável a novos esforços de reflexão acerca do instrumentário básico mediante o qual se exerce a prática jurídico-civil.
Segundo, a decisão de proceder a uma semelhante conceituação, não desde uma categoria de “direito real” entendido em termos singulares e absolutos, caminho para uma abstracta generalização que, não raras vezes, é percorrido sem via de regresso, mas a partir do confronto de uma tipologia de problema real bem delimitada: a da relação entre o titular do direito de propriedade e o titular de um direito de servidão predial. Depois dos excessos das partes gerais, é sempre de saudar o regresso às problematizações particulares, generosas fontes de inspiração, de resto, para sindicar do acerto, ou da falta dele, daquelas primeiras.
3. É característico de um qualquer esforço de conceituação, por maiores que sejam as suas pretensões – mesmo quando logradas – de originalidade, mover-se dentro de determinados referentes pressupostos que se hão-de limitar a ser assumidos e não problematizados. Nem tudo pode, a todo o momento, ser reconfigurado
ab ouo. Será assim diferente discorrer acerca do que possa constituir um “dever”, e um “dever obrigacional”, no Direito alemão, ou fazer uma equivalente ponderação a respeito do Direito português: enquanto ali se pressupõe uma certa estrutura conceptual do Direito das Obrigações com uma sobredesenvolvida parte geral, neste último caso, o do Direito português, arranca-se porventura de uma maior indeterminação conceptual, mas com o que também aí resulta de libertação do jurista para outras possibilidades de sistematização do
corpus dogmático de Direito civil contemporâneo que, decerto, estarão vedadas ao jurista germânico de hoje (que, em contrapartida, dispõe de
outras possibilidades que para o jurista português permanecem indisponíveis). Se de seguida se tecem algumas observações críticas, não se dirigem elas, portanto, ao juízo que sobre o estudo da autora se possa formular a
partir do Direito alemão – juízo que, aliás, não cumpre formular ao redactor destas linhas –, mas sobre uma eventual recepção que do respectivo pensamento se possa fazer no Direito português.
Feito este importante
caueat, dá-se conta de quatro hesitações suscitadas pela economia da exposição.
Pergunta-se, em primeiro lugar, se há realmente uma especial vantagem em iniciar a compreensão do direito real a partir da conceptualização de uma relação intersubjectiva entre o seu titular e todos os demais – ou se, antes, não é mais pertinente configurar o direito real como posição de domínio absoluta (logo: desligada, não relativa) sobre certa coisa, não sem deixar de reconhecer a existência de um único
dever geral de respeitar
todas as posições jurídicas de um qualquer terceiro que lhes estejam atribuídas em termos absolutos (e não uma infinidade de deveres específicos a respeito de todas e de cada uma das posições reais de todos e quaisquer terceiros). Quer dizer: parece longe de necessariamente adquirido que se tenha de internalizar, em cada relação jurídico-real, o concreto dever de respeito que (não se deixa de reconhecer) todos têm a respeito de todos, e que de tal internalização resultem especiais ganhos compreensivos.
Hesita-se, em segundo lugar, diante do afastamento de uma abordagem da dominialidade jurídica a partir do estudo das pretensões reais. Esta última é, de resto, a abordagem que o redactor destas linhas vem ensaiando na introdução aos direitos reais: em lugar de uma abordagem das posições jurídicas reais a partir de uma sua identificação em termos absolutos, como
prius, de que como decorreriam, em derivação, determinadas pretensões, uma sua explicação a partir das pretensões que o defendem, e que se tornam, agora, o meio de acesso ao regime de definição da dominialidade privada. Direito real será então aquela posição jurídica que, reconhecendo a afectação de uma determinada
res a alguém, é pressuposta ao exercício das pretensões especificamente destinadas à sua defesa, cujo estudo, por conseguinte, pode e deve começar por estas últimas.
Coloca-se em causa, em terceiro lugar, que se tenha sempre de colocar no mesmo plano de oposição a “obrigação” e o “direito real”
. Pelo menos a título de regra, obrigação designa uma tipologia de posição jurídica, não uma sua fonte; já a posição jurídica complexa direito real pode designar simultaneamente uma tipologia de posição jurídica
e uma fonte de posições jurídicas derivadas, constituindo deveres, faculdades, poderes, etc., sobretudo quando se dêem relações entre titulares de direitos reais distintos. O direito real
enquanto fonte de relações jurídicas – ou, pelo menos, enquanto posição complexa englobante de um conjunto heterógeneo de posições jurídicas dirigidas a facultar o aproveitamento de certa
res – haveria de ser confrontado, portanto, com as fontes de obrigações: com o contrato, com a responsabilidade civil, com o enriquecimento sem causa, etc., e não com
a obrigação enquanto tal. Com efeito, não deve causar nenhuma estupefacção ao jurista que, no contexto de relações reais, até possa haver “obrigações” (…atente-se na doutrina tradicional de distinção entre “obrigações autónomas” e “obrigações não autónomas”…); deve é precisar o que é que tais obrigações, a surgirem em âmbito real, têm de distintivo em relação às do livro II do Código Civil (ou do BGB), dada as fontes de umas e outras. O que, como por efeito de ricochete, conduzirá também a reler a parte geral das obrigações à luz do seu contexto pressuposto – não já o das obrigações simplesmente em geral, mas o das obrigações pensadas desde o horizonte do contrato ou do delito (ou do quase contrato, ou do quase delito,
et similia).
Suspeita-se, por fim, que ultrapassada a necessidade de distinção entre o que seria o campo das obrigações e o campo da dominialidade – passando a distinguir-se os livros II e III do Código Civil, não exclusivamente pela tipologia de uma posição jurídica fundamental que de cada um seria própria, mas pela fonte de efeitos jurídicos em cada um deles –, se poderá empregar com liberalidade o termo
relação real para designar o modo de articulação de qualquer tipo de coexistência entre titulares de dois direitos reais sobre um mesmo bem, conceptualização que, como é sabido, já há largas décadas foi entre nós introduzida com este sentido. Relação real que nalguns casos incluirá deveres prestacionais e que noutros terá maior simplicidade.
4. Tudo isto nos pediria, em boa verdade, bem mais desenvolvidas reflexões. Mas é bastante para dar testemunho do forte estímulo que do estudo desta obra pode retirar qualquer jurista interessado e empenhado no “desenvolvimento do sistema de direito privado”, conforme se intitula a série da editora
Nomos em que foi publicada, e de que constitui já o n.º 14. Se as hesitações acima partilhadas, uma vez vencidas, conduzirão ou não a conclusões distintas das sustentadas pela autora: esse será ponto que se deixa em aberto, à espera das serenas e ponderadas cogitações do prudente Leitor.
[1] Apesar de constituir uma tradução menos directa do que
coisalidade, dominialidade real verterá com mais precisão aquilo a que a autora pretende referir no título
Dinglichkeit.
[2] Cf. a sua definição a propósito da prescrição, nos termos do §194 (1) BGB: “Das Recht, von einem anderen ein Tun oder Unterlassen zu verlangen (
Anspruch), unterliegt der Verjährung.”/ “O direito de exigir de outrem uma acção ou uma abstenção (
pretensão) está sujeito a prescrição.”
[3] “Der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so zu bewirken, wie Treu und Glauben mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern.”/ “O devedor está vinculado a realizar a prestação nos termos exigidos pela boa fé com consideração pelos costumes do tráfego.”
[4] Sempre será de recordar o célebre
dictum de Kant: “Gedanken ohne Inhalt sind leer, Anschauungen ohne Begriffe sind blind”…