Legal definition; edification; Legal Regime of Urbanization and Edification; norm; interpretation.
The legal definition of “edificação” (edification) provided in the Portuguese law related to urbanism and edification is legally unclear as to whether structures not embedded into the ground are subject to urban planning control and the corresponding sanctioning regime. The amendments made by the law Decreto-Lei n.º 10/2024, January 8, did not clarify the doubts. We put forth analytical arguments to the effect that some of such structures may be considered edifications not because of, but despite the legal definition. However, we argue that the sanctioning regime is inapplicable to atypical edifications, because the legal type is not fulfilled and due to the prohibition of the analogy related to sanctioning norms.
1. Introdução
A alínea
a) do artigo 2.º do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), estabelece a seguinte definição de “edificação”:
“a actividade ou o resultado da construção, reconstrução, ampliação, alteração ou conservação de um imóvel destinado a utilização humana, bem como de qualquer outra construção que se incorpore no solo com carácter de permanência.”
A ficha n.º I-20 do Anexo I do Decreto Regulamentar n.º 5/2019, de 27 de Setembro, repete a mesma formulação da definição legal. Noutra enunciação, a ficha n.º I-21 do mesmo diploma define o termo “edifício” do seguinte modo:
“um edifício é uma construção permanente, dotada de acesso independente, coberta, limitada por paredes exteriores ou paredes-meeiras que vão das fundações à cobertura, destinada a utilização humana ou a outros fins”.
Para o propósito deste estudo, teremos em consideração apenas a norma definitória do RJUE, não só dada a sua hierarquia normativa, mas também porque a definição regulamentar de “edifício” não se distingue substancialmente da definição legal de “edificação”. Em ambos os casos as definições têm como condição a incorporação no solo, ora de modo expresso, na definição legal, ora implicado no termo
“…fundações…” constante da norma regulamentar.
Tem sido recorrente, junto dos tribunais, a questão de saber se a instalação de estruturas pré-fabricadas ou de construção modular, assentes no solo, necessitam de controlo urbanístico atenta a definição acima transcrita. A tais estruturas modulares podemos adicionar rulotes, caravanas, contentores, barracões, tendas e todo o conjunto de estruturas que não pressupõem uma prévia actividade de construção ou que se encontram assentes no solo, mas nele não incorporadas.
A doutrina e jurisprudência já se pronunciaram sobre o tema. Em síntese, relevam o critério da permanência no solo para considerar a estrutura como edificação e consequentemente sujeita ao controlo prévio urbanístico do RJUE.
Na doutrina, os argumentos avançados têm sido mais dogmáticos do que analíticos
[1]. Se, por um lado, a interpretação não se deve cingir à letra da lei, mas atender à unidade do sistema jurídico, às circunstâncias em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo em que é aplicada, por outro lado o intérprete não pode ir para além do mínimo de correspondência verbal
[2]. E no caso de se concluir pela incompletude do sistema normativo devem ser apresentadas razões justificativas para a integração da lacuna, através da analogia ou, na sua falta, mediante a norma que o intérprete criaria se houvesse que legislar dentro do mesmo sistema normativo
[3].
A jurisprudência de que temos conhecimento ou centra a sua análise no regime pretérito, o Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro, em que inexistia a definição legal de “edificação”, ou suporta-se em grande medida na autoridade dogmática da doutrina
[4]. Por este motivo, e sem embargo da importância do posicionamento jurisprudencial para o equilíbrio reflexivo sobre a questão, padece das mesmas insuficiências analíticas quanto à aplicação da definição de edificação a estruturas que não os típicos imóveis em alvenaria com fundações.
O que se acabou de dizer também se aplica à recomendação emitida pela Comissão Nacional do Território, suportada na doutrina e em alguma da jurisprudência supramencionada
[5].
2. O Decreto-Lei n.º 10/2024, de 08 de Janeiro
O Decreto-Lei n.º 10/2024, de 08 de Janeiro, conhecido como “Simplex Urbanístico”, introduziu o artigo 1.º-A no RJUE, cujo teor transcrevemos:
Artigo 1.º-A
Construção modular
O presente diploma é ainda aplicável à construção modular de carácter permanente, que é caracterizada por utilizar elementos ou sistemas construtivos modulares, estruturais ou não estruturais, parcial ou totalmente produzidos em fábrica, previamente ligados entre si ou no local de implantação, independentemente da sua natureza amovível ou transportável.
Na medida em que a norma tem como referente uma realidade muito específica – a construção modular – não se compreende a sua localização sistemática após a norma sobre o objecto material de aplicação do diploma, conforme resulta do artigo 1.º do RJUE. A que acresce que o enunciado constitui em grande parte uma definição sobre o que se entende por construção modular. Se a pretensão do legislador era aplicar o RJUE a essa realidade poderia e deveria tê-lo feito a partir das normas definitórias agrupadas no artigo 2.º.
Para além da incorrecta sistematização do preceito, a sintaxe e a semântica do enunciado não dissipam as dúvidas quanto à imprescindibilidade da incorporação no solo, enquanto condição da definição. O enunciado prevê o carácter permanente da construção modular, mas acrescenta que os elementos construtivos podem ser ligados no
“…local de implantação…”. O verbo “implantar” é sinónimo de enraizar, inserir, enxertar, introduzir. Parece induzir que a construção modular de carácter permanente deve estar implantada, ou seja, incorporada.
Contudo, esta conclusão não nos parece aceitável pelas razões que demonstraremos a propósito da definição de edificação na alínea
a) do artigo 2.º, extensíveis ao artigo 1.º-A.
3. A importância do tema
O enfoque no critério de permanência, tal como defendido pela doutrina e jurisprudência dominantes, tem alguns escolhos. O elemento gramatical da definição da alínea
a) do artigo 2.º do RJUE inclui o conceito de
“…imóvel…” e a proposição
“…bem como qualquer outra construção que se incorpore no solo com carácter de permanência”. A disposição legal, expressa pela linguagem escrita, não prescinde das dimensões sintáctica, semântica e pragmática que constituem o seu significado
[6].Neste sentido, perante casos específicos juridicamente pouco claros, como o de estruturas não incorporadas no solo, a definição no RJUE não prescinde da análise daquelas três dimensões.
O significado jurídico da definição legal de edificação não é tema ocioso: repercute-se noutras definições legais
[7] e influi noutras normas, designadamente quanto à submissão a procedimentos de controlo urbanístico
[8] e no regime sancionatório contra-ordenacional
[9]. Ainda que sigamos as conclusões da doutrina, jurisprudência e a recomendação administrativa acima mencionadas, deve-se preterir qualquer tipo de decisionismo em benefício da apresentação de razões que permitam formular uma norma de decisão
[10]. O nosso propósito é, pois, o de procurar elucidar por que algumas estruturas para utilização humana ou construções não incorporadas no solo podem ser consideradas edificações não por causa, mas apesar do enunciado da alínea
a) do artigo 2.º e mais recentemente do artigo 1.º-A do RJUE
[11].
4. Prescritibilidade das definições legais
Em termos gerais, definir é atribuir o significado a um símbolo – o
definiendum – utilizando outros símbolos ou expressões conhecidas – o
definiens. A definição versa sempre sobre palavras, ou seja, diz o que um ou mais termos significam.
Afigura-se intuitivo que a definição vertida no dicionário não é idêntica nem tem a mesma função da definição inscrita na lei. Entre outras classificações, as definições podem ser descritivas (ou lexicais) ou estipulativas. A definição descritiva, como sucede com a definição de dicionário, refere-se ao uso linguístico comum e tem propósitos informativos, podendo ser verdadeira ou falsa. A definição estipulativa estabelece como o termo ou expressão irá ser utilizado em determinado contexto ou como é recomendado o seu uso, e por isso não pode ser verdadeira ou falsa, mas apenas clara ou confusa, adequada ou inadequada, frutífera ou infrutífera. No entanto, os contornos distintivos das definições descritivas e estipulativas não são assim tão evidentes. Ao contrário do que é por vezes referido, o sentido das definições estipulativas não pode ser arbitrário, pois terá de corresponder às necessidades de precisão e clareza do termo definido, pelo menos se se pretender a adopção da definição ou o mínimo de operatividade em relação ao que se pretende estipular
[12].
A definição legal, porque emanada de uma autoridade normativa para determinado contexto, não tem propósitos informativos, mas estipulativos. O emissor da norma definitória atribui sentido específico ao termo (“edificação”), na dependência do contexto em que é utilizado, não pretendendo transmitir o uso comum do
definiendum, como sucede nas definições lexicais. Porque a finalidade é equiparar conceitos a descrições de conceitos as definições legais são insusceptíveis de serem verdadeiras ou falsas
[13].
Sabe-se há muito que as definições legais são consideradas perigosas
[14]. Talvez por ser evidente que o enunciado da definição legal não tem estrutura idêntica à norma que impõe, proíbe ou permite acções. O enunciado da definição não contém – pelo menos explicitamente – operador deôntico de obrigação, permissão ou proibição, ao contrário das normas que incidem sobre condutas ou comportamentos praticados na realidade exterior às normas. O mesmo sucede com a definição da alínea
a) do artigo 2.º do RJUE. Esta norma não impõe, permite ou proíbe qualquer conduta, pois tem como escopo outras normas do RJUE em que o termo “edificação” é utilizado. Neste sentido, a definição de edificação, como sucede com a generalidade das definições legais, pode ser classificada como proposição jurídica incompleta
[15], norma secundária
[16] ou norma conceptual
[17], por se incluir nas normas que têm como objecto outras normas do conjunto normativo, distinguindo-se das normas primárias que incidem sobre a realidade exterior ao direito – como sucede, por exemplo, com o artigo 4.º, n.º 1 e 2 do RJUE
[18].
Não é pacífico se as definições legais têm natureza prescritiva e, para quem a admita, com que intensidade.
Para a tese da não prescritibilidade, a natureza estipulativa das definições legais não permite considerá-las como autênticas normas, na medida em que necessitam de ligação a outras normas
[19]. Se o fenómeno normativo se limitar ao prescritivo, então as definições não serão normas. No entanto, outros autores reconhecem que as definições legais têm alguns efeitos, desde logo o de identificar as normas em que figura o termo definido, fornecendo indícios ou elementos para a descoberta de sentido, mas de forma não concludente
[20]. Noutra perspectiva ainda, a definição legal será uma norma, mas de natureza constitutiva e não prescritiva, por relacionar casos genéricos com outros casos genéricos, e não por relacionar factos, acções ou actividades com obrigações, permissões ou proibições
[21]. Enquanto norma constitutiva, as definições ou normas conceptuais definem certas formas de interpretar factos ou condutas sem introduzir modalizações deônticas, através de condicionais do tipo “X conta como Y no contexto C”
[22].
Para os defensores da tese da prescritibilidade
“…a definição do legislador não é como que uma simples noção provisória e revisível de uma realidade que se pretende categorizar: ela compreende sempre uma vontade ou intenção normativa, uma decisão…”[23]. Noutra óptica, defende-se que as definições são verdadeiras normas que prescrevem a equivalência entre dois termos, o
definiendum e o
definiens, independentemente da qualidade ou quantidade do objecto que é denotado pelos termos. À semelhança do que sucede com as normas que impõem ao intérprete acções mentais ou intelectuais, como sucede com a norma de proporcionalidade e a inerente obrigação de ponderação ou balanceamento, também as definições legais, enquanto normas conceptuais, impõem ao intérprete que qualifique mentalmente a equivalência contida na definição legal ou, se se quiser pela inversa, proíbe o intérprete de atribuir à definição sentido diferente daquele que está contido no enunciado. As normas definitórias ou conceptuais modalizariam a acção de qualificar algo como seu equivalente. Em todo o caso, a prescritibilidade das definições reduz-se à norma na sua individuação, com antecedente e consequente, enquanto parte de uma estrutura normativa mais ampla
[24].
Uma terceira via, defendida por Matthias Klatt como a tese da conexão, entende que a circunstância de o fenómeno normativo se dirigir a acções ou comportamentos pretendidos não se reduz apenas ao prescritivo. A determinação de algo através de uma definição legal ou de norma atributiva de competência não deixa de pertencer ao mundo deôntico ou de
dever-ser. As normas constitutivas e normas prescritivas não são mutuamente excludentes, mas complementam-se, podendo existir normas hibridamente constitutivas e prescritivas
[25]. Na prática, as normas constitutivas estão invariavelmente conexas com as normas prescritivas, pois a prescritividade normativa depende da constitutividade: esta última propriedade é que atribui significado específico à prescrição a ser seguida
[26].
Pela nossa parte, não obstante as definições legais serem normas, são de tipo radicalmente diferente das que incidem sobre condutas, por não terem operador deôntico associado, à semelhança do que ocorre com as normas atributivas de competência
[27]. Tal como a norma atributiva de um poder (poder-aptidão) que titula a competência de um órgão não se reduz a uma norma permissiva (poder-permissão) quanto ao seu exercício, a definição legal, explicitando o termo ou a expressão por outra proposição, não se confunde com as normas que impõem, permitem ou proíbem condutas ou acções mentais
[28]. A circunstância de a definição legal, enquanto norma constitutiva, nada proibir, impor ou permitir não a descaracteriza como norma, pois continua a pertencer ao conjunto de acções deônticas ou de
dever-ser ao condicionar outras normas do conjunto normativo
[29].
No caso da definição em estudo, a previsão ou a proposição antecedente é constituída pelo enunciado “X”, que pode ser dividido em três partes:
“a actividade ou o resultado da construção, reconstrução, ampliação, alteração ou conservação (x
1)
de um imóvel destinado a utilização humana (x
2)
, bem como de qualquer outra construção que se incorpore no solo com carácter de permanência (x
3)
”; a estatuição, ou a consequente da proposição, é constituída pelo termo “Y”, ou seja, “(é uma)
edificação”. O contexto “C” refere-se às propriedades do caso e ao padrão de relevância do conjunto normativo em que se pode considerar X como Y e que adiante desenvolveremos.
Afirmar que “X é Y no contexto C” não significa afirmar implicitamente que “
é obrigatório X ser Y no contexto C” ou que “X
é obrigatório ser Y no contexto C”. O predicado de existência implícito na estatuição “é Y” não tem qualquer função no apuramento do estatuto deôntico. O verbo “ser” tem a função de instanciação de um predicado, mas ao nível superior ou em meta-nível, isto é, o de atribuir força ontológica aos elementos da proposição, no sentido de que existe o termo “Y” em relação com “X” no contexto C
[30]. Semanticamente, o verbo copulativo (“é”) tem valor estativo, ou seja, descreve as propriedades estáveis e não contingentes do termo edificação. Mas a cópula não é predicador responsável pela caracterização das propriedades do
definiens, pelo que não contribui para o significado nem para qualquer modalidade deôntica implícita
[31].
Em bom rigor, a questão da maior ou menor prescritibilidade das definições legais não é decisiva, mas permite estas primeiras asserções: as definições legais são normas, emitidas por uma autoridade normativa, cujas proposições têm significado o qual não pode ser ignorado pelo intérprete; e são normas constitutivas com propriedades distintas das normas prescritivas, por não proibirem, imporem ou obrigarem. Mesmo para quem defenda a modalização deôntica implícita da definição legal, continua a ser necessário determinar o significado da norma, nomeadamente quanto ao seu antecedente, e relacioná-lo com as restantes normas do sistema normativo. Dada a finalidade estipulativa da definição legal, cabe ao intérprete construir o sentido a partir do seu significado enunciativo, explícito e implícito, no contexto de justificação da norma.
5. O antecedente ou a previsão da norma definitória
Por razões de economia expositiva, partimos do pressuposto de que do ponto de vista exclusivamente normativo não existem normas desprovidas de condições objectivas de aplicação. Ou seja, todas as normas são condicionais, sob pena de descontextualização, ainda que surjam com a aparência ou formulação categórica
[32].
A definição tem como ponto de partida o enunciado normativo. O enunciado normativo pode ser formulado através de diferentes técnicas, designadamente frases, proposições ou termos simples que se relacionam entre si. No caso das normas definitórias, o antecedente ou previsão é constituído pelo
definiens ou a definição propriamente dita com as propriedades que compõem as condições hipotéticas objectivas – os factos ou situações jurídicas pressupostas – e as condições hipotéticas subjectivas, atinente ao destinatário da norma – neste caso o intérprete
[33]. A proposição consequente ou a estatuição é formada pelo
definiendumou termo a definir.
A estatuição (Y) do enunciado da alínea
a) do artigo 2.º do RJUE é um nome comum (“edificação”). Este nome nada descreve, ao contrário de uma frase ou proposição. Apenas expressa o conceito “edificação”. Donde, não é possível retirar qualquer significado útil. O antecedente ou previsão da norma (X), pelo contrário, é constituído por várias proposições e são as proposições – que incluem termos, conceitos, frases – que formam o conteúdo do antecedente e permitem conexões inferenciais
[34].
No caso das normas, e atenta a sua finalidade comunicativa de base, o enunciado é necessariamente constituído por asserções, no sentido de que a autoridade normativa o assume como sendo possível ou se compromete com algo que
deve-ser[35]. A asserção, enquanto proposição, constitui a unidade mínima linguística que permite obter o significado
[36]. A palavra ou o termo apenas tem significado no contexto da frase a partir da qual é possível asserir e jogar o jogo da linguagem. Daqui resulta que os principais portadores de propriedades lógicas não são os conceitos, mas as proposições e os conjuntos de proposições. Ou seja, a primazia dos conteúdos intencionais faz com que a semântica deva responder à pragmática, e não a inversa
[37].
Impõe-se assim descobrir qual o significado explícito e implícito que constitui a norma definitória. A interpretação da primeira parte do antecedente ou previsão na definição de edificação não se afigura problemática (x
1 = “
a actividade ou o resultado da construção, reconstrução, ampliação, alteração ou conservação”). Estruturas não incorporadas no solo podem não pressupor a actividade de construção, reconstrução, ampliação, alteração ou conservação, mas seguramente são o
resultado de construção.
As frases mais problemáticas referem-se às que definem edificação como
“...um imóvel destinado a utilização humana (= x
2)
bem como de qualquer outra construção que se incorpore no solo com carácter de permanência (= x
3)
”. O termo “
imóvel”remete-nos para o n.º 2 do artigo 204.º do Código Civil, que também elege a incorporação no solo para o edifício ser classificado como imóvel
[38].
Prima facie, a incorporação no solo aparenta ser elemento essencial, reforçado com a locução conjuncional comparativa “
…bem como…”, da terceira parte do segmento, que prevê a necessidade de a construção se incorporar no solo com carácter de permanência (x
3). Em ambos os casos (x
2 e x
3) a característica da incorporação no solo está prevista como condição. Se o objecto ou estrutura não se encontrar incorporado, não seria uma edificação.
No entanto, esta dedução afigura-se pouco sólida por pedir à norma definitória o que ela não pode oferecer. Vislumbramos pelo menos quatro razões contra o argumento acima formulado: (5.1) o critério de pertença; (5.2) a interpretação do conceito de imóvel; (5.3) a sub-inclusividade e a derrotabilidade normativa (5.4) e a diferença entre o tipo e o conceito.
5.1. Critério de pertença
Apesar da sua pregnância, o conceito de “imóvel” previsto na definição da alínea
a) do artigo 2.º do RJUE não tem de ser co-extensível ao conceito no direito civil. Por exemplo, a expressão “domicílio”, vertida no artigo 82.º do Código Civil, não denota o mesmo conceito previsto no artigo 34.º da Constituição
[39] ou no artigo 190.º do Código Penal
[40], nestes últimos casos mais ampla; nem é co-extensível do termo utilizado no artigo 95.º, n.º 2 do RJUE, neste caso mais restrito
[41]. Para aferir o sentido da expressão releva o contexto em que a definição é utilizada, ou o cenário de fundo partilhado entre os intérpretes da norma, a partir do qual é aferido o padrão de relevância normativa.
O mesmo sucede noutros domínios: o artigo 3.º, n.º 2, alínea
a) do Regime Geral de Gestão de Resíduos, previsto no Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de Dezembro, define o termo “abandono” como
“a renúncia ao controlo do resíduo sem qualquer beneficiário determinado, impedindo a sua gestão”. Esta definição não tem o mesmo significado como causa extintiva da posse prevista no artigo 1267.º, n.º 1, alínea
a) do Código Civil, ou do crime de abandono tipificado no artigo 138.º, n.º 1, alínea
b) do Código Penal, pois é utilizada noutro contexto e noutro subsistema normativo, com diferentes justificações de relevância. É possível perder a posse do objecto por abandono sem que tal materialize o abandono de resíduo, embora o vocábulo seja o mesmo.
Também o conceito de propriedade privada, mais restrito no direito civil (1305.º do Código Civil), não se reconduz ao conceito mais amplo do direito constitucional (artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa)
[42].
A compreensão do conceito de “imóvel” vertido na alínea
a) do artigo 2.º do RJUE, a partir do ambiente ou do contexto normativo a que está adstrito, do critério de identidade e pertença da norma no conjunto de outras normas, incide sobre a ocupação, uso e transformação do solo, do
ius aedificandi, para além da segurança do construído, num todo coerente de sentido. Os conceitos utilizados na definição de edificação não podem ser dissociados das condições de aplicação, e as condições de aplicação envolvem a discriminação entre as situações nas quais a asserção do conteúdo que inclui o conceito é apropriada das situações em que não é. Quando o conceito é debatido ou questionável, as suas variações não são cegas, mas guiadas por objectivos práticos
[43]. A busca de sentido pressupõe implicaturas, significados transmitidos, inferências materiais implícitas, informação contextual, ou enriquecimentos pragmáticos
[44] também por força de outras normas sobre o exercício da função administrativa e das que impõem ao Estado a prossecução de fins na tarefa pública urbanística, na qual se inclui a actividade de controlo da edificação através de actos administrativos, a garantia da execução dos planos urbanísticos, o direito ao ordenamento do território, a gestão territorial, ou a classificação e ocupação dos solos
[45]. Normas que pertencem ao mesmo conjunto normativo e que contextualizam a definição de edificação
[46].
5.2. O conceito de imóvel
Ainda que se propugne a co-extensividade do conceito civilístico de imóvel em relação à alínea
a) do artigo 2.º do RJUE, sempre se dirá que
“imóvel por si é só a terra. Efectivamente, é necessário ultrapassar a noção corrente do imóvel como a coisa indeslocável. Hoje em dia, os meios técnicos tudo permitem deslocar – menos a própria terra”[47].
Partindo de critérios de habitualidade e normalidade, uma coisa incorporada no solo tem como consequência a impossibilidade de ser deslocada
[48]. Podemos, no entanto, questionar se a característica da incorporação no solo é condição suficiente ou necessária para o conceito de imóvel
[49]. A alínea
e) do n.º 1 e o n.º 3 do artigo 204.º do Código Civil oferecem algumas pistas: as partes integrantes são classificadas como imóveis, entendidas como
“toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência”. Coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência não tem o mesmo sentido ou significado de coisa incorporada no solo. Desde logo porque a parte integrante só perde a qualidade de coisa móvel em função da sua ligação material. Mas não basta qualquer ligação material, terá de ter carácter permanente. A lei civil classificou a parte integrante como imóvel elevando a estabilidade e a durabilidade como critério fundamental.
Não obstante a divergência doutrinal quanto à natureza taxativa ou exemplificativa do artigo 204.º do Código Civil, esta norma não define nem qualifica, apenas enumera ou classifica, o que depõe a favor da sua natureza exemplificativa
[50]. Seja como for, o que releva para o direito privado é a
res in commercium, a coisa inserida no comércio privado embora, mesmo nestes casos, a classificação das coisas nos artigos 203.º e 204.º do Código Civil não seja estanque nem absoluta, mas relativa. Se um negócio incidir sobre o prédio no qual existe uma escultura esta pode ser considerada como parte integrante e por isso juridicamente classificada como coisa imóvel, ainda que não incorporada. Mas se o negócio incidir sobre a escultura esta terá de ser classificada como coisa móvel.
O artigo 204.º, n.º 1, alínea
e) e n.º 3 do Código Civil permite inferir que a incorporação no solo tem menor intensidade do que a característica da permanência. Ao invés, a permanência é essencial na intensidade, compreensão ou na força do conceito de imóvel, abrangendo a característica de incorporação no solo. Tanto que a lei civil classifica como imóvel as coisas móveis que sejam partes integrantes. Dito de outro modo, a incorporação é condição suficiente para a permanência da coisa, mas não é condição necessária, pois é possível a permanência da coisa sem estar incorporada no solo (
v.g. partes integrantes). Ao invés, a característica da permanência é condição necessária para a incorporação no solo, pois sem aquela esta última não se verifica.
5.3. Sub-inclusividade e derrotabilidade normativa
O carácter mais ou menos amovível, mais ou menos precário ou permanente de estruturas assentes no solo terá de partir das condições relevantes do caso e não de formulações conceptuais estreitas. O que pode reclamar a interpretação evolutiva e actualista, incluindo os desenvolvimentos tecnológicos ocorridos desde a elaboração da definição e que possam ser abrangidos nos propósitos da norma
[51].
O antecedente da definição legal de edificação, na actualidade, é sub-inclusivo em relação a situações ou a factos que o autor histórico do RJUE dificilmente poderia ter previsto. A alternativa, isto é, admitir a ocupação permanente de solos e a instalação de estruturas para utilização humana ou outras construções, não incorporadas no solo, sem controlo prévio urbanístico, originaria o conflito da norma definitória constitutiva (secundária) com outras normas constitutivas e prescritivas (primárias e secundárias) subjacentes à ocupação, uso, transformação do solo e edificação, muito para além do RJUE
[52]. Por exemplo, tratando-se de estrutura assente em solo classificado como rústico devem prevalecer as razões que justificam essa classificação e que excluem a possibilidade de edificação. Admitir tais estruturas em solo rústico apenas porque se desviam da definição legal, por não se encontrarem incorporadas, seria incoerente e inconsistente com as normas de classificação dos solos a que o RJUE deve obediência
[53].
Não é estranho ao princípio de legalidade situações de sub-inclusividade, como sucede com os exemplos de escola de a proibição de veículos no parque urbano implicitamente não incluir a entrada de ambulâncias em socorro de uma vítima; ou da proibição de entrada a cães no restaurante implicitamente permitir a entrada de cães-guia, mas proibir a entrada a ursos
[54]. Como há muito advertiu Hart, a linguagem jurídica não habita num “paraíso de conceitos”, ao invés tem textura aberta a qual, fora os casos paradigmáticos, pode originar casos difíceis ou duvidosos cuja solução exige discrição, administrativa ou judicial, quanto à resistência ou à derrota da norma
[55].
A derrotabilidade normativa pressupõe excepções implícitas impossíveis de prever ou de formular de modo exaustivo, presumindo que as consequências a retirar da norma contêm um predicado de normalidade ou de não-absurdidade segundo o senso comum, submetida à reserva
ceteris paribus. Porque os casos concretos da vida são mais ricos do que a abstracção da norma, a relação entre a previsão e estatuição normativa é não-monotónica. A não-monotonicidade é a propriedade lógica que se refere às conclusões derivadas de determinado conjunto de premissas não serem necessariamente preservadas quando esse conjunto é expandido
[56].
A derrotabilidade normativa,
qua tale, não tem sido projectada pela jurisprudência lusa para a determinação do significado das normas, ao contrário da identificação de lacunas axiológicas as quais, porém, representam o outro lado do mesmo fenómeno
[57].
Regressando à definição de edificação, o antecedente da proposição normativa da alínea
a) do artigo 2.º do RJUE, abrange toda a classe de imóveis para utilização humana e construções para outras finalidades. Os termos e proposições utilizados (
“um imóvel para utilização humana”,
“…construções…”) são vagos e genéricos. Se a vagueza é predicado das palavras, originando que o enunciado seja relativamente incerto quanto às suas condições, a genericidade é predicado de enunciados que implica a admissão de um grau reduzido de informação. Quanto mais genérico o enunciado normativo, maior a quantidade, mas menor a qualidade de informação para solucionar o caso com base naquela norma apenas
[58]. Assim, a vagueza das palavras e a genericidade do enunciado normativo são sempre sensíveis ou dependentes do contexto, prescrevendo até certo ponto (
pro tanto), a partir do critério da habitualidade e normalidade (
ceteris paribus), sem afastar a possibilidade de ocorrerem situações anormais aquando da
aplicação da norma e a concorrência ou conflitos com outras normas no campo da
justificação da norma a aplicar, o que no caso da definição em estudo tem por referência o padrão normativo relevante do direito do urbanismo e do ordenamento do território
[59].
Não fica assim afastada a possibilidade de existirem outras edificações para utilização humana ou construções que não são o que tipicamente é considerado imóvel. A definição de edificação do RJUE corresponde ao agregado de propriedades em número suficiente, mas não completo, de afirmações comuns na identificação de “X conta como Y no contexto C”. Não é uma definição rígida, pois não tem equivalência a todas as descrições possíveis e porque é sensível ao contexto e à justificação conexa ao padrão de relevância das normas urbanísticas e do ordenamento do território. Dito de outro modo, não afasta a possibilidade de edificações com características atípicas.
5.4. O tipo e o conceito
Como já mencionámos, as definições legais são descrições das condições normais ou habituais,
ceteris paribus, de certos conceitos no contexto normativo em que se inserem (
v.g. imóvel, domicílio, abandono), pelo que todas as definições legais são tipos
[60].
O tipo, ao contrário do conceito, não é formado pela abstracção, mas pela aglomeração da realidade designada, sem exclusão das partes incomuns. Não pretende ser cópia da realidade, mas modelo ou arquétipo
[61]. O tipo tem a pretensão de abranger a totalidade, ainda que de modo não exaustivo, não se circunscrevendo apenas às partes comuns ao género e prescindindo das diferenças específicas da espécie. Por isso, mais do que definir o tipo descreve; é geneticamente aberto, ou seja, a ausência de alguns dos elementos do tipo não implica, necessariamente, o afastamento do juízo de correspondência, do mesmo modo que a existência das características pertencentes ao tipo não é condição para que se conclua pela sua verificação, sendo necessário que se relacionem num quadro de referência próprio do tipo em questão. Por isso o tipo é graduável, matizado em função da ordenação e do peso relativo das suas características. Os tipos relacionam-se de modo horizontal, a partir de um plano e também por isso não têm a mesma capacidade designativa dos conceitos, mas superam-nos quanto à sua capacidade explicativa
[62].
O tipo afasta-se da lógica binária de inclusão e exclusão, de “sim” ou “não”, mais formalizada, como sucede com o conceito. O raciocínio tipológico parte de uma lógica difusa (
fuzzy logic) que se operacionaliza em termos de “mais ou menos”, como que assente numa linha recta, em que num dos pólos estarão os tipos de estruturas que seguramente são edificações, como sucede com as construções em alvenaria e com fundações; e no pólo oposto os tipos de estruturas cujas características seguramente não as qualificam como edificações, designadamente a tenda de campismo. Entre um e outro extremo pontuam estruturas que ora estão mais próximas ora mais distantes dos pólos em função das suas características, por exemplo barracões, caravanas, contentores, estufas, etc.
Estruturas não incorporadas no solo, mas que têm a finalidade ou a aptidão de permanecerem no solo onde estão instaladas, e que possuam a generalidade das propriedades associadas aos imóveis e construções típicas estão muito próximas do pólo do tipo de estruturas que são seguramente edificações, naquilo que é o padrão de referência do que, normal e habitualmente, constitui uma edificação. A tal não obsta existirem características atípicas, nomeadamente a ausência de fundações ou de incorporação no solo, ou de o objecto se encontrar previamente montado.
Neste sentido, subscrevemos as conclusões da doutrina e da jurisprudência: mais do que a incorporação no solo a permanência constitui o critério nodal para a definição de edificação, sejam imóveis para utilização humana sejam construções com outras finalidades
[63]. Mas esta conclusão deve ser sensível às propriedades relevantes do caso concreto e do escopo das normas urbanísticas quanto ao uso, transformação e classificação dos solos.
Desta conclusão emergem outras perguntas. Desde logo, a de saber quanto tempo é necessário para que a estrutura possa ser considerada permanente. O RJUE não oferece resposta. Cabe ao intérprete, perante o caso concreto, sopesar o arquétipo de edificação e as características ou índices do objecto em causa e procurar o padrão de relevância a partir de outras normas do conjunto normativo.
Por exemplo, o artigo 1.º, n.º 1, alínea
a) do Decreto-Lei n.º 343/75, de 3 de Julho, obriga à obtenção de licença municipal em relação a
“abrigos fixos ou móveis, utilizáveis ou não para habitação, se a ocupação do terreno se prolongar para além de três meses.” Se abrigos móveis que ocupam o terreno para além de três meses necessitam de licença municipal, por maioria de razão estruturas assentes no solo há mais de três meses também necessitarão.
O artigo 2.º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis define o conceito de prédio como
“…toda a fracção de território, abrangendo as águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nela incorporados ou assentes, com carácter de permanência…”. O n.º 2 da norma definitória esclarece que
“os edifícios ou construções, ainda que móveis por natureza, são havidos como tendo carácter de permanência quando afectos a fins não transitórios”, presumindo no n.º 3 o carácter de permanência
“…quando os edifícios ou construções estiverem assentes no mesmo local por um período superior a um ano”.Apesar desta definição estar inserida no contexto do imposto sobre o património, poderá servir de índice, por analogia, para o tempo de permanência necessário para que se considere a edificação atípica sujeita ao controlo prévio administrativo.
6. A definição e o raciocínio a contrario
A base do argumento de que as estruturas assentes no solo não são edificações, por não estarem incorporadas no solo, tem como pressuposto a clausura da norma definitória do RJUE. Uma norma de clausura agrupa propriedades ou condutas genéricas e não especificadas de modo a evitar a ocorrência de lacunas, permitindo retirar outras normas de decisão, designadamente através do raciocínio
a contrario. Mas para tal suceder a norma de clausura terá de abranger todo o universo de casos e todo o universo de acções, para além de preservar a coerência do sistema
[64].
Não é o caso da definição de edificação, enquanto tipo, por a condição não afastar outras situações hipotéticas. Logo, o raciocínio
a contrario sensu retirado do silêncio da norma (
expressio unius est exclusio alterius) é inadmissível. O argumento
a contrario não tem qualquer função no apuramento de condições normativas não previstas, pois é válido apenas nos casos em que o enunciado contenha proposições bi-condicionais, como sucede com as enumerações taxativas, normas excepcionais ou normas de clausura que pressupõem a completude de todas as situações hipotéticas possíveis. Só nestas situações o argumento
a contrario é em sentido forte e por isso admissível.
Para se concluir pela taxatividade ou excepcionalidade da norma exige-se mais do que a solitária interpretação da norma. Como referiu José de Oliveira Ascensão, a propósito das regras excepcionais,
“não basta uma apreciação da regra isoladamente tomada. Impõe-se uma valoração em conjunto daquela regra e toda a ordem jurídica, que permita determinar se corresponde às orientações fundamentais desta ou se pelo contrário delas se afasta por razões específicas do caso concreto”[65]. Dito de outro modo, o raciocínio
a contrario está sempre condicionado à interpretação do enunciado normativo, pois caracteriza-se como um passo a jusante, conclusão lógica da interpretação realizada a montante e da qual se retira a excepcionalidade ou bi-condicionalidade da norma em estudo
[66].
A circunstância de a definição da alínea
a) do artigo 2.º do RJUE não mencionar determinada hipótese, que pode estar incluída a partir de inferências materiais implícitas resultantes do padrão de relevância das normas urbanísticas e do ordenamento do território aplicáveis, não implica que do silêncio se deduza a exclusão dessa hipótese. Pelo contrário, é possível o raciocínio
a pari ou por paridade e a subsequente identificação e integração de uma lacuna normativa
[67].
7. A definição e as permissões fracas
O argumento de que as estruturas não incorporadas no solo não podem ser edificações para o RJUE também assume implicitamente uma permissão fraca ou negativa, no sentido de que tudo o que não for imposto nem proibido é permitido. Na dúvida prevalece a liberdade de acção (
in dubio pro libertate).
A operatividade das normas permissivas têm sido objecto de debate o qual, por deslocado, não nos cabe desenvolver
[68]. Mas ainda que se admita a existência de permissões fracas ou negativas, no sentido de que a indiferença do sistema normativo significa a permissão geral, este pressuposto só se aplica às normas de conduta ou a normas primárias que impõem, proíbem ou permitem comportamentos sobre a realidade exterior ao Direito
[69]. Não é generalizável às normas secundárias, sem qualquer operador deôntico associado, como sucede nas definições legais
[70]. Por outro lado, as permissões fracas ou negativas, enquanto equivalência pragmática de uma não-proibição, terão sempre o menor grau de protecção concebível perante a sua genericidade e não especificação
[71]. São, pois, permissões francamente débeis em relação a outras normas,
maxime impositivas, proibitivas ou permissões fortes ou positivas, como sucede com as normas sobre a ocupação dos solos, ordenamento do território e urbanismo.
8. A norma contra-ordenacional
Se se aceitar como boa a conclusão de que podem existir edificações atípicas sujeitas a controlo prévio urbanístico há que retirar todas as consequências, designadamente quanto ao regime sancionatório.
O RJUE qualifica como infracção contra-ordenacional a realização de quaisquer operações urbanísticas em desconformidade com o respectivo projecto ou com as condições do licenciamento ou da comunicação prévia
[72]. A infracção contra-ordenacional corresponde ao facto ilícito e censurável que preenche um tipo legal sancionado com coima
[73]. A tipicidade está concatenada ao princípio da legalidade, à norma sancionadora que fixa os pressupostos da sanção, constituídos por elementos objectivos que descrevem as características do ilícito ou as circunstâncias externas do facto (ilícito-típico).
A tipicidade da infracção contra-ordenacional, enquanto corolário do princípio da legalidade sancionatória, exige lei escrita, lei estrita, lei certa e lei prévia
[74]. Ou seja, consubstancia uma norma de clausura, à semelhança do que sucede no direito penal: se e apenas se, estiverem preenchidas as condições hipotéticas da proposição antecedente, correspondente à previsão da norma sancionatória, então ocorrerá a consequência jurídica (a sanção). Pelo que o raciocínio
a contrario é plenamente admissível.
Conforme referido no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 201/2014, de 3 de Março, Proc. n.º 70/2012, 1.ª Secção, Relatora: Maria Lúcia Amaral
[75]:
“Em síntese, retira-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade ao domínio contra-ordenacional que (i) embora tais princípios não valham “com o mesmo rigor” ou “com o mesmo grau de exigência” para o ilícito de mera ordenação social, eles valem “na sua ideia essencial”; (ii) aquilo em que consiste a sua ideia essencial outra coisa não é do que a garantia de protecção da confiança e da segurança jurídica que se extrai, desde logo, do princípio do Estado de direito; (iii) assim, a Constituição impõe “exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contra-ordenacional” que só se cumprem se do regime legal for possível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas como ainda antecipar com segurança a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito.”
Ou como referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13.05.2009, processo n.º 1818/08.1TALRA.C1, relator: Ribeiro Martins:
“1. Para uma conduta humana assumir a característica de infracção contra-ordenacional torna-se indispensável que coincida formalmente com a descrição feita numa norma legal que preveja, directa ou indirectamente, uma coima.
2. Pelo princípio da tipicidade fica-se a saber que cabe à lei e só a esta especificar quais os factos ou condutas que constituem uma contra-ordenação e quais os pressupostos que justificam a aplicação duma coima.”
Perante a actual definição de “edificação” (e de “construção modular”), a clausura promovida pelo princípio da legalidade sancionatória e da tipicidade objectiva impede a aplicação de coimas nos casos de edificações atípicas, seja para utilização humana (x
2) ou não (x
3). Neste caso, a característica de incorporação ou implantação constitui propriedade essencial para o antecedente (tipicidade) da norma da qual resulta a sanção contra-ordenacional. Muito menos será admissível a aplicação analógica, pois como é do domínio comum no direito sancionatório, por injunção da norma de clausura, não há lacunas carentes de preenchimento
[76].
9. Conclusão
Não obstante as sucessivas alterações legislativas ao Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, a definição da alínea
a) do artigo 2.º do RJUE mantém-se desde a versão inicial do Decreto-Lei n.º 555/99, de 16 de Dezembro. Por outro lado, o Decreto-Lei n.º 10/2024, de 8 de Janeiro (Simplex Urbanístico), não clarificou a definição em relação a estruturas atípicas, não incorporadas no solo, como sucede com a construção modular. Pelo contrário, adensou as dúvidas
[77].
Apesar de tudo, há razões ponderosas para defender, casuisticamente, que algumas edificações atípicas, sem a característica da incorporação no solo, devem submeter-se ao controlo urbanístico, relevando o critério de permanência no solo. Esta conclusão afigura-se consistente e coerente com a justificação ou padrão de relevância normativa do conjunto de normas relativas ao uso, ocupação e transformação dos solos e do ordenamento urbanístico em geral. Por outro lado, inscreve-se na interpretação enunciativa da definição legal de edificação, sem embargo de o
pedigree das normas definitórias admitirem a integração de lacunas ou a criação de normas de decisão a partir do sistema e subsistema normativos.
No que concerne ao regime sancionatório a conclusão afigura-se-nos oposta, por força da norma de clausura resultante do princípio da legalidade e da tipicidade objectiva das sanções contra-ordenacionais. A norma sancionatória prevê casos típicos, o que exclui todas as situações atípicas. Também por isso está proibida a analogia de normas sancionatórias, incluindo as normas definitórias pressupostas na norma punitiva.
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(disponíveis em
www.dgsi.pt)
[1] A propósito do problema, Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes,
Regime Jurídico da Urbanização e Edificação Comentado, 4.ª ed., Coimbra, Almedina, 2022, pp. 100-101, referem o seguinte:
“…novas formas de “edificação” como os pré-fabricados, as estufas (…)
e, mesmo, os contentores (…)
têm vindo a proliferar muitas vezes a reboque do entendimento que a instalação de tais actividades não carecem de qualquer controlo municipal. (…)
Julgamos que é hora de tais requisitos das “obras de edificação” passarem a ser entendidos de forma adequada, em especial o critério de permanência. Deverá bastar que esse critério se mostre cumprido que a construção, ainda que amovível, se instale no solo de forma estável e que a sua “deslocação” ou “desmontagem” do solo em que se implantou o comprometa, de tal forma que a sua instalação e reposição na situação anterior venham a carecer de intervenções de grande monta (movimentos de terras, infraestruturação, etc.) (…)
cada ramo da ordem jurídica tem a sua intencionalidade própria, devendo os conceitos ser lidos em consonância com ela”. Ainda que estejamos de acordo com a prevalência do critério de permanência – como demonstraremos adiante – e se compreenda a economia expositiva numa obra de anotação ao RJUE, salvo o devido respeito às ilustres autoras, e que é muito, o argumento pressupõe na conclusão a premissa carente de explicação. Ou seja, admite novas formas de “edificação” como os pré-fabricados, as estufas, contentores, etc., quando o que se pretende saber é, precisamente, em que medida essas novas formas podem ser consideradas como edificações perante a definição legal do RJUE. Por outro lado, a necessidade de
“intervenções de grande monta”, embora possa servir de indício, não é condição prevista na definição de edificação.
André Folque,
Curso de Direito da Urbanização e da Edificação, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 85 e 86, refere que
“…o legislador veio estabelecer uma ligação incindível entre a edificação – como actividade (trabalhos de construção civil) ou como resultado (o edifício) – e a incorporação no solo com carácter de permanência. Esta característica só não releva quando a actividade ou o resultado se encontrem orientados finalisticamente para a utilização humana. Então, em tal hipótese, mesmo que a operação leve uma incorporação precária, continuará a haver edificação (v.g. casas desmontáveis).” No entanto, o inciso
“…imóvel destinado para utilização humana…” não prescinde do conceito de imóvel e de prédio urbano, para além de que a ideia de uma “
incorporação precária” se nos afigurar heteróclita na busca de resposta para o fenómeno das casas desmontáveis.
[2] Artigo 9.º, n.
os 1 e 2 do Código Civil.
[3] Artigo 10.º, n.º 3 do Código Civil.
[4] Acórdãos do Supremo Tribunal Administrativo, de 14.02.2006, processo n.º 0600/05, relator: J. Simões de Oliveira, relativo à limpeza de terreno com sucata proveniente de actividade de reparação automóvel (aplicou-se o Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro); Supremo Tribunal Administrativo, de 27.09.2011, processo n.º 047658, relator: Gonçalves Loureiro, relativo à instalação de um
stand de automóveis constituído por um contentor móvel (também foi aplicado o Decreto-Lei n.º 445/91, de 20 de Novembro); Tribunal Central Administrativo Sul, de 01.03.2003, processo n.º 07535/02, relator: Francisco Rothes, a propósito do pagamen
to da contribuição autárquica incidente sobre caravana de tipo residencial instalada no mesmo alvéolo desde 1984 até ao final de 1998; Tribunal Central Administrativo Sul, de 02.11.2022, processo n.º 434/21.7 BELLE, relatora: Alda Nunes, relativo a sanção contra-ordenacional por instalação de toldos destinados à protecção de viaturas de aluguer estacionadas; e o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 12.01.2023, processo n.º 313/21.8BELLE, relatora: Dora Lucas Neto, sobre a demolição de estrutura modular, em solo rústico, para habitação. A jurisprudência citada tem como fonte o sítio
www.dgsi.pt, excepto quanto for indicado o contrário.
[5] Recomendação CNT 1/2019, disponível em
https://cnt.dgterritorio.gov.pt/recomendacoes (último acesso em 18.04.2023). A recomendação tem duas conclusões: (i)
“A interpretação adequada do RJUE impõe que as designadas estruturas amovíveis sejam objecto de controlo prévio da administração, por via dos elementos de conexão com infra-estruturas e dos elementos de suporte e ligação ao solo, ainda que não fixas ou menos perenes. (ii) Os princípios, objectivos e orientações dos instrumentos de gestão territoriais e, em particular, os regimes de uso do solo estabelecidos pelos planos territoriais são determinantes para a aferição da possibilidade de instalação de uma estrutura amovível, sendo a verificação da admissibilidade da utilização associada à mesma condição inicial da sua viabilidade”.
[6] John R. Searle, “What is language: some preliminar remarques”,
John Searl’s Philosophy of Language. Force, Meaning and Mind, ed. Savas L. Tsohatzidis, Cambridge, Cambridge University Press, 2007, pp. 18 ss.; Maria Gabriela Scataglini,
Seguimiento de reglas: el “aguijón pragmático” en la teoria del derecho, Madrid, Marcial Pons, 2021, pp. 27 e ss.; Maria José Frápolli,
The Priority of Propositions. A Pragmatist Philosophy of Logic, Switzerland, Springer Verlag, 2023, p. 33; Robert Brandom,
Making it Explicit. Reason, Representing and Discursive Commitment, Cambridge, Harvard University Press,1994, p. 82.
[7] Veja-se as alíneas
b) a
p) do artigo 2.º do RJUE, em que a expressão “edificação” apenas está ausente da alínea
m).
[8] Desde logo, na própria nomenclatura do Regime Jurídico da Urbanização e
Edificação. Veja-se os artigos 4.º, n.º 2, alínea
f):
“…obras de demolição das edificações…”; n.º 4, alíneas
e):
“…obras de construção…das quais não resulte edificação…”;
j):
“a edificação de piscinas associadas a edificaçãoprincipal”; n.º 5:
“a utilização de edifícios…”, todos do RJUE (sublinhados nossos).
[10] O termo “norma de decisão” é empregue no sentido preconizado por David Duarte,
A Norma de Legalidade Procedimental Administrativa – A Teoria da Norma e a Criação de Normas de Decisão na Discricionariedade Instrutória, Coimbra, Almedina, 2006, pp.161-196. Segundo o autor, a norma de decisão é
“…um conteúdo que resulta da conjugação de uma norma do conjunto normativo com os factos, integrando estes como factores de especificação dessa norma, deste modo significativamente mais densa. A norma de decisão, no que diz respeito aos seus efeitos, representa, assim, um estádio intermédio entre a norma do ordenamento e a realidade, pois é uma decisão configurada de forma normativa, generalizando os factos relevantes (concretos), numa metamorfose criativa de uma solução jurídica em que passam de características de uma situação específica a meras hipóteses descritivas da mesma. A natureza para-decisória da norma de decisão, se assim se pode dizer, significa, então, que o efeito nela contido pode ser visto tanto como um sentido deôntico individual como um sentido deôntico tipicamente normativo” (p. 165). As fases de formulação da norma de decisão passam pela determinação semântica, pela resolução de concorrências e conflitos de normas, e pela própria criação da norma de decisão.
[11] A norma parte de enunciados linguísticos, enquanto resultado da determinação sintáctica, semântica e pragmática de expressões e proposições que formam o enunciado normativo. Embora a roupagem ou a forma linguística sejam importantes para a determinação da norma, não são os únicos instrumentos aptos para a alcançar. A norma a retirar do enunciado não se confunde com o uso do enunciado nem com o código semântico: a interpretação do enunciado submete-se a diferentes destinatários (
v.g. académicos, juízes, advogados, administração, particulares), a linguagem natural não é plena de sentido (
v.g. polissemia, contradições, termos ambíguos, vagos ou genéricos); a realidade pode criar vácuos conceptuais; nem é incomum casos de infelicidade na redacção do enunciado normativo. Assim, “norma” e “enunciado normativo”, ainda que implicados, não são redutíveis, muito embora usualmente sejam mencionados em sinonímia. A propósito da distinção entre a “norma” e “enunciado normativo”, paradigmaticamente cf. Carlos E. Alchourrón ,”On Law and Logic”,
Ratio Juris, 9, n.º 4, 1996, p. 338; J. J. Gomes Canotilho,
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª ed., 15.ª reimpr., Coimbra, Almedina, 2003, pp. 1215 e ss.; Matthias Klatt,
Making the Law Explicit. The Normativity of Legal Argumentation, Oxford, Portland, Oregon, Hart Publishing, 2008, pp. 96 e 211 e ss.
[12] Sven Ove Hasson, “How to define – a tutorial”,
Princípios Revista de Filosofia, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, vol. 13, n.º 19-20, Jan-Dez, 2006, pp. 6-7, URL: https://periodicos.ufrn.br/principios/article/view/508, acedido em 23.10.2023.
[13] Miguel Teixeira de Sousa,
Introdução do Direito, Coimbra, Almedina, 2012, p. 231.
[14] Omnis definitio in iure civili periculosa est: parum enim, ut non subverti posset: “em direito civil toda a definição é perigosa, porque há pouco que não possa ser impugnado”,
Digesta, 50.17.202.
[15] João de Castro Mendes,
Introdução ao Direito, polic., Lisboa, 1977, p. 83, João Baptista Machado,
Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 17.ª reimpressão, Coimbra, Almedina, 2008, p. 96.
[16] Pedro Moniz Lopes,
Derrotabilidade Normativa e Normas Administrativas, parte I, Lisboa, AAFDL, 2019, pp. 86-87.
[17] David Duarte, “Conceptual norms: contrasting theories”,
Isonomia. Revista de Teoria y Filosofia del Derecho, n.º 58 2022, p. 33.
[18] A distinção hartiana entre normas primárias e normas secundárias é bem conhecida e damo-la aqui por pressuposta. Na síntese de David Duarte,
A Norma de Legalidade Procedimental Administrativa – A Teoria da Norma e a Criação de Normas de Decisão na Discricionariedade Instrutória, Coimbra, Almedina, 2006, pp. 876-877,
“as normas primárias são as que se reportam às condutas (e por isso ao mundo exterior ao direito), enquanto as normas secundárias são as normas que se reportam a outras normas (ou ao conjunto normativo, genericamente), sejam estas normas primárias ou secundárias”.
[19] João de Castro Mendes,
ob. cit., 1977, p. 83.
[20] Carlos E. Alchourrón, Eugenio Bulygin, “Definitiones y normas” (1983),
Análisis Lógico y Derecho, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1991, p. 451.
[21] As normas constitutivas definem as condições logicamente necessárias para realizar a acção, sem significado próprio fora das regras: por exemplo, as regras do jogo de xadrez constituem o próprio jogo, não existem para além dele. As regras regulativas respeitam a condições necessárias, mas cuja execução é logicamente independente por se referirem a comportamentos previamente existentes: a acção de não matar existe independentemente da regra “é proibido matar”. Noutro sentido, von Wright distinguiu as normas prescritivas das normas determinativas, em que nas primeiras há uma proibição, ordenação ou permissão, e nas segundas são definidas práticas (normas conceptuais) ou instituições sociais, determinando os padrões para realizar correctamente certas actividades. Ou seja, as normas constitutivas e regulativas, no sentido avançado por Searl, corresponderão às normas determinativas e prescritivas designadas por von Wright, respectivamente – cf. Jorge Luis Rodríguez,
Teoria Analítica del Derecho, Madrid, Marcial Pons, 2021, p. 52; Maria Beatriz Arriagada Cáceres, “Las “piezas” de Alchourrón y Bulygin”, AA. VV.
Eugenio Bulygin en la Teoría del Derecho Contemporánea, coord. José Juan Moreso, Pablo E. Navarro, Jorge L. Rodríguez, Jordi Ferrer Beltrán, vol. I, Madrid, Marcial Pons, 2022, p. 264. Noutro sentido ainda, as regras constitutivas são proposições analíticas e por isso não podem ser violadas (
v.g. a aquisição da maioridade produz-se sempre que alguém perfaça 18 anos); as regras regulatórias dizem respeito a proposições sintéticas, referentes a condutas e por isso podem ser violadas (
v.g. a prática de uma acção proibida por lei), cf. Miguel Teixeira de Sousa,
ob. cit. 2012, p. 223; Eugenio Bulygin, “On Norms of Competence”,
Law and Philosophy, vol. 11, 3, 1992, p. 213.
[22] Riccardo Guastini,
La Sintaxis del Derecho, Madrid, Marcial Pons, 2016, p. 60.
[23] João Baptista Machado,
ob. cit., 2008, p. 110.
[24] David Duarte, “Conceptual norms: contrasting theories”,
Isonomia. Revista de Teoria y Filosofia del Derecho, n.º 58, 2022, pp. 33, 42, 43 e 47.
[25] G. H. von Wright,
Norm and Action: a Logical Enquiry, New York, Routledge, 1963, I, §6 e ss. refere os costumes como tendo propriedades prescritivas (ainda que de modo implícito) resultantes da
“pressão normativa” no seu cumprimento; e características regulativas, isto é, constitutivas (cf. nota 22
supra), enquanto facto instituído.
[26] Matthias Klatt,
ob. cit., 2008, p. 112.
[27] A estrutura das normas de competência é debatida na doutrina. Em apertada síntese, há quem as reconduza a normas regulativas/prescritivas, em especial às normas permissivas, e quem as considere como normas determinativas/constitutivas quanto à
atribuição do poder, não se confundindo com a norma permissiva quanto ao seu
exercício. Para uma síntese, Eugenio Bulygin, “On Norms of Competence”,
Law and Philosophy, vol. 11, 3, 1992, pp. 201 e ss.; Pedro Moniz Lopes,
Derrotabilidade Normativa e Normas Administrativas, parte I, Lisboa, AAFDL, 2019, pp. 111 e ss.
[28] Defendendo que as normas de competência podem conter qualquer modo deôntico, em especial o modo de permissão, cf. David Duarte,
A Norma de Legalidade Procedimental Administrativa – A Teoria da Norma e a Criação de Normas de Decisão na Discricionariedade Instrutória, Coimbra, Almedina, 2006, p. 124; contra, distinguindo duas normas, ainda que acopladas, quanto à atribuição do poder e quanto ao modo do seu exercício, cf. Pedro Moniz Lopes,
Derrotabilidade Normativa e Normas Administrativas, parte I, Lisboa, AAFDL, 2019, pp. 120 e ss.
[29] Jorge Luis Rodríguez,
ob. cit., p. 249.
[30] As realidades abstractas extralinguísticas apenas são acessíveis através do sistema linguístico e só através dele é possível enunciar acções (inferências, asserções, etc.) que envolvam entidades abstractas, como sucede com as proposições, com os números e também com as normas. É possível compreender os predicados de primeira ordem ou de meta-nível através da proposição “os cavalos alados não existem”. Esta proposição inclui a existência da propriedade “cavalo alado” para afirmar a sua não existência. Mas se os cavalos alados não existem, a propriedade “cavalo alado” afirma a sua existência. Donde a inevitabilidade de paradoxos ou contradições (“existem cavalos alados que não existem”) ou afirmações triviais (“cavalos alados que não existem não existem”). Estes paradoxos resultam do equívoco em não se distinguir os predicados de existência de primeira e de segunda ordem. O predicado de primeira ordem ou em meta-nível denota compromisso ontológico a uma realidade abstracta e ficcional, expressa no termo “cavalo alado”, da qual resulta o conteúdo “cavalo” e “alado”, ou seja, “equídeo com asas e que voa”. O predicado de existência de segunda ordem afirma a não existência de tal figura ficcional no mundo real. Ou seja, no mundo actual um “equídeo com asas e que voa (= cavalo alado)” não existe. O que não impede a afirmação de que Pégaso exista no mundo da mitologia grega, cf. João Branquinho, “Acerca da forma lógica de afirmações de existência”,
Disputatio – International Journal of Philosophy, volume suplementar 1, 1998, pp. 4 e ss., URL: https://disputatio.com/, acedido em 23.10.2023, pp. 4 e ss.; Maria José Frápolli,
ob. cit., p. 18.
[31] Eduardo Buzaglo Paiva Raposo, AA.VV.,
Gramática do Português, org. Eduardo Buzaglo Paiva Raposo
et. all., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, vol. I, pp. 352-358 e vol. II, pp. 1290-1309, s/d.
[32] Pedro Moniz Lopes,
Derrotabilidade Normativa e Normas Administrativas, parte I, Lisboa, AAFDL, 2019, pp., 79 e 165. Por exemplo, a aparência categórica da norma
“a vida humana é inviolável”, do artigo 24.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, pode ser compreendida com a condicional implícita
ceteris paribus, isto é,
“em situações normais, a vida humana é inviolável”. O que implica que podem existir condições negativas ou conflitos normativos que retiram a aparência categórica daquela norma: por exemplo, a vida humana não é inviolável em situações de guerra ou de legítima defesa.
[33] Miguel Teixeira de Sousa,
ob. cit., p.207.
[34] Maria José Frápolli,
ob. cit., p. 16. O termo ou o conceito designa uma propriedade ou qualidade sem sujeito, por exemplo “sabedoria” ou “mortalidade”. O predicado é a expressão linguística que atribui qualidades ao sujeito ou objecto, ou seja, respeita à parte do enunciado que fornece informações, como sucede com os predicados “sábio” e “mortal” nas frases “Sócrates é sábio” ou “Sócrates é mortal”. As proposições são entidades abstractas, a expressão da ideia, utilizadas com intensão, enquanto significado de uma frase possível ou como conteúdo passível de ser expresso pela frase, sendo a partir de proposições que se formam os argumentos. As proposições não se confundem com as frases que a constituem. Frases diferentes podem exprimir a mesma proposição, como por exemplo “Sócrates era um filósofo” e “Sócrates was a philosopher”. Uma mesma frase também pode exprimir diferentes proposições, por exemplo a frase “eu sou o Presidente de Portugal”, afirmada pelo Presidente da República de Portugal é uma proposição (verdadeira), mas a mesma frase declarada pelo Presidente da República do Brasil exprime outra proposição (falsa).
[35] Carlos E. Alchourrón, Eugenio Bulygin,
Sobre la Existência de las Normas Jurídicas, México, Fontamara, 2002, pp. 15 e ss. À semelhança da semântica de Frege, trata-se da conclusão de que quando alguém afirma algo está a comprometer-se com aquilo que é afirmado.
[36] É na asserção que a linguagem e a realidade do mundo exterior se encontram. Há várias perspectivas sobre o que é a asserção. Para a perspectiva expressivista, a asserção é expressão de crenças; para a teoria dos jogos, a asserção é uma jogada na linguagem sujeita a regras constitutivas; na perspectiva informacional, assertar é acrescentar informação ao fundo partilhado num cenário conversacional ou comunicativo; numa perspectiva normativa, assertar é assumir um compromisso específico. Na verdade, a asserção implica todas estas dimensões, ainda que instâncias particulares possam dar mais relevo a determinada perspectiva em relação a outra, cf. Maria José Frápolli,
ob. cit., p. 13.
[37] Robert Brandom,
Making it Explicit. Reason, Representing and Discursive Commitment, Cambridge, Harvard University Press, 1994, pp. 82, 83 e ss.Recuperando o inferencialismo de Wittgenstein, Brandom defende a conexão da semântica inferencial com a pragmática, ao desenvolver uma concepção normativa implícita do uso da linguagem. Segundo o autor, o uso de uma frase é o conjunto de compromissos e titularidades associados à elocução pública dessa frase. Tendo a asserção como paradigma, enquanto actos julgáveis, quem assere está a comprometer-se com a sua defesa contra qualquer outra objecção ou desafio que outro interlocutor possa apresentar. A defesa adopta a forma de dar razões probatórias, inferindo a asserção de outra frase cuja elocução não esteja prontamente aberta a ser posta em causa. Este jogo de “
dar e pedir razões” cria um histórico (
scorekeeping), enquanto registo detalhado dos compromissos e de titularidades. As razões correctamente oferecidas a favor da frase F, e as normas de acordo com as quais F poderia correctamente ser apresentada como defesa de outras frases, são o que constituem o significado de F. Adoptando ou inspirando-se no inferencialismo deBrandom, cf. Matthias Klatt,
ob. cit., pp. 115 e ss. e 180 e ss.; Maria Gabriela Scataglini,
ob. cit., p. 219; Maria José Frápolli,
ob. cit., pp. 17 e 179-180.
[38] Pires de Lima, Antunes Varela,
Código Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, p. 195; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.01.2007, proc. n.º 06A4486, relator: Sebastião Póvoas.
[39] Neste sentido, J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, 2007,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 2007. p. 540.
[40] No seguimento da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o termo “domicílio” abrange rulotes, caravanas, tendas de campismo, quarto de hotel ou de pensão, o quarto de hospital, quando ocupado por doente, camarotes de navios ou até compartimentos de comboios, cf. Paulo Pinto de Albuquerque,
Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2021, p.811 e M. Miguez Garcia, J. M. Castela Rio,
Código Penal Parte Geral e Especial – com notas e comentários, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2015, p. 825.
[41] Segundo Fernanda Paula Oliveira, Maria José Castanheira Neves, Dulce Lopes,
ob. cit. p. 622, o conceito de domicílio previsto no artigo 95.º, n.º 2 do RJUE compreende
“…apenas o local da habitação e não toda a área “do portão para dentro” ou dentro dos limites da propriedade…”.
[42] Miguel Nogueira de Brito,
A Justificação da Propriedade Privada numa Democracia Constitucional, Coimbra, Almedina, 2007, pp. 907 e ss.; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 115/2021, relatora: Maria José Rangel Mesquita, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt (última consulta em 15.01.2024).
[43] María José Frápolli,
ob. cit., p. 21.
[44] As frases têm outras frases como consequência lógica e, como tal, implicam-nas, mas há muitas maneiras de elocuções implicarem linguisticamente coisas, factos ou situações que não são estritamente consequências lógicas. As elocuções podem transmitir significados subentendidos relevantes, tendo informação de fundo reciprocamente pressuposta. Por exemplo, a asserção “o João tem mais de 1,70m” permite inferir que tem menos de três metros, embora textualmente não afirme isso. Não se nega, contudo, que a comunicação de conteúdos legais contém especificidades: a natureza institucional, a autoria indeterminada (na figura difusa do “legislador”) ou os objectivos estratégicos na busca de ganho da causa, distinguem-se da comunicação conversacional usual, de base relacional, com autoria determinada e a partir de objectivos cooperativos na busca do significado. Mas estas diferenças não impedem que o conteúdo da norma possa ser (como é amiúde) pragmaticamente enriquecido, especialmente nos casos difíceis ou duvidosos e que a derrotabilidade normativa é apenas um exemplo, cf. Izabela Skoczeń,
Implicatures within Legal Language, Switzerland, Springer, 2019, pp. 47-48, e pp. 141 e ss.; Andrei Marmor, “The Pragmatics of Legal Language”,
Ratio Juris, vol. 21, n.º 4, 2008, pp. 423-452; Idem, “Defeasibility and Pragmatic Indeterminacy in Law”,
Pragmatics and Law. Philosophical Perspectives, ed. Alessandro Capone, Francesca Poggi, Switzerland, Springer, 2016, pp. 15-32.
[45] Fernando Alves Correia,
Manual de Direito do Urbanismo, vol. I, 4.ªed, Almedina, Coimbra, 2012, p. 64; João Miranda,
A Função Pública Urbanística e o seu Exercício por Particulares, Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 191, 192 e 253.
[46] Veja-se, em especial, o artigo 65.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa; artigos 4.º, n.º 2, 8.º, n.º 1 e 2, 10.º, n.º 2 e n.º 4, 13.º, n.º 3, 16.º, n.º 1, 20.º, n.º 1, 37.º, 58.º da Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio – Lei de Bases Gerais da Política Pública de Solos, de Ordenamento do Território e de Urbanismo.
[47] José de Oliveira Ascensão,
Direitos Reais, Coimbra, Coimbra Editora, 1978, p. 111 e nota 1.
[48] António Menezes Cordeiro,
Tratado de Direito Civil Português – I – Parte Geral, tomo II, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2002, p. 118.
[49] A característica
p é condição suficiente para a característica
q se, e apenas se, o que contiver
p também contiver
q; a característica
p é condição necessária para a característica
q se, e apenas se, o que não contiver
p também não contém
q. Exemplificando: o elemento químico mercúrio é condição suficiente para ser metal, mas não é condição necessária pois há outros metais que não o mercúrio. Já a propriedade de “ser metal” é condição necessária para o elemento químico mercúrio.
[50] Propugnando pela natureza taxativa, Henrich Ewald Hörster
A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, vol. I, Coimbra, Almedina, 1992, p. 183; Luís A. Carvalho Fernandes,
Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, 1992, pp. 676-679; em sentido contrário, defendendo a natureza exemplificativa, José de Oliveira Ascensão,
Direitos Reais, Coimbra, Coimbra Editora, 1978, p. 110; António Menezes Cordeiro,
ob. cit., p. 120, José Alberto Vieira,
Direitos Reais, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, p. 145; A. Santos Justo,
Direito Reais, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 122.
[51] Sobre a interpretação evolutiva e actualista, José de Oliveira Ascensão,
O Direito Introdução e Teoria Geral, 13.ª ed. refundida, Coimbra, Almedina, 2005, p. 406.
[53] Artigo 10.º, n.
os 2 e 3 da Lei n.º 31/2014, de 30 de Maio.
[54] Pedro Moniz Lopes,
Derrotabilidade Normativa e Normas Administrativas, parte I, Lisboa, AAFDL pp. 250 e ss.; Idem, “Implications of Genericity on the (In)Consistency and (In)Completeness of Legal Systems”,
Ius Dictum – Revista de Teoria Geral do Direito, 8, Setembro, 2022, p. 39, URL: https://iusdictum.com/numeros/, acedido em 07.09.2023.
[55] A propósito da discrição judicial, H. L. A. Hart “Discretion”,
Harvard Law Review, vol. 127, n.º 2, 2013, pp. 658-658, URL: https://harvardlawreview.org/print/vol-127/discretion/, acedido em 11.01.2024, resume-a assim:
“…discretion is after all the name of an intellectual virtue: it is a near-synonym for practical wisdom or sagacity or prudence; it is the power of discerning or distinguishing what in various fields is appropriate to be done and etymologically connected with the notion of discerning” (p. 656); em suma,
“…a certain kind of wisdom or deliberation guiding choice” (p. 658).
[56] Jordi Ferrer Beltrán, Giovanni B. Ratti, “Validity and Defeasibility in the Legal Domain”,
Law and Philosophy, 29, 2010, pp. 601-626; MIguel Teixeira de Sousa,
ob. cit., p. 219, Luís Duarte D’Almeida,
Allowing for Exceptions: A Theory of Defences and Defeasibility in Law, Oxford, Oxford University Press, 2015, pp. 19 e ss.; Pedro Moniz Lopes,
Derrotabilidade Normativa e Normas Administrativas, parte I, Lisboa, AAFDL 2019, pp. 213 e ss.; Jorge Luis Rodríguez,
ob. cit., pp. 741-742; Riccardo Guastini, “Defettibilità, lacune assiologiche, e interpretazione”,
Revus – Journal for Constitutional Theory and Philosophy of Law, [online], 14, 2010, §6, URL: http://journals.openedition.org/revus/1342; URL: https://doi.org/10.4000/revus.1342, acedido em 27.09.2023.
[57] Riccardo Guastini, “Defettibilità, lacune assiologiche, e interpretazione”,
Revus – Journal for Constitutional Theory and Philosophy of Law, [online], 14, 2010, §25, URL: http://journals.openedition.org/revus/1342; URL: https://doi.org/10.4000/revus.1342, acedido em 27.09.2023. Como exemplo de uma decisão sobre lacunas axiológicas, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03.04.2014, processo n.º 436/07.6TBVRL.P1.S1, relator: Álvaro Rodrigues, que reconheceu o direito a uma indemnização ao nascituro, por falecimento do progenitor, apesar de o artigo 66.º do Código Civil prever o começo da personalidade jurídica no momento do nascimento completo e com vida.
[58] Pedro Moniz Lopes, “Implications of Genericity on the (In)Consistency and (In)Completeness of Legal Systems”,
Ius Dictum – Revista de Teoria Geral do Direito, 8, Setembro, 2022, p. 28, URL: https://iusdictum.com/numeros/, acedido em 07.09.2023.
[59] Klaus Günther,
Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação, trad. Luiz Moreira, São Paulo, Landy, 2004, pp. 39-57 e 335 e ss., distingue a
aplicação da norma, associada à adequação entre todas as características e todas as normas envolvidas no caso (
things being equal); e a
justificação da norma, relativa à validade ou às razões para a sua aceitação ou para a sua modificação (
all things considered).
[60] Miguel Teixeira de Sousa,
ob. cit., 2012, p. 311.
[61] Karl Larenz,
Metodologia da Ciência do Direito, trad. José Lamego, 3.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1991, pp. 655 e ss.
[62] Pedro Pais de Vasconcelos,
Contratos Atípicos, Coimbra, Almedina, 1995, pp. 24 e ss.
[64] Carlos E. Alchourrón, Eugenio Buligyn,
Systemas Normativos. Introducción a la metodologia de las ciências jurídicas, 2.ª ed., Buenos Aires, Astrea, 2012, pp. 167 e ss.; Pablo E. Navarro, “Normas permissivas y clausura de los sistemas normativos”,
Isonomia. Revista de Teoria y Filosofia del Derecho, n.º 34, 2011, pp. 111 e ss.; Pedro Moniz Lopes, “Implications of Genericity on the (In)Consistency and (In)Completeness of Legal Systems”,
Ius Dictum – Revista de Teoria Geral do Direito, 8, Setembro, 2022, p. 40, URL: https://iusdictum.com/numeros/, acedido em 07.09.2023. Exemplo típico de uma norma de clausura é a norma-princípio de direito penal
nulla poena sine lege, entendida como “ninguém pode ser criminalmente punido sem uma lei prévia”. A clausura do sistema penal resulta do artigo 27.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e do 1.º, n.º 1 do Código Penal. Nesta última norma, a proposição
“só pode ser punido criminalmente…” é uma bi-condicional, no sentido de
se, e apenas se, verificar o antecedente da norma (
“…o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática”), o agente pode ser punido criminalmente. O mesmo sucede com o princípio da legalidade tributária no artigo 103.º da Constituição da República Portuguesa e artigo 11.º da Lei Geral Tributária.
[65] José de Oliveira Ascensão,
O Direito Introdução e Teoria Geral, 13.ª ed. refundida, Coimbra, Almedina, 2005, p. 452.
[66] Carlos Maximiliano,
Hermenêutica e Aplicação do Direito, 6.ª ed., São Paulo, Livraria Freitas Bastos, 1957, pp. 303-304; David Duarte, “On the a contrario argument: much ado about nothing”,
Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, LIV. n.
os 1 e 2, Lisboa, pp. 41 e ss.; Pedro Moniz Lopes, “Implications of Genericity on the (In)Consistency and (In)Completeness of Legal Systems”,
Ius Dictum – Revista de Teoria Geral do Direito, 8, Setembro, 2022, p. 40, URL: https://iusdictum.com/numeros/, acedido em 07.09.2023.
[67] Artigo 10.º, n.º 1 e 11.º do Código Civil.
[68] Sobre a questão, Manuel Atienza, Juan Ruiz Manero,
Las Piezas del Derecho. Teoría de los enunciados jurídicos, Barcelona, Editorial Ariel, 1999, pp. 91 e ss.; Pablo E. Navarro,
ob. cit., pp. 109 e ss.; Carlos E. Alchourrón, Eugenio Bulygin,
Systemas Normativos. Introducción a la metodologia de las ciências jurídicas, 2.ª ed., Buenos Aires, Astrea, 2012, pp. 167 e ss.; David Duarte, “Os argumentos de interdefinibilidade dos modos deônticos em Alf Ross: a crítica, a inexistência de permissões fracas e a completude em matéria de normas primária”,
Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, vol. XLIII, n.º 1, Lisboa, 2002, pp. 257 e ss.
[69] David Duarte, “Os argumentos de interdefinibilidade dos modos deônticos em Alf Ross: a crítica, a inexistência de permissões fracas e a completude em matéria de normas primária”,
Revista da Faculdade de Direito de Lisboa, vol. XLIII, n.º 1, Lisboa, 2002, p. 277.
[70] Ou em relação a normas de competência ou de atribuição de poderes.
[71] Pedro Moniz Lopes, “Implications of Genericity on the (In)Consistency and (In)Completeness of Legal Systems”,
Ius Dictum – Revista de Teoria Geral do Direito, 8, Setembro, 2022, p. 50, URL: https://iusdictum.com/numeros/, acedido em 07.09.2023.
[72] Artigo 98.º, n.º 1, alínea
b) e n.º 3 do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação. Recorda-se que a definição de “operações urbanísticas” remete para a definição de edificação (artigo 2.º, n.º 1, alínea
j) do RJUE:
“as operações materiais de urbanização, de edificação…”).
[73] Artigo 1.º do Regime Geral das Contra-Ordenações.
[74] Artigo 29.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa; artigos 1.º e 32.º do Regime Geral das Contra-Ordenações. Cf. Augusto Silva Dias,
Direito das Contra-Ordenações, Coimbra, Almedina, 2018, pp. 67 e 77.; Jorge Figueiredo Dias, “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”,
Jornadas de Direito Criminal, Centro de Estudos Judiciários, 1996, p. 330; Paulo Pinto de Albuquerque,
Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p.34.
[76] Artigo 1.º, n.º 3 do Código Penal, artigo 37.º do Regime Geral das Contra-Ordenações; cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.10.2007, processo n.º 07P0809, relator: Rodrigues da Costa.
[77] Como proposta de direito a constituir, eis uma possível redacção da norma definitória de “edificação”, de modo a abranger, sem dúvidas, a construção modular permanente:
““Edificação”, a actividade ou o resultado da construção, reconstrução, ampliação, alteração ou conservação de imóveis destinadas à utilização humana, bem como de qualquer outra construção que se incorpore no solo com carácter de permanência, incluindo a construção modular de carácter permanente, caracterizada por utilizar elementos ou sistemas construtivos modulares, estruturais ou não estruturais, parcial ou totalmente produzidos em fábrica, previamente ligados entre si ou no local de instalação, independentemente da sua natureza amovível ou transportável.”