The Portuguese legislator's choice to regulate the sale of defective goods within the framework of misrepresentation and “culpa in contrahendo” was criticized from the outset, and some of Portugal's most illustrious jurists have spoken out about it; more than fifty years after the Civil Code came into force, and although the question remains open, the prevailing view, particularly among the Supreme Court of Justice, seems to be that the regime for the sale of defective goods provided for in articles 913 and ss. of the Civil Code combines aspects of misrepresentation and breach. Perhaps in contrast, an interpretative hypothesis is being put forward, albeit in broad strokes, in line with what appears to have been the legislative option.
1. A querela doutrinal
O presente artigo foi escrito para homenagear o Professor Pedro Romano Martinez, testemunhando a estima do autor, por ele e sua mulher, Paula Ponces Camanho, colega de curso e escritório de longa data.
Escolheu-se como tema o regime da venda de coisas defeituosas, matéria que, na sua notável dissertação de doutoramento sobre o cumprimento defeituoso
[1], o Professor Pedro Romano Martinez abordou com inegáveis brilho e desenvolvimento. No essencial, e para o que aqui releva, nela defendeu, em termos reconhecidamente inovadores, que o mencionado regime, previsto nos artigos 913.º e ss. Código Civil
[2], constitui uma disciplina especial face ao regime regra (ou geral) do cumprimento defeituoso
[3].
Regime especial esse que só na aparência remeteria para o erro
[4], deste último apenas em sentido impróprio podendo falar-se
[5].
No contexto desta abordagem, seriam, assim, de rejeitar, não só a posição “tradicional” do erro defendida por Inocêncio Galvão Telles
[6] e, na esteira deste, por outros autores
[7], mas, também,
p. ex., a posição defendida por Fernando Pires de Lima e João Antunes Varela, para os quais o regime da venda de coisas defeituosas é um
regime especial, assente, ora no erro, ora no defeito
[8], a posição sufragada por João Calvão da Silva, para quem o regime da venda de coisas defeituosas é um
regime misto ou híbrido, que combina aspetos do erro e do cumprimento
[9], e a posição proposta por João Baptista Machado, no entender do qual o regime da venda de coisas defeituosas é um
regime sui generis, fundado no contrato, mas dependente do erro
[10].
Recentemente, António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto pronunciaram-se sobre o assunto, sustentando que o hibridismo avançado por João Calvão da Silva ficaria a dever-se à existência de
zonas de sobreposição, ou seja, à existência de situações em que a vontade do comprador se forma na convicção errada de que a coisa concreta (específica) tem as qualidades devidas, por serem qualidades normais ou por terem sido garantidas
[11]. No seu entender, o regime da venda de coisas defeituosas seria híbrido, combinando aspetos do erro e do cumprimento, conforme proposto por João Calvão da Silva, em virtude da existência de situações em que o comprador está em erro sobre as qualidades devidas
[12], o mesmo é dizer, pelo facto de a existência destas últimas não excluir necessariamente o erro
[13].
2. A posição do STJ
Ao longo das duas últimas décadas, e apesar da existência de diferenças, por vezes significativas, entre algumas das suas decisões
[14], o Supremo Tribunal de Justiça parece ter convergido em torno de um esquema decisório cujos contornos essenciais, no que interessa para a nossa indagação, são os que se seguem
[15].
A coisa vendida é defeituosa no sentido do artigo 913.º se não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou não for idónea para desempenhar a sua função contratual ou, na falta desta, a sua função normal.
Sempre que tal suceda, o comprador pode exercer os direitos previstos nos artigos 913.º e ss.: o direito à anulação, o direito à redução do preço, o direito a exigir a substituição ou reparação da coisa e, ainda, o direito a ser indemnizado pelos danos sofridos.
Estes direitos atribuídos ao comprador formam “dois blocos juridicamente distintos, podendo inclusivamente haver uma relação de exclusão entre os direitos respetivos (o exercício do direito à reparação da coisa, por exemplo, exclui a anulação por erro, e vice-versa). Na realidade, o direito à anulação do contrato conferido ao comprador […], tem por substrato um vício na formação da vontade (erro-vício), e não o conteúdo obrigacional vinculativo do contrato. […]. Já os demais meios de tutela da posição do comprador, […], só podem ser vistos como encontrando a sua razão de ser ou justificação na não realização da prestação como seria contratualmente devida, ou seja, na inexecução (realização imperfeita ou imprópria) do programa contratual estabelecido ou pressuposto pelas partes […], constituindo o correlato da obrigação contratual nuclear de entrega de uma coisa que preencha o que foi contratado. A reparação ou a substituição da coisa visa a um tempo a restauração in natura e a realização específica da prestação contratada (direito ao cumprimento); a redução do preço visa uma adaptação do preço ao valor da coisa efetivamente prestada (ajustamento do sinalagma).”
[16].
No caso de anulação, a indemnização tem for finalidade a satisfação do interesse contratual negativo, ao passo que, nos demais casos, mormente de substituição e reparação da coisa, de redução do preço ou de incumprimento da obrigação de substituir ou reparar a coisa, nenhuma particularidade se coloca, destinando-se a mesma à “reparação do dano que do imperfeito desempenho contratual […] advém para o comprador […]”.
Admitida é também a possibilidade de reagir à venda de coisa defeituosa [que implique um desvio ao programa contratual] nos termos gerais
[17], designadamente através da resolução do contrato
[18] ou de ação de “responsabilidade civil pelo interesse contratual positivo decorrente do cumprimento defeituoso ou inexato, presumidamente imputável ao devedor.”
[19].
Quanto à questão nuclear de saber se o defeito configura uma situação de cumprimento defeituoso
[20] ou uma situação de erro
[21], tudo está em saber se a qualidade em falta é ou não devida
ex pacto: “Se as qualidades da coisa ingressaram no conteúdo do contrato, o problema é de incumprimento ou de cumprimento defeituoso e se essas qualidades, embora motivando e determinando o comprador, não entrarem no contrato, o problema só pode ser de erro que não de incumprimento”
[22].
3. Uma nova(?) hipótese interpretativa
Depois de revisitarmos a matéria
[23], pareceu-nos que o tema não estava encerrado apesar de sobre ele se terem pronunciado alguns dos mais proeminentes juristas portugueses
[24].
Afigurou-se-nos, para além disso, que as soluções vertidas nos artigos 913.º e ss., não obstante todas as críticas que lhes foram dirigidas
[25], podiam ser (bem) explicadas
no quadro da opção do legislador luso e, fundamentalmente, da teoria do erro[26]. Ora, na ausência de elementos hermenêuticos em sentido contrário
[27], a opção do legislador luso deverá ser respeitada
[28].
É esta hipótese explicativa (interpretativa) que se avança e expõe
[29],
a traço largo[30], nas linhas que se seguem.
4. Os direitos atribuídos ao comprador
O artigo 913.º, n.º 1, reza assim: “Se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que é destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização daquele fim, observar-se-á, com as devidas adaptações, o prescrito na secção precedente [relativa à venda de bens onerados], em tudo quanto não seja modificado pelas disposições dos artigos seguintes.”
[31].
Da remissão do artigo 913.º para o regime da venda de bens onerados resulta, no essencial, o seguinte:
a) Que “o contrato [de compra e venda de coisa defeituosa] é anulável por erro ou dolo, desde que no caso se verifiquem os requisitos legais da anulabilidade.” (artigo 905.º);
b) Que, “[se] as circunstâncias mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido [as coisas], mas por preço inferior, apenas lhe caberá o direito à redução do preço, em harmonia com a desvalorização resultante dos [defeitos]” (artigo 911.º);
c) Que o comprador em erro tem direito a ser indemnizado pelos danos sofridos (artigos 908.º e 909.º, com a modificação prevista no artigo 915.º)
[32].
Para além disso, o artigo 914.º consagra, como imprescindível especialidade
[33], no dizer do autor dos trabalhos preparatórios
[34], que “o comprador tem o direito de exigir do vendedor a reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a substituição dela”
[35].
5. “Qualidades asseguradas” e erro
Face ao teor do artigo 913.º, n.º 1, a tese do erro parece ferida de morte: se o vendedor
assegura ao comprador que a coisa vendida tem determinadas qualidades, a falta destas constituirá incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato por parte do vendedor, submetido ao regime especial
[36] que os artigos 913.º e ss. consagrariam.
Apesar da sua aparente força, parece-nos que este argumento, que é amiúde esgrimido pelos autores que rejeitam a tese do erro, não colhe, mesmo que por qualidades asseguradas pelo vendedor se entenda “qualidades prometidas e garantidas”
[37] e não apenas “qualidades representadas” (entendidas, no contexto deste artigo, como qualidades objeto de declarações de ciência, o mesmo é dizer, como qualidades enunciadas, descritas, afirmadas).
Porquê? Porque, ao disciplinar a venda de coisas defeituosas no quadro do erro, o legislador está a olhar e a considerar os vícios da coisa vendida como objeto da falsa representação da realidade por parte do vendedor e não por si mesmos ou como manifestações do cumprimento defeituoso do contrato por parte do vendedor,
Por outras palavras: a
questão que o legislador
coloca e a que
responde através da disciplina da venda de coisas defeituosas
[38]não tem que ver, nem com os defeitos da coisa, nem com o cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte do vendedor, mas, sim, com a circunstância de o comprador ter formado a sua vontade na convicção errada de que a coisa comprada tinha determinadas qualidades
[39].
O que está em causa é saber se e em que condições a falsa representação das qualidades da coisa por parte do comprador justifica que lhe sejam atribuídos os direitos de anular o contrato, reduzir o preço ou exigir a reparação ou substituição da coisa
[40]. A causa jurídica, a “
factie specie” do regime da venda de coisas defeituosas é a falsa representação das qualidades da coisa por parte do comprador.
A ser assim, como julgamos ser, a finalidade, a
razão de ser do regime da venda de coisas defeituosas residirá na composição dos interesses que tipicamente conflituam nestas situações da vida e que, resumidamente, são a
autonomia de vontade do declarante, a
confiança do declaratário e a
segurança do tráfico jurídico.
A esta luz, afigura-se-nos que por “qualidades asseguradas pelo vendedor” se devem entender, desde logo, e em
primeiro lugar, as “qualidades representadas” pelo vendedor, isto é, as qualidades que o vendedor declara (assevera, assegura) que a coisa possui, mas que, todavia, não promete nem garante que a coisa tem
[41].
Para além disso, e em
segundo lugar, devem também considerar-se “qualidades asseguradas pelo vendedor” as “qualidades devidas”, as qualidades que o vendedor promete ou garante (assevera, assegura) que a coisa tem.
O comprador, qualquer comprador, de uma coisa, de uma qualquer coisa, deve poder formar a sua vontade de comprar confiando que a coisa que lhe é vendida tem, pelo menos, as “qualidades representadas, prometidas e garantidas” pelo vendedor.
Questão diferente, a responder posteriormente, é a de saber se o regime da venda de coisas defeituosas previsto nos artigos 913.º e ss. consagra soluções compatíveis com a sobredita opção legislativa e, não sendo esse o caso, em que moldes devem ser (re)interpretadas as expressões em apreço.
Veremos, todavia, que não é isso que sucede, muito pelo contrário, e, nessa medida, que não há em boa verdade fundadas razões para rever a interpretação inicialmente avançada.
Consentânea com a opção legislativa, a interpretação avançada tem também pleno cabimento na
letra da lei, afigurando-se-nos não ser sequer necessário argumentar que tem nesta, pelo menos, um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. conforme exigido pelo artigo 9.º, n.º 2
[42].
6. “Qualidades próprias” e erro
As considerações anteriores valem, com as necessárias adaptações, para a venda de coisas que sofrem de vício que as desvaloriza ou impede a realização do fim convencional ou normal a que são destinadas, ou a que faltam as qualidades necessárias para a realização deste fim.
Na verdade, o legislador equiparou estas últimas, comumente designadas “qualidades próprias” ou “qualidades próprias das coisas do mesmo género [tipo]”, às “qualidades asseguradas”.
Deste modo, o comprador, qualquer comprador, de uma coisa, de uma qualquer coisa, deve poder formar a sua vontade de comprar confiando que a coisa que lhe é vendida tem, pelo menos, não só as “qualidades representadas, prometidas e garantidas pelo vendedor”, mas, para além destas, as qualidades próprias das coisas do mesmo género ou tipo.
À semelhança do que vimos suceder com as “qualidades asseguradas” pelo vendedor, as denominadas “qualidades normais” referidas no artigo 913.º, n.º 1, independentemente de serem qualidades não declaradas, “representadas” ou devidas, são, pois, também elas, qualidades que o comprador pode legitimamente confiar (pressupor) existirem na coisa comprada.
No que se refere à relevância do fim e à declaração sobre o fim, julgamos valer a pena chamar à colação algumas das considerações tecidas por António Pinto Monteiro no seu opusculo Erro e Vinculação Negocial “a propósito da aplicação do bem a fim diferente do declarado”
[43].
A
primeira é a de que a relevância jurídica da declaração sobre o fim a que a coisa vendida é destinada depende do que vier a ser apurado em sede de interpretação-integração do contrato, podendo concluir-se que o fim releva “apenas” no plano dos motivos (e do
erro) ou no plano da vinculação contratual (e do
cumprimento).
A
segunda é a de que o mero conhecimento desse fim por parte do vendedor ou a mera referência a esse fim no contrato de compra e venda não são suficientes para afirmar que o vendedor está obrigado a entregar uma coisa com as qualidades necessárias àquele fim. Sendo certo, todavia, como também salienta António Pinto Monteiro, que do âmbito da vinculação negocial fazem parte “não só as obrigações que expressa ou tacitamente decorrem do acordo das partes, mas, também, designadamente, todos os deveres que se fundam no princípio da boa-fé e se mostram necessários a integrar a lacuna contratual”.
7. Formação da vontade, “culpa in contrahendo” e confiança
Em jeito de síntese, quanto a este primeiro ponto, talvez se possa afirmar, porventura com alguma simplificação, o seguinte: à luz da hipótese interpretativa avançada, as qualidades a que alude o artigo 913.º, n.º 1, são as qualidades da coisa vendida que o comprador, na
formação da respetiva
vontade, pode
confiar,
pressupor, representar que a coisa tem, por isso mesmo que
[44](
i) foram
asseguradas pelo vendedor ou (
ii) são as
próprias,
habituais ou
usuais das coisas do mesmo género ou tipo
[45].
No regime da venda de coisas defeituosas, o legislador limita a proteção do comprador à representação das qualidades das coisas que assenta nas declarações emitidas pelo vendedor – parecendo não haver motivo para distinguir, quanto a estas, as qualidades objeto de
declarações de ciência das qualidades objeto de
declarações negociais[46] – e na normalidade das coisas do mesmo género ou tipo
[47].
Não estranhará por isso que o regime da venda de coisas defeituosas gravite em torno do (des)conhecimento do defeito pelo comprador e da “
culpa in contrahendo” do vendedor
[48] (cf. artigos 905.º, 908.º, 909.º, 911.º, 914.º, segunda parte, 915.º e 921.º, n.º 1). Assim como não surpreenderá por certo que os interesses em presença, e a cuja composição aquele regime procede, sejam os interesses da autonomia de vontade do contraente em erro, da confiança da contraparte e, finalmente, da segurança do tráfego jurídico.
Se à coisa faltarem as mencionadas qualidades, e o comprador desconhecer tal falta, existirá uma falsa representação da realidade (das qualidades da coisa) por parte do comprador, que a comprou confiando erradamente que ela tinha aquelas qualidades
[49].
Em suma: o regime da venda de coisas defeituosas assenta na falsa representação da realidade (falsa representação das qualidades da coisa) por parte do comprador no momento da celebração do contrato e não numa deficiente execução no cumprimento do dever obrigacional por parte do vendedor.
Em particular, e no que às qualidades prometidas ou garantidas diz respeito, o que nele está em causa não são as consequências do incumprimento, por parte do vendedor, da obrigação de entregar a coisa com as qualidades acordadas, mas, sim, os efeitos decorrentes da circunstância de o comprador a ter comprado confiando erradamente que ela tinha aquelas qualidades (para além das “qualidades representadas” pelo vendedor e das qualidades habituais).
8. Finalidade do regime legal e direitos atribuídos ao comprador
A tese do erro estaria igualmente ferida de morte por uma segunda razão, também ela de fundo e de monta, a saber, a circunstância de o erro não ser de molde a explicar o regime previsto nos artigos 913.º e ss., cujas soluções seriam, antes, as que são próprias do cumprimento defeituoso
[50].
O erro do comprador seria incapaz de explicar, em particular, (1.º) o direito de exigir a reparação ou substituição da coisa, que mais não seria do que a manifestação do direito ao cumprimento
[51], do que o “correlato da obrigação nuclear de entrega de uma coisa que preencha o que foi contratado”
[52] (2.º) a indemnização prevista nos artigos 909.º e 915.º, (3.º) o direito de exigir a redução do preço, (4.º) a sujeição do comprador aos prazos curtos de caducidade previstos nos artigos 916.º e 917.º e (5.º) a não aplicação destes prazos ao vendedor
[53].
Pela sua relevância, concentrar-nos-emos na controvertida obrigação de reparação ou substituição da coisa vendida prevista no artigo 914.º
[54].
A obrigação de reparação ou substituição da coisa defeituosa é vista, maioritariamente, tanto na doutrina
[55], como na jurisprudência
[56], como expressão do direito ao cumprimento, do direito do comprador de exigir que o vendedor cumpra aquilo a que se obrigou, entregando uma coisa sem defeitos
[57]. Ela visaria, pois, a colocação do comprador na situação em que ele estaria se o contrato de compra e venda tivesse sido pontualmente cumprido pelo vendedor (interesse contratual positivo). Também por esta via ficaria demonstrada, pois, a inadequação da tese do erro.
Não cremos que seja assim. Como vimos, no quadro do erro, a finalidade do regime da venda de coisas defeituosas, incluindo das pretensões indemnizatórias nele previstas, é a de colocar o comprador na situação em que ele estaria se não estivesse em erro, se não tivesse confiado, fundadamente, que a coisa tinha as qualidades enunciadas no artigo 913.º, ou seja, se conhecesse o defeito.
Finalidade essa que o legislador prossegue conferindo ao comprador o direito a anular o contrato (o comprador não teria comprado a coisa se conhecesse os seus defeitos), o direito de exigir a redução do preço (o comprador teria comprado a coisa defeituosa por um preço menor se conhecesse os seus defeitos) e o direito de exigir a reparação ou substituição da coisa comprada (o comprador teria comprado a coisa defeituosa, mas, se conhecesse os seus defeitos, teria exigido e negociado com o vendedor a reparação ou substituição da coisa para que a mesma passasse a estar em conformidade com a representação que dela fez)
[58].
Em qualquer uma das situações descritas, a finalidade dos direitos atribuídos ao comprador e das obrigações impostas ao vendedor, incluindo, portanto, a obrigação de reparar ou substituir a coisa, é a de colocar o comprador na situação em que ele estaria se não tivesse comprado em erro, se não tivesse confiado que a coisa tinha as qualidades enunciadas no artigo 913.º (interesse contratual negativo)
[59].
Debalde se procura, pois, fundamentar a obrigação de reparar ou substituir a coisa no interesse do comprador no cumprimento do contrato de compra e venda
[60].
Como, aliás, parece comprovar-se pelo facto de sobre o vendedor não impender tal obrigação se o mesmo desconhecia, sem culpa, o defeito da coisa
[61], solução que encontra arrimo e reflete, justamente, a ponderação entre a confiança do comprador, que confiou que a coisa vendida tinha as qualidades asseguradas pelo vendedor e as qualidades próprias das coisas do mesmo género, e a conduta pré-contratual do vendedor, que, sem culpa, desconhecia o defeito e, nessa medida, sobre o qual não impedia o dever de indagar e esclarecer o comprador sobre os defeitos da coisa e, por consequência, ao qual o legislador considerou ser excessivo impor a obrigação de reparação ou substituição da coisa
[62].
Aos olhos do legislador luso, a colocação do comprador na situação em que ele estaria se não estivesse em erro é compatível, tanto com a anulação do contrato, como com a celebração de um contrato alternativo.
9. Finalidade do regime legal e indemnização
Apesar da anulação da venda, da reparação ou substituição da coisa defeituosa e da redução do preço, o comprador pode, ainda assim, sofrer danos cuja reparação se impõe.
No caso de anulação, o comprador deverá ser ressarcido dos danos que sofreu precisamente pelo facto de ter celebrado o contrato original (em vez de não ter celebrado qualquer contrato). É o que estabelecem os artigos 908.º e 909.º
[63].
No caso específico da venda de coisas defeituosas, a lei, numa atitude de favorecimento do vendedor, mas que é consentânea com a relevância atribuída à responsabilidade pré-contratual como fundamento complementar do erro
[64], estabelece que o comprador, anulando o contrato, não tem direito a ser indemnizado se o vendedor desconhecia, sem culpa, o defeito da coisa
[65].
Também nos casos, quer de substituição e reparação da coisa, quer de redução do preço, o comprador deverá ser ressarcido dos danos que sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato original (em vez de ter celebrado o contrato modificado)
[66]. Que indemnização é esta? A prevista nos artigos 908.º e 909.º, que, como se viu, se referem justamente à indemnização dos danos que o comprador sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato original: em vez de não ter celebrado qualquer contrato, na hipótese de anulação, e em vez de ter celebrado o contrato modificado, no caso de substituição, reparação ou redução do preço
[67].
É o que resulta, para o caso de redução do preço, da parte final do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 911.º, aquela ao aludir “à indemnização que no caso competir” e este ao remeter para as disposições dos artigos anteriores, e, para os casos de substituição e reparação da coisa, do disposto no artigo 910.º, n.º 1, na parte em que alude à indemnização que o comprador tem a receber na conformidade dos artigos 908.º e 909.º precedentes (e não na parte que versa sobre a indemnização devida pelo incumprimento da obrigação de fazer convalescer o contrato, leia-se, de substituir ou reparar a coisa defeituosa)
[68].
Quid juris se o vendedor não cumprir a obrigação de substituir ou reparar a coisa vendida? Neste caso, o comprador tem o direito a ser ressarcido pelos danos resultantes desse incumprimento, sob a forma de danos emergentes e lucros cessantes, com as especificidades, nem sempre fáceis de entender, previstas no artigo 900.º.
10. Conclusão
Por opção do legislador, o Código Civil regula a venda de coisa defeituosa no quadro dos institutos do erro-vício [do comprador] e, complementarmente, da “
culpa in contrahendo” [do vendedor]: os defeitos da coisa não são relevantes por si, mas enquanto “elementos” sobre que incidem o erro e a “
culpa in contrahendo”.
À luz desta opção, afigura-se que a finalidade principal do regime da venda de coisas defeituosas é tutelar a confiança do comprador, mormente associada à emissão
[69] de certas declarações (de ciência e de vontade
[70]) sobre a coisa por parte do vendedor
[71].
Neste quadro, os direitos do comprador à reparação ou substituição da coisa (artigo 914.º) e à redução do preço (artigo 911.º, aplicável
ex vi artigo 913.º) devem ser vistos,
grosso modo, como casos de relevância de erro incidental ou erro essencial relativo.
O comprador tem ainda o direito a ser indemnizado pelos danos que sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato inicial (interesse contratual negativo), ainda que apenas na medida em que os mesmos não possam considerar-se [já] ressarcidos por força da celebração do contrato modificado
[72] (interesse contratual negativo parcial).
A disciplina do Código Civil pode ser criticada, pode ter sido abandonada por diplomas mais recentes e não ser [a mais] adequada para reger certas espécies de venda, mas, em nosso entender, não existe[m] fundamento[s] bastante[s] para a sua reconstrução, em particular para afastá-la da sua matriz original, ao invés do que desde muito cedo foi proposto pela generalidade da doutrina e tem sido aceite pelo Supremo Tribunal de Justiça.
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Compra e Venda de Coisas Defeituosas (Conformidade e Segurança), 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 2008
Sousa, Marcelo Rebelo de, “Responsabilidade Pré-Contratual – Vertentes Privatística e Publicística”,
O Direito, Ano 125, 1993 III-IV (julho-Dezembro), pp. 383-416
Sousa, Miguel Teixeira de, “O Cumprimento Defeituoso e a Venda de Coisas Defeituosas”,
in AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, pp. 567-585
Telles, Inocêncio Galvão, “Projecto Completo de um Título do Futuro Código Civil Português e respetiva Exposição de Motivos”,
BMJ, n.º 83, Fevereiro, 1959, pp. 113-282
Telles, Inocêncio Galvão, “Culpa na Formação do Contrato”,
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Telles, Inocêncio Galvão,
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Varela, João de Matos Antunes,
CJ, Ano XII, 1987, Tomo 4, pp. 23-35
Varela, João de Matos Antunes,
RLJ, Ano n.º 126, N.
os 3829 e 3030 (pp. 128-160), 3831 (pp. 180-192), 3832 a 3834 (pp. 285-288), 3835 (pp. 311-320) e 3836 (pp. 347-352)
Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (consultada)
Listam-se, em seguida, alguns dos Acórdãos do STJ disponíveis no sítio www.dgsi.pt que consultámos e que, em nosso entender, têm interesse para as questões abordadas no presente texto: Acórdão n.º 7/2023, de 02.08.2023 (Processo n.º 3655/06.9TVLSB.L2.S1-A), Acórdão de 15.09.2022 (Processo n.º 1195/13.9TBEPS.G1.S1 | Relator: Rijo Ferreira), Acórdão de 05.05.2022 (Processo n.º 1608/20.3T8AMT-A.P1.S1 | Relator: Catarina Serra), Acórdão de 17.11.2021 (Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1.S1 | Relator: Tibério Nunes da Silva), Acórdão de 14.10.2021 (Processo n.º 2927/18.4T8VCT.G1.S1 | Relator: Abrantes Geraldes), Acórdão de 14.10.2021 (Processo n.º 3554/18.1T8VFR-A.P1.S1 | Relator: Catarina Serra), Acórdão de 01.07.2021 (Processo n.º 3655/06.9TVLSB.L2.S1 | Relator: Fernando Baptista), Acórdão de 05.05.2020 (Processo n.º 2142/15.9T8CTB.C1.S2 | Relator: António Magalhães), Acórdão de 10.12.2019 (Processo n.º 701/14.6TBMTA.L1.S1 | Relator: Pedro de Lima Gonçalves), Acórdão de 10.09.2019 (Processo n.º 272/17.1T8BGC.G1.S2 | Relator: Acácio das Neves), Acórdão de 10.07.2019 (Processo n.º 3007/16.2.T8LRA.C1 | Relator: Maria Teresa Albuquerque), Acórdão de 08.11.2018 (Processo n.º 267/12.1TVLSB.L1.S1 | Relator: Ilídio Sacarrão Martins), Acórdão de 22.06.2017 (Processo n.º 124/06.0TBAGN.C1.S1 | Relator: Olindo Geraldes), Acórdão de 14.07.2016 (Processo n.º 1047/12.0TVPRT.P1.S1 | Relator: Fernanda Isabel Pereira), Acórdão de 17.05.2026 (Processo n.º 354/05.2TVLSB.L1.S1 | Relator: Júlio Gomes), Acórdão de 22.04.2015 (Processo n.º 34/12.2TBLSA.C1.S1 | Relator: Gabriel Catarino), Acórdão de 17.12.2014 (Processo n.º 10514/11.1T2SNT.L1.S1 | Relator: Orlando Afonso), Acórdão de 03.04.2014 (Processo n.º 106/07.5TBODM.LL.S1 | Relator: Abrantes Geraldes), Acórdão de 10.01.2013 (Processo n.º 3097/06.6TBVCT.G1.S1 | Relator: Granja da Fonseca), Acórdão de 25.10.2012 (Processo n.º 3362/05.TBVCT.G1.S1 | Relator: Álvaro Rodrigues), Acórdão de 19.01.2012 (Processo n.º 1754/06.6TBCBR.C1.S1 | Relator: Oliveira Vasconcelos), Acórdão de 24.05.2012 (Processo n.º 2565/10.0TBSTB. S1 | Relator: Serra Baptista), Acórdão de 22.05.2022 (Processo n.º 5504/09.7TVLSB.L1.S1 | Relator: Paulo Sá), Acórdão de 26.04.2012 (Processo n.º 1386/06.9TBLRA.C1.S1 | Relator: Serra Baptista), Acórdão de 15.09.2022 (Processo n.º 904/06.7BSSB.L1.S1 | Relator: Gabriel Catarino), Acórdão de 25.10.2011 (Processo n.º 1453/06.9TJVNF.P1.S1 | Relator: Nuno Cameira), Acórdão de 31.04.2011 (Processo n.º 16368/09.0T2SNT.L1.S1 | Relator: Moreira Camilo), Acórdão de 17.02.2011 (Processo n.º 3958/06.3TBGDM.P1.S1 | Relator: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), Acórdão de 12.09.2010 (Processo n.º 994/05.0TBMDL.P1.S1 | Relator: Ferreira da Silva), apenas o sumário, Acórdão de 02.11.2010 (Processo n.º 6473/06.0TBALM.L1.S1 | Relator: Alves Velho), Acórdão de 29.06.2010 (Processo n.º 258/2002.G1.S1 | Relator: Garcia Calejo), Acórdão de 04.05.2010 (Processo n.º 2990/06.0TBACB.C1.S1 | Relator: Helder Roque), Acórdão de 29.04.2010 (Processo n.º 14/10.2YFLSB | Relator: Moreira Alves), Acórdão de 09.03.2010 (Processo n.º 4467/06.5TBVLG.P1.S1 | Relator: Garcia Calejo), Acórdão de 02.03.2010 (Processo n.º 323/05.2TBTBU.C1.S1 | Relator: Urbano Dias), Acórdão de 15.09.2022 (Processo n.º 1195/13.9TBEPS.G1.S1 | Relator: Rijo Ferreira), Acórdão de 02.02.2010 (Processo n.º 1658/03.4TBETR.P1.S1 | Relator: Garcia Calejo), Acórdão de 12.01.2010 (Processo n.º 2212/06.4TBMAI.P1.S1 | Relator: João Camilo), Acórdão de 17.09.2009 (Processo n.º 841/2002.S1 | Relator: Fonseca Ramos), Acórdão de 07.05.2009 (Processo n.º 09B0057 | Relator: Pires da Rosa), Acórdão de 23.03.2009 (Processo n.º 09B0658 | Relator: Oliveira Rocha), Acórdão de 19.02.2008 (Processo n.º 07A4655 | Relator: Alves Velho), Acórdão de 10.01.2008 (Processo n.º 07B4332 | Relator: Custódio Montes), Acórdão de 13.12.2007 (Processo n.º 07A 4160 | Relator: Fonseca Ramos), Acórdão de 06.11.2007 (Processo n.º 07ª3440 | Relator: Azevedo Ramos), Acórdão de 11.10.2007 (Processo n.º 07B3069 | Relator: Pereira da Silva), Acórdão de 17.04.2007 (Processo n.º 06B4773 | Relator: Gil Roque), Acórdão de 21.11.2006 (Processo n.º 06A 3368 | Relator: João Camilo), Acórdão de 12.10.2006 (Processo n.º 06B2627 | Relator: Oliveira Barros), Acórdão de 27.04.2006 (Processo n.º 0631945 | Relator: Fernando Baptista), Acórdão de 27.04.2006 (Processo n.º 06A866 | Relator: Azevedo Ramos), Acórdão de 04.04.2006 (Processo n.º 06A503 | Relator: Fernandes Magalhães), Acórdão de 16.12.2004 (Processo n.º 04B3735 | Relator: Lucas Coelho), Acórdão de 06.07.2004 (Processo n.º 04B1686 | Relator: Noronha de Nascimento), Acórdão de 27.05.2004 (Processo n.º 04B086 | Relator: Noronha de Nascimento), Acórdão de 20.01.2003 (Processo n.º 03A1848 | Relator: Alves Velho), Acórdão de 21.11.2002 (Processo n.º 03B638 | Relator: Oliveira Barros), Acórdão de 29.10.2002 (Processo n.º 02A3026 | Relator: Ribeiro Coelho), Acórdão de 29.11.2001 (Processo n.º 02A1423 | Relator: Azevedo Ramos), Acórdão de 05.05.1997 (Processo n.º 9651324 | Relator: Azevedo Ramos), apenas sumário, Acórdão de 02.03.1995 (Processo n.º 086202 | Relator: Gusmão de Medeiros), Acórdão de 26.07.1977 (Processo n.º 066716 | Relator: Oliveira Carvalho), apenas sumário, Acórdão de 23.03.1976 (Processo n.º 066015 | Relator: Ferreira da Costa), apenas sumário, Acórdão de 12.05.1967 (Processo n.º 061959 | Relator: J. Santos Carvalho), apenas sumário.
[1] Cumprimento Defeituoso – Em especial na compra e venda e na empreitada, Coimbra, Almedina, 1994.
[2] Pertencem ao Código Civil todos os artigos mencionados de ora diante sem indicação expressa do diploma a que pertencem. Um resumo útil e de fácil leitura deste regime, ainda que em francês, pode encontrar-se em Paulo Mota Pinto, “La Protection de L’Acheteur de Choses Défectueuses en Droit Portugais”,
in BFDUC, 69 (1993), pp. 259-288.
[3] Cumprimento Defeituoso …, cit., pp. 29-47 e 424. A esta tese aderem, entre outros, António Menezes Cordeiro:
Tratado de Direito Civil, XI,
Contratos em Especial (1.ª parte), Coimbra, Almedina, 2019, pp. 179 e ss., esp. pp. 238-242, Pedro de Albuquerque,
Direito das Obrigações, Contratos em Especial, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2022, pp. 325 e ss., João Carlos Brandão Proença,
Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2011, pp. 353-361, Armando Braga,
Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Lisboa, Vida Económica, 2005. Críticos desta tese, que consideram
contra legem,
p. ex., António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto,
RLJ, Ano 151.º, N.º 4031, Novembro/Dezembro, 2021, pp. 99-148, esp. pp. 121-134.
[4] Erro no sentido de falsa representação da realidade conducente a uma divergência entre a vontade real e a vontade conjetural (a vontade que o declarante teria tido se não tivesse representado falsamente a realidade). Sobre o regime do erro em geral, veja-se,
p. ex., Carlos Alberto Mota Pinto,
Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª ed. (por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto), Coimbra, Coimbra Editora, 2012, pp. 498-529. Para mais desenvolvimentos, pode ler-se Paulo Mota Pinto, “Falta e Vícios da Vontade – O Código Civil e os Regimes Mais Recentes” e “Requisitos de Relevância do Erro nos Princípios de Direito Europeu dos Contratos e no Código Civil Português”,
in Direito Civil – Estudos, Coimbra, Gestlegal, 2018, pp. 37-203.
[5] Pedro Romano Martinez,
Cumprimento Defeituoso …, cit., pp. 237 e 270. Ao fazer depender o exercício do direito de anulação [em bom rigor, de resolução] da verificação no caso dos requisitos de anulabilidade por erro, o artigo 913.º estaria, apenas, a assegurar que o comprador não pode invocar a anulação com base em defeito de que tenha, ou pudesse ter tido conhecimento, no momento da celebração do contrato …” (
idem., p. 242). Salvo erro, são três as ideias-força da tese defendida pelo Professor Pedro Romano Martinez: a
primeira é a de que o erro e o cumprimento defeituoso são realidades distintas, que se excluem mutuamente (
idem., pp. 29-47); a
segunda é a de que as qualidades próprias das coisas do mesmo tipo (por isso mesmo que a vontade das partes vai dirigida, não à coisa
como é, como propõe Zitelmann, mas à coisa como
deve-ser, como defende Flume) e as qualidades asseguradas a que alude o artigo 913.º integram o acordo negocial e, nessa medida, a sua falta configura uma situação de cumprimento defeituoso e não de erro (
idem.); a
terceira é a de que o regime previsto nos artigos 913.º e ss. não é próprio do erro: assim sucederia, em especial, com o direito do comprador de exigir a reparação ou a substituição da coisa vendida, a responsabilização do vendedor pelo não cumprimento da obrigação de reparar ou substituir a coisa vendida, a previsão de prazos de caducidade curtos, para mais não aplicáveis ao vendedor, o direito do comprador de exigir a redução do preço (
idem., pp. 237-245).
[6] Os pressupostos e os contornos da opção legislativa e da disciplina da venda de coisas defeituosas no quadro dos institutos da “
culpa in contrahendo” [do vendedor] e do erro [do comprador] são iluminadas pelo elemento histórico, designadamente, os trabalhos preparatórios e alguns textos doutrinais. Dos trabalhos preparatórios, mais concretamente, do “Projecto Completo de um Título do Futuro Código Civil Português e respetiva Exposição de Motivos”, da autoria de Inocêncio Galvão Telles (
Boletim do Ministério da Justiça, n.º 83, Fevereiro, 1959, pp. 113-282), cujo articulado, na parte que nos interessa, foi transposto, quase na íntegra, para o Código Civil, resulta,
inter alia, que:
a) a responsabilidade do vendedor de coisas alheias é tratada como “[…] uma responsabilidade derivada da “
culpa in contrahendo” e tendente à indemnização dos chamados danos negativos: aqueles que decorrem, não de inexecução do contrato, mas da sua nulidade: os prejuízos que não se teriam sofrido se o contrato não fora celebrado” (p. 129);
b) “[…] a solução mais simples e mais razoável seria a recondução da matéria [dos vícios de direito] à doutrina geral do erro e do dolo […]” (p. 130), sem prejuízo das “imprescindíveis especialidades” (idem), entre as quais se inclui a obrigação do vendedor de provocar a convalescença do contrato mediante a expurgação dos ónus (e, ao que tudo indica, por força da remissão do regime da venda de coisas defeituosas para o regime da venda de bens onerados, igualmente da obrigação de reparação ou substituição da coisa defeituosa);
c) “[a] respeito da venda de coisas defeituosas seguiu-se orientação igual à estabelecida na Secção anterior [relativa à matéria dos vícios de direito]” (p. 131). Muita embora no Projecto a disciplina da venda de bens onerados e de coisas defeituosas seja reconduzida com carácter genérico à doutrina geral do erro e se afirme que “a ideia de evicção não tem qualquer função útil a desempenhar” (p. 131) e “os conflitos de interesses resolvem-se por recurso a institutos de outra ordem” (idem), os contornos da opção do legislador luso são também esclarecidos por dois escritos posteriores de Inocêncio Galvão Telles. O
primeiro é o seu parecer sobre o célebre “caso da Sociedade Financeira Portuguesa” (“Culpa na Formação do Contrato”,
O Direito, Ano 125.º, 1993 III-IV (Jul.-Dez.), pp. 333-356), do qual resulta: (
i) que a disciplina da venda de coisa defeituosa se filia no erro essencial ou incidental do comprador (
ii) que o direito à redução do preço previsto no artigo 911.º é uma expressão do direito à modificação do contrato conforme ao querer conjetural do autor da declaração viciada por erro essencial relativo ou erro incidental e (
iii) que a modificação do contrato – redução do preço – não exige um coincidente querer conjetural do outro contraente, bastando que este devesse, segundo a boa-fé, aceitar a vontade hipotética do primeiro [do autor da declaração viciada] se ela lhe houvesse sido comunicada”. Parece, assim, que, no entender do autor do Projeto, o artigo 911.º prevê e disciplina uma hipótese de erro incidental ou essencial relativo do comprador: aquela em que o comprador, se não estivesse em erro, teria comprado a coisa defeituosa, mas por um preço inferior. O
segundo escrito é o seu manual de direito das obrigações (cf.,
p. ex.,
Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1997, pp. 336-340), no qual o ilustre Professor afirma que há invalidade da venda e erro do comprador ou incumprimento da venda e cumprimento defeituoso do vendedor consoante os vícios da coisa sejam anteriores ou contemporâneos da venda ou posteriores à venda. O que equivale a dizer que, aos olhos do autor do Projecto, a vontade dos contraentes vai dirigida à coisa como ela é e não como ela deve ser e, por consequência, que a falta das qualidades queridas pelos contraentes constitui uma falsa representação da realidade, um vício na formação da vontade, e não o incumprimento da obrigação de entregar uma coisa com certas qualidades. À primeira vista, pelo menos, a explicação e o fundamento das obrigações, impostas ao vendedor, de expurgar os ónus do bem onerado e de reparar ou substituir a coisa defeituosa parecem não residir naquela obrigação – o que, a ser exato, parece não poder deixar de significar que, por direitas contas, o direito à convalescença da venda de bens onerados e o direito à reparação ou substituição da coisa defeituosa não representam o direito ao exato cumprimento previsto no artigo 817.º. Aos olhos do legislador luso, o regime da venda de coisas defeituosas versaria, assim, sobre um caso particular de erro-vício sobre o objeto, concretamente, o erro-vício sobre certas qualidades – as qualidades asseguradas pelo vendedor e as qualidades necessárias ao fim a que a coisa é destinada – da coisa vendida. Existiria, pois, uma relação de especialidade entre as regras gerais do erro sobre os motivos previstas nos artigos 251.º a 254.º e as regras especiais do erro na compra e venda de coisas defeituosas previstas nos artigos 913.º e ss. Exemplo desta relação de especialidade seria, desde logo, a limitação da relevância do erro-vício sobre o objeto ao erro-vício que incida sobre determinadas qualidades do objeto, concretamente, as qualidades asseguradas pelo vendedor e as qualidades necessárias ao fim a que a coisa é destinada (o que significa que as regras gerais do erro permanecerão aplicáveis a todas as situações em que o vício ou a falta de qualidades da coisa vendida não possam ser qualificados como um defeito nos termos e para os efeitos do artigo 913.º). Exemplificariam igualmente a mencionada relação de especialidade os direitos conferidos ao comprador, mormente o de exigir a substituição ou reparação da coisa defeituosa e o direito a exigir a redução do preço (para quem entenda que a lei não confere ao contraente em erro o direito a exigir à contraparte a celebração de um contrato modificado) e o prazo para a ação de anulação (e, segundo o entendimento que reputamos preferível, para as ações de substituição ou reparação da coisa ou de redução do preço).
[7] Como,
p. ex., Fernando Pessoa Jorge, “Erro de Avaliação na Venda de Empresa Privatizada”,
O Direito, Ano 125, 1993 III-IV, (Julho-Dezembro), pp. 357-381. Também adere à tese do erro Miguel Teixeira de Sousa, “O Cumprimento Defeituoso e a Venda de Coisas Defeituosas”,
AB VNO AD OMNES, 75 Anos da Coimbra Editora, Coimbra, Coimbra Editora, 1998, pp. 567-585. No entender deste autor, na venda de coisa específica, a falta das qualidades próprias ou asseguradas não constitui violação do dever de prestar, mas, outrossim, da garantia sobre as qualidades prestada pelo vendedor, que integra a base negocial. A finalidade do regime da venda de coisas (específicas) defeituosas é tutelar os interesses de quem compra na convicção errónea de que a coisa (específica) comprada tem as qualidades próprias e as qualidades asseguradas pelo comprador. Este parece ser igualmente o entendimento de Paulo Mota Pinto, que, justamente por isso, admite casos de sobreposição, ou seja, de casos em que existe erro porque o comprador compra na convicção errónea de que a coisa (específica) comprada tem as qualidades próprias e as qualidades asseguradas pelo comprador, mas em que simultaneamente existe cumprimento defeituoso, por isso mesmo que a coisa vendida não tem as qualidades contratualmente devidas. Considera também ser a tese do erro a que se encontra consagrada de
jure condito, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão,
Direito das Obrigações, Vol. III, 11.ª ed., Coimbra, Almedina, 2016, pp. 94 e ss., e “Caveat Venditor? A Directiva 1999/44/CE do Conselho e do Parlamento Europeu sobre a Venda de Bens de Consumo e Garantias Associadas e suas Implicações no Regime Jurídico da Compra e Venda”,
in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 263-300.
[8] Partindo da distinção entre situações de cumprimento defeituoso, venda de coisa defeituosa (não acompanhada de cumprimento defeituoso ) e erro sobre o objeto e as qualidades do objeto, Fernando Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela sustentam que a disciplina da venda de coisas defeituosas estabelecida nos artigos 913.º e ss. constitui um regime especial, posto que,
por um lado, e no que ao direito de anulação do contrato diz respeito, tem por fundamento a situação subjetiva de o comprador estar em erro (que é relevante se o vendedor conhecer ou não dever ignorar a essencialidade do elemento sobre que incide o erro do comprador), mas,
por outro lado, e no que aos direitos de reparação (substituição) e redução do preço se refere, tem por fundamento a situação objetiva de a coisa padecer de defeito (prescindindo, pois, nesta sede, daquele erro). Este segundo grupo de direitos, todavia, são atribuídos ao comprador, não ou não tanto pelo facto de o defeito da coisa representar um desvio face ao acordo negocial, mas, outrossim ou sobretudo, pelo facto de o defeito da coisa tornar necessário restabelecer a “justiça comutativa subjacente a todos os contratos onerosos, em geral, e à compra e venda, em especial”. Segundo aqueles autores, os direitos que integram este segundo grupo, à semelhança do direito de anulação, encontram, pois, arrimo na lei, ao invés do que sucede com os direitos atribuídos ao comprador nas situações de cumprimento defeituoso por parte do vendedor, que, como é sabido, encontram guarida no contrato. De todo o modo, e desta feita à semelhança do que ocorreria se de uma situação de cumprimento defeituoso se tratasse, o comprador teria o direito de exigir a reparação (substituição) da coisa defeituosa ou a redução do preço independentemente de estar em erro e, para além disso, independentemente de as qualidades integrarem ou não o acordo contratual, ou seja, independentemente de haver ou não cumprimento defeituoso. De acordo com este modo de ver, para exigir a reparação ou substituição da coisa, o comprador teria de provar o defeito, mas não a culpa do devedor. Ao vendedor incumbiria provar que, sem culpa, desconhecia o vício para se exonerar daquela obrigação. A separação dos regimes do erro, da venda de coisa defeituosa e do cumprimento defeituoso permitiria, naturalmente, que o comprador pudesse socorrer-se de todos eles para defender os seus interesses – o que também pode suceder (ainda que porventura em moldes distintos) se o regime da venda de coisa defeituosa for considerado um regime especial face ao regime geral do cumprimento defeituoso. Em suma, existiriam duas hipóteses: aquela em que a venda de coisa defeituosa configura ao mesmo tempo cumprimento defeituoso e aquelas em que a venda defeituosa não configura cumprimento defeituoso: no primeiro caso, o comprador pode socorrer-se dos mecanismos previstos nos artigos 913.º e ss. e, ainda, dos previstos nos artigos 798.º e ss.; na segunda, o comprador poderia apenas recorrer ao regime da venda de coisa defeituosa estabelecido nos artigos. 913.º e ss.:
Código Civil Anotado, Vol. II, 4.ª ed., Coimbra, Wolters Kluwer | Coimbra Editora, 2010, pp. 196 e ss., esp. pp. 204-211. Veja-se, ainda, da autoria de João de Matos Antunes Varela, os pareceres publicados na
CJ, Ano XII, 1987, Tomo 4, pp. 23-35, e na
RLJ, Ano n.º 126. Seguem esta orientação,
p. ex., o Acórdão do STJ, de 25.10.2012 (Processo n.º 3362/05.TBVCT.G1.S1 | Relator: Álvaro Rodrigues) e o Acórdão do STJ, de 04.05.2010 (Processo n.º 2990/06.0TBACB.C1.S1 | Relator: Helder Roque).
[9] Sobre o pensamento de João Calvão da Silva, veja-se:
Responsabilidade Civil do Produtor, Coimbra, Almedina, 1990, pp. 181-284, esp. 193-200, 213-216, 217-230 e 231-235, “Compra e Venda de Empresas”,
Colectânea de Jurisprudência, 1993, 2, pp. 9-16, e
Compra e Venda de Coisas Defeituosas (Conformidade e Segurança), 5.ª ed., Coimbra, Almedina, 2008, esp. pp. 53-67 e 84-89. João Calvão da Silva defende que a disciplina da venda de coisas defeituosas prevista nos artigos 913.º e ss. tem uma natureza mista ou híbrida, combinando aspetos do regime do erro (
maxime, o direito à anulação do contrato com fundamento em erro) com aspetos do regime do cumprimento (
maxime, o direito de exigir o cumprimento do contrato através da reparação ou substituição da coisa). Numa situação de venda de coisa defeituosa, o comprador poderia optar entre anular o contrato ou reduzir o preço com fundamento em erro e exigir o cumprimento do contrato através da reparação ou substituição da coisa. No entender de João Calvão da Silva, a disciplina da venda de coisa defeituosa prevista nos artigos 913.º e ss. seria marcada por um
dualismo estrutural e sucessivo: dualismo
estrutural, porque, na base da disciplina legal, estaria a faculdade conferida por lei ao comprador de escolher entre duas soluções: a anulação ou o cumprimento do contrato; dualismo
sucessivo, porque cada uma das duas referidas soluções diria respeito a uma fase do processo negocial: o erro respeitaria a uma primeira fase, a
fase estipulativa do contrato (anulável), legitimando a sua anulação, ao passo que o cumprimento teria que ver com uma segunda fase, a
fase executivado contrato (anulável, mas não anulado ou confirmado), legitimando a reparação ou substituição da coisa defeituosa. À luz da construção de João Calvão da Silva, a lei confere ao comprador o direito de exigir a reparação ou substituição da coisa defeituosa se ele, em vez de requerer a anulação do contrato ou a revisão do preço, optar por manter o contrato nos moldes em que o mesmo foi celebrado. A esta luz, dir-se-ia, a exigência de reparação ou substituição da coisa defeituosa como que pressuporia a – uma espécie de – prévia confirmação da compra e venda por parte do comprador, que, desde então, ficaria sujeita à aplicação das regras gerais do cumprimento. No mesmo sentido parecem orientar-se,
p. ex., Marcelo Rebelo de Sousa, “Responsabilidade Pré-Contratual – Vertentes Privatística e Publicística”,
O Direito, Ano 125, 1993 III-IV (julho-Dezembro), pp. 383-416, Ferrer Correia e Almeno de Sá, “Compra e Venda de Empresa”,
Colectânea de Jurisprudência, 1993, 2, pp. 15-32 (para quem, de todo o modo, o direito à redução do preço é expressão do erro relativamente essencial ou incidental do comprador) e
Nuno Pinto de Oliveira, Compra e Venda de Coisa Genérica à luz do Direito Português, Curitiba, Juruá Editora, 2015, formato ebook, cap. II e, mais desenvolvidamente,
Contrato de Compra e Venda (noções Fundamentais), Coimbra, Almedina, 2007, esp. pp. 195-240, 245-249, 261-282, 283-292,
[10] No texto
“Acordo Negocial e Erro na Venda de Coisas Defeituosas”, in Obra Dispersa, Braga, Scientia Ivridica, 1991, pp. 31-124, João Baptista Machadodefende a tese de “que o fundamento da garantia edilícia não está no erro, mas no próprio contrato” (p. 124). No seu entender, as coisas objeto de compra e venda devem ter as qualidades acordadas, que compreendem, quer aquelas que as partes declararam querer – ou que o vendedor declarou garantir – quer aquelas que por elas se devem considerar queridas, como sucede com as qualidades próprias das coisas do mesmo género (pp. 33, 38-39, qualidades estas que o artigo 913.º enuncia e equipara às primeiras). A ideia central a este propósito é a de que as qualidades necessárias ao fim que a coisa é destinada devem considerar-se implícitas no acordo negocial e por ele abrangidas (pp. 41-46). A ser assim (ou melhor, quando for assim – pp. 71-76), e porque erro e incumprimento se excluem mutuamente (pp. 46-57), forçoso será concluir que o vendedor está obrigado a entregar uma coisa com aquelas qualidades, como forçoso será concluir que a entrega de uma coisa sem aquelas qualidades (“coisa defeituosa”) constitui uma situação de cumprimento defeituoso do contrato, e não uma situação de erro na formação da vontade, como forçoso será concluir, por fim, que a causa jurídica das consequências jurídicas estatuídas nos artigos 913.º e ss. é a não conformidade da coisa com o acordo negocial – as sobreditas consequências são, pois, um efeito negocial. Vale isto por dizer, por outras palavras, que o erro a que se refere o artigo 913.º não é um erro em sentido técnico-jurídico e, nessa medida, que o erro sobre as qualidades do objeto propriamente dito não é abrangido por aquele preceito, mas, outrossim, pelo artigo 251.º (p. 75). No entender de João Baptista Machado, a lei reconhece ao comprador o direito à anulação da compra, o direito à redução do preço e o direito à reparação ou à substituição da coisa que comprou porque a coisa que lhe foi entregue não tem as qualidades acordadas, e não porque ele estava convencido de que a coisa que comprou tinha determinadas qualidades que se verificou não ter; de igual modo, a lei impõe ao vendedor, tanto o dever de reparar ou substituir a coisa, como o dever de aceitar a redução do preço pretendida pelo comprador, porque ele estava obrigado a entregar uma coisa com determinadas qualidades ao comprador, e não, pois, por este último estar em erro quanto às qualidades da coia comprada. As coisas passar-se-iam deste modo porque a vontade das partes não vai dirigida à coisa como ela é mas à coisa como ela deve-ser, o mesmo é dizer, a vontade das partes vai dirigida não à coisa com as qualidades que tem, mas à coisa como as qualidades que deveria ter, por força da lei, do acordo ou dos usos. Tanto na venda de coisa específica, como na venda de coisa genérica, o acordo das partes tem por objeto, ou seja, vai dirigido a uma coisa com determinadas qualidades. O que sucede é que, no caso de venda de coisa específica, diferentemente do que ocorre no caso de venda de coisa genérica, a falta das qualidades acordadas – o cumprimento defeituoso – resulta de um erro na especificação da coisa: a coisa foi escolhida (especificada, determinada) na convicção, errónea, de que tinha as qualidades acordadas,
maxime, as qualidades próprias das coisas do mesmo género. João Baptista Machado fala, a este propósito, de “
um erro sobre a base do acordo relativo à especificação do objeto, verificado quando simultaneamente se conclui e se faz aplicação do negócio”. Erro na especificação da coisa vendida que, no seu entender, configura, sem surpresa, um erro na declaração (pp. 76-104), e não um erro-vício, e confere à situação em apreço uma configuração particular:
por um lado, porque o vendedor está simultaneamente obrigado a entregar a coisa escolhida e uma coisa com qualidades que a coisa escolhida não possui;
por outro lado, por ser necessário repartir, entre o comprador e o vendedor, o risco do erro sobre a realidade que se verificou aquando da especificação da coisa. Ora, são justamente estas duas particularidades que, segundo João Baptista Machado, explicam que o regime da venda de coisas defeituosas previsto nos artigos 913.º e ss., não tendo por fundamento o erro, não possa por isso dizer-se tributário do regime geral deste e também não coincida inteiramente com o regime geral do cumprimento defeituoso do contrato – podendo “talvez ser concebido como uma adaptação ao caso (ou uma “especialização”) do regime do cumprimento defeituoso.” (pp. 104 e ss.). Desde logo, e
em primeiro lugar, porque os direitos reconhecidos por lei ao comprador, pese embora fundados no contrato, dependem da circunstância de aquele estar em erro: os direitos do comprador fundam-se no contrato, é certo, mas, por força do sobredito erro na especificação da coisa, o seu exercício depende de erro do comprador – o que significa que o risco de a coisa escolhida não corresponder à coisa acordada corre por conta do vendedor. Para além disso, e
em segundo lugar, porque ao vendedor são impostas determinadas obrigações – e atribuídos certas faculdades – cuja explicação só pode residir, precisamente, na circunstância de ele estar obrigado a entregar a coisa especificada e simultaneamente uma coisa com determinadas qualidades: assim a obrigação de reparar ou substituir a coisa defeituosa; assim, também, a obrigação de aceitar a redução do preço independentemente de ser essa a sua vontade hipotética; assim, ainda, a faculdade de que goza o vendedor de obstar à anulação da compra e venda provando que o comprador estaria disposto a comprar a coisa defeituosa, mas por um preço inferior. Por fim, e
em terceiro lugar, é também por mor desta particularidade, ou seja, de o vendedor estar obrigado a entregar a coisa especificada e simultaneamente uma coisa com determinadas qualidades, que incumbe ao vendedor, para se eximir da obrigação de reparar ou substituir a coisa e para não se ver forçado a aceitar a venda por um preço reduzido, provar que o comprador “teve conhecimento dos vícios ou defeitos da coisa no momento do contrato”; que cabe ao vendedor, para não ser obrigado a reparar ou a substituir a coisa defeituosa, provar que o cumprimento defeituoso não ficou a dever-se a culpa sua; e, desta sorte para impedir a anulação da compra e venda, que se exige ao vendedor a prova de que o comprador teria celebrado o negócio, mas por um preço inferior (idem.). Adriano Vaz Serra resume o pensamento de João Baptista Machado em parecer publicado na
RLJ, Ano 104.º, 15 de Dezembro de 1971, N.º 3457, pp. 260-262. Manuel António Carneiro da Frada segue e explica, em termos especialmente claros, a tese de João Baptista Machado, no artigo “Erro e Incumprimento na Não-Conformidade da Coisa com o Interesse do Comprador”,
O Direito, Ano 121.º, 1989 III (Julho-Setembro), pp. 461-484. Deste último autor, veja-se, ainda, na mesma linha, “Perturbações Típicas no Contrato de Compra e Venda”,
in Direito das Obrigações (Coord. António Menezes Cordeiro), 3.º Vol., 2.ª ed., Lisboa, AAFDL, 1991, pp. 49-96, esp. 77-94.
[11] Vide, em especial, António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, “Parecer”, cit., pp. 130-132, e Paulo Mota Pinto,
Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, Vol. II, p. 1214, em nota (3394).
[12] Recorde-se ser outra a explicação avançada por João Calvão da Silva para o hibridismo do regime da venda de coisas defeituosas: no seu entender, mesmo aceitando que a vontade das partes vai dirigida à coisa como ela é, o certo é que os defeitos da coisa se projetam, quer na fase estipulativa, afetando a validade do próprio contrato, quer na fase executiva, afetando “apenas” o cumprimento do contrato. A diferença na explicação parece conduzir a uma diferença na interpretação do regime legal, mormente, no que deva entender-se por concorrência eletiva entre as pretensões do comprador fundadas no erro e no cumprimento defeituoso.
[13] Quer isto dizer, parece-nos, que as qualidades asseguradas não relevam nesta sede como declarações de vontade, por isso mesmo que qualidades prometidas ou garantidas pelo vendedor ao comprador, mas como motivos da vontade do comprador de comprar a coisa em determinadas condições. Da leitura dos textos de João Calvão da Silva, por um lado, e de António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, por outro, ficámos com a ideia de que existe uma diferença não despicienda entre a posição daquele e destes: para João Calvão da Silva (cf.
Compra e Venda …, cit., pp. 84-89), o regime da venda de coisas defeituosas assenta em parte no erro (direito à anulação, no caso de erro essencial, e direito à redução do preço, no caso de erro incidental, e, num caso e no outro, indemnização pelo interesse contratual negativo) e em parte no cumprimento (direito à reparação ou substituição e indemnização pelo interesse contratual positivo, razão pela qual defende a revogação da parte final do artigo 914.º); diversamente, para António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto (cf. “Parecer”, cit., pp. 130-133 e 140-142), nos aludidos casos de sobreposição, o comprador pode optar entre o regime da venda de coisas defeituosas, pautado, todo ele, incluindo, portanto, o direito à reparação ou substituição, pelo interesse contratual negativo, e o regime geral do cumprimento defeituoso, pautado, todo ele, pelo interesse contratual positivo.
[14] Em relação,
p. ex., ao direito à redução do preço, que integra o núcleo de direitos do comprador assentes, ora no erro, como sucede,
p. ex., no Acórdão do STJ, de 29.11.2001 (Processo n.º 02A1423 | Relator: Azevedo Ramos), ora no cumprimento defeituoso, como se refere,
p. ex., no Acórdão do STJ, de 2.08.2023 (Processo n.º 3655/06.9TVLSB.L2.S1-A).
[15] São paradigmáticos,
p. ex., o Acórdão do STJ, de 02.03.1995 (Processo n.º 086202 | Relator: Gusmão de Medeiros), o Acórdão do STJ, de 29.11.2001 (Processo n.º 02A1423 | Relator: Azevedo Ramos) e o Acórdão do STJ, de 02.08.2023 (Processo n.º 3655/06.9TVLSB.L2.S1-A).
[16] Cf. Acórdão do STJ, de 02.08.2023 (Processo n.º 3655/06.9TVLSB.L2.S1-A).
[17] Cf. Acórdão do STJ, de 10.01.2008 (Processo n.º 07B4332 | Relator: Custódio Montes), Acórdão do STJ, de 06.11.2007 (Processo n.º 07ª3440 | Relator: Azevedo Ramos). No mesmo sentido, Acórdão do STJ, de 14.06.2011 (Processo n.º 3222/05.4TBVCT.S2 | Relator: Martins de Sousa).
[18]Acórdão do STJ, de 18/09/2014 (Processo: 1857/09.9TJVNF.S1.P1; Relator: Lopes do Rego), Acórdão do STJ, de 03/04/2014 (Processo: 106/07.5TBODM.LL.S1; Relator: Abrantes Geraldes). Para uma certa corrente jurisprudencial, a resolução supõe que ao vendedor seja dada a oportunidade de reparar ou substituir a coisa em conformidade com o disposto no artigo 914.º: cf. Acórdão do STJ, de 17.02.2011 (Processo n.º 3958/06.3TBGDM.P1.S1 | Relator: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza).
[19] Tanto a questão de saber se os prazos de caducidade previstos no artigo 918.º são aplicáveis apenas à ação de anulação ou a esta e às ações de redução do preço e de reparação ou substituição da coisa, como a questão de saber se aqueles prazos valem somente para a venda de coisa específica ou para esta e a venda de coisa genérica, ambas questões muito controvertidas, foram objeto de acórdãos uniformizadores de jurisprudência: Acórdão do STJ n.º 2/97, de 30.01 e Acórdão do STJ n.º 7/20023, de 02.08.
[20] Caso em que o comprador gozará dos direitos de exigir a reparação ou substituição da coisa ou a redução do preço, para além de poder socorrer-se do regime geral do cumprimento defeituoso.
[21] Caso em que o comprador apenas terá direito a exigir a anulação do contrato.
[22] Cf. Acórdão do STJ, de 20.04.2010 (Processo n.º 14/10.2YFLSB | Relator: Moreira Alves), Acórdão do STJ, de 29.11.2001 (Processo n.º 02A1423 | Relator: Azevedo Ramos).
[23] Pode encontrar-se um enquadramento exemplar da matéria no parecer de António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, cit.,
RLJ, Ano 151.º, N.º 4031, Novembro/Dezembro, 2021, pp. 99-148, esp. pp. 121-134. Veja-se, também, João Calvão da Silva,
Responsabilidade …, cit., pp. 213-216,
[24] Revendo posição anterior, Carlos Ferreira de Almeida defende o seguinte: se o defeito, entendido, na esteira de João Baptista Machado, como desconformidade entre a coisa como é e a coisa como deve ser, for detetado antes da entrega, existirá fundamento para anular o contrato por erro ou dolo nos termos do artigo 913.º; se, ao invés, o defeito, entendido daquele modo, for detetado no ato de entrega ou depois desta, existirá fundamento para resolver o contrato por cumprimento defeituoso, sendo aplicáveis as disposições relativas à reparação e substituição da coisa e à redução do preço: cf.
Contratos V, Coimbra, Almedina, 2018, pp. 141-146.
[25] Aderir à tese defendida por João Baptista Machado, segundo a qual o acordo de vontade do comprador e do vendedor tem por objeto uma coisa com certas qualidades que a mesma deve ter, seja porque o vendedor declarou ou garantiu vender uma coisa com essas qualidades, seja porque a lei ou os usos impõem a venda de uma coisa com essas mesmas qualidades, não implica localizar a disciplina da venda de coisas defeituosas e, sobretudo, a obrigação de reparação ou substituição da coisa defeituosa que nela se prevê no instituto do cumprimento defeituoso, afastando-as, em definitivo, do instituto do erro. João Baptista Machado não põe em causa que as qualidades da coisa possam relevar em sede de motivos e em sede de acordo negocial, mas sim, que este abranja apenas as qualidades da coisa como ela é e não as qualidades das coisas como ela deve ser (
Acordo Negocial e Erro …, cit., pp. 32-33 e 41 e ss., esp. 44-45, 55-56).
[26] Sobre a distinção, veja-se,
p. ex., Luís Carvalho Fernandes,
Teoria Geral do Direito Civil, Vol. II, 5.ª ed., Lisboa, UCE, 2017, pp. 186-187. Desenvolvidamente, sobre os termos e a importância da distinção, mormente no âmbito dos contratos de compra e venda de empresas, Agostinho Cardoso Guedes, “Representations and Warranties – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (6.ª Secção) de 1.3.2016, Proc. 4915/04.9TVLSB.L1.S1”,
Cadernos de Direito Privado, 75, Jul.-Set. 2021, pp. 30 e ss. Dando igualmente nota da importância desta distinção neste contexto, Manuel António Carneiro da Frada,
Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra, Almedina, 2004 (reimpressão 2016), p. 681, nota 740. Se é verdade que esta distinção foi posta em evidência, primeiro, por João Baptista Machado, e, mais tarde, por António Pinto Monteiro, e tem sido chamada à colação em diversos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, não é menos verdade que, com raras exceções, ela não é tida na devida conta quando se procura compreender a opção do legislador luso e delimitar o âmbito de aplicação dos artigos 913.º a 918.º. O tema da distinção entre declarações de ciência e de vontade situa-se paredes meias com o tema da distinção entre erro e vinculação negocial, que é tratada por António Pinto Monteiro no opúsculo
Erro e Vinculação Negocial (A propósito da aplicação do bem a fim diferente do declarado), Coimbra, Almedina, 2002.
[27] Do cotejo das diferentes posições críticas da opção do legislador luso resulta que os argumentos esgrimidos contra a tese do erro são fundamentalmente dois: o
primeiro é o de que as qualidades asseguradas pelo vendedor e as qualidades próprias das coisas do mesmo tipo integram o acordo negocial; o
segundo é o de que o direito de exigir a reparação ou substituição da coisa (e, para alguns, também o direito à redução do preço) tem fundamento no contrato ou, tendo embora fundamento na lei, visa repor a justiça comutativa que deve nortear todos os contratos (onerosos).
[28] A este propósito, justificam-se quatro observações, em jeito de advertências. A
primeira é esta: a circunstância de o Código Civil conter um regime específico para a venda de coisas defeituosas (artigos 913.º e ss.) não significa que a disciplina da venda de coisas que padecem de vícios ou às quais faltam qualidades se esgote nesse regime. A
segunda observação é estoutra: o respeito pela opção do legislador não implica concordância, seja com ela, seja com as soluções legalmente consagradas, assim como não preclude, quer a necessidade, quer a oportunidade, da eventual revisão daquela ou destas. A
terceira pode ser formulada como se segue: defender a tese do erro não implica rejeitar que o regime da venda de coisas defeituosas, ao dia de hoje, possa não ser o mais adequado para regular a venda de coisas defeituosas em geral ou a venda de certas categorias de coisas, como sucede com a denominada venda de bens de consumo.
Quarta e última: as eventuais semelhanças entre as soluções previstas nos artigos 913.º e ss. e aquelas que decorreriam de a venda de coisas defeituosas ser regulada no âmbito do regime geral cumprimento defeituoso não constitui justificação bastante para afirmar a especialidade daquelas soluções face a estas.
[29] Segundo a qual, como se verá, se defende,
por um lado, que os direitos previstos do comprador à anulação do contrato, à redução do preço e à substituição ou reparação da coisa dependem de erro do comprador, e,
por outro lado, que os mencionados direitos encontram (ainda) arrimo no erro do comprador (e não no contrato).
[30] Ficam, assim, para segundas núpcias, a fundamentação mais cuidada e desenvolvida de algumas das consequências da tese avançada, a explicação detalhada das soluções legais mais controvertidas e a resposta a algumas das questões suscitadas pelo regime da venda de coisas defeituosas, como sejam, a da sua aplicação às coisas genéricas, a da repartição do ónus da prova dos factos constitutivos, modificativos e impeditivos dos respetivos direitos entre comprador e vendedor, a da relação entre o direito à redução do preço e o instituto da redução do negócio jurídico, a da natureza imperativa ou dispositiva do regime da venda de coisas defeituosas, entre muitas outras.
[31] Cf.,
p. ex., Acórdão do STJ, de 22.06.207 (Processo n.º 124/06.0TBAGN.C1.S1 | Relator: Olindo Geraldes).
[32] Em bom rigor, a lei (artigos 908.º, 909.º, 910.º, 911.º e 914.º) só regula especificamente a indemnização em caso de anulação do contrato de compra e venda com fundamento em erro, estabelecendo, a esse propósito, que a mesma se destina à satisfação do denominado interesse contratual negativo. No que se refere à indemnização nos casos de reparação ou substituição da coisa ou de redução do preço, a lei parece nada dizer ou, se diz, nenhuma particularidade parece estabelecer. Esta circunstância é posta em evidência,
p. ex., no Acórdão do STJ 7/2023, de 02.08 (Processo n.º 3655/06.9TVLSB.L2.S1-A).
[33] A alusão do autor dos trabalhos preparatórios (cf.
supra nota 6) diz respeito à obrigação de convalescença prevista para a venda de bens onerados, mas tem pleno cabimento para a “congénere” obrigação de reparação ou substituição da coisa prevista para a venda de coisas defeituosas.
[35] Como se disse já, a obrigação de reparação ou substituição corresponde,
grosso modo, à obrigação de convalescença prevista no artigo 906.º para a venda de bens onerados.
[36] Ou o regime deste último no caso especial da compra e venda de coisas defeituosas.
[37] Neste sentido, ao interpretar o § 436 do BGB, Karl Larenz,
Derecho de Obligaciones, Ediciones Olejenik, 2020, pp. 386-388. Entre nós, diante do artigo 913.º, pode ver-se,
p. ex., João Baptista Machado,
Acordo Negocial …, cit., p. 71. Vem a propósito referir que, sob a epígrafe Garantia de bom funcionamento, o artigo 921.º estabelece o seguinte: “Se o vendedor estiver obrigado, por convenção das partes ou por força dos usos, a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, cabe-lhe repará-la, ou substituí-la quando a substituição for necessária e a coisa tiver natureza fungível, independentemente de culpa sua ou de erro do comprador.”.
[38] Sobre a importância da questão colocada e da resposta dada pelo legislador no quadro da interpretação das normas jurídicas,
vide António Agostinho Guedes,
Estudos sobre a Decisão Judicial (Coordenadas da decisão judicial em direito privado), UCP Editora, 2024, pp. 135-146.
[39] Esta é justamente a principal consequência da opção de regular a venda de coisas defeituosas no âmbito do instituto do erro. São conhecidos os pressupostos dogmáticos da opção legislativa: uma vez que o acordo das partes vai dirigido à coisa como ela é, e o vendedor cumpre a prestação a que está contratualmente obrigado mediante a entrega da coisa específica, a falta das qualidades acordadas não configura uma hipótese de cumprimento defeituoso, mas, sim, uma hipótese de falsa representação da realidade, isto é, de erro. Sobre esta matéria, vejam-se as considerações de Manuel António Carneiro da Frada,
Teoria da Confiança …, cit., p. 687, nota 747.
[40] Questão a que há-de responder-se, como se viu, ponderando os interesses típicos em presença, que são, fundamentalmente, o da autonomia de vontade, o da confiança e o da segurança do tráfego jurídico (conservação dos negócios jurídicos).
[41] Sobre este ponto, veja-se, com mais desenvolvimento, Manuel António Carneiro da Frada,
Teoria da Confiança …, cit. pp. 687-689.
[42] Recorrendo às expressões próprias do direito anglo-saxónico, e com todas as cautelas que tal recurso aconselha, nomeadamente tendo em conta que o significado dos diferentes conceitos não é coincidente, talvez possa afirmar-se que o regime da venda de coisas defeituosas previsto nos artigos 913.º e ss. assenta no binómio “
representation” | “
misrepresentation”, ao invés de assentar no binómio “
warranty” | “
breach”.
[43] António Pinto Monteiro,
Erro e Vinculação Negocial (A propósito da aplicação do bem a fim diferente do declarado), Coimbra, Almedina, 2002.
[44] É a circunstância de as qualidades serem habituais, por um lado, ou de terem sido asseguradas pelo vendedor, por outro, que
explica, que
fundamenta, que l
egitima a confiança do comprador.
[45] Talvez as denominadas qualidades próprias ou normais sejam qualidades que se devam considerar “qualidades representadas” ou prometidas pelo vendedor, independentemente de qualquer declaração deste nesse sentido (como proposto por João Baptista Machado,
Acordo Negocial e Erro …, cit.). De todo o modo, no âmbito do regime da venda de coisas defeituosas, todas as mencionadas qualidades são, por assim dizer,
qualidades pressupostas.
[46] Se quisermos, a equiparação entre declarações de ciência e de vontade tem duplo sentido:
por um lado, o de que, na interpretação avançada, no regime de venda de coisas defeituosas, tanto as “qualidades representadas”, como as qualidades prometidas e garantidas, relevam como qualidades
declaradas (
asseguradas) pelo vendedor;
por outro lado, o de que, na interpretação avançada, no regime de venda de coisas defeituosas, tanto o facto de o vendedor
declarar enunciar/afirmar certas qualidades, como o facto de o vendedor
declarar prometer ou garantir certas qualidades, justificam a confiança e a tutela da confiança do comprador através dos direitos previstos nos artigos 913.º e ss.
[47] No fundo, a hipótese interpretativa aqui avançada ancora-se nas reflexões de Paulo Mota Pinto,
Interesse Contratual …, cit., p. 1214, em nota (3394) e Manuel António Carneiro da Frada,
Teoria da Confiança …, cit., pp. 672 e ss., esp. 680-690, incluindo, em particular, o texto das notas 740, 743, 744, 747 e 749.
[48] “
Culpa in contrahendo” que se traduz, habitualmente, na violação culposa de deveres de indagação e informação por parte do vendedor.
[49] O que não quer dizer que a falta de qualquer uma destas qualidades, só por si, confira ao comprador os direitos previstos nos artigos 913.º e ss.
[50] Vide, por todos, Pedro Romano Martinez,
Cumprimento Defeituoso …, cit., pp. 29 e ss., 237 e ss., 419 e ss.
[51] Sobre a explicação da obrigação de substituição ou reparação da coisa defeituosa vendida como manifestação do direito ao cumprimento, veja-se o Acórdão do STJ, de 02.03.2010 (processo n.º 323/05.2TBTBU.C1.S1 | Relator: Urbano Dias) e os autores nele citados. Esta explicação parece ter contra si a 2.ª parte do artigo 914.º, mas a este tema regressaremos, com mais profundidade, mais adiante.
[52] Acórdão do STJ, de 20.08.2023 (Processo n.º 3655/06.9TVLSB.L2.S1-A).
[53] Veja-se, a este propósito, João Baptista Machado,
Acordo Negocial …, cit., pp. 32 e 35, Pedro Romano Martinez,
ob. e
loc. cit.
supra.
[54] Sobre a interpretação do artigo 914.º, veja-se Pedro de Albuquerque,
Direito das Obrigações (Contratos em Especial), Vol. I, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2022, pp. 447 e ss.
[55] Cf., p. ex., Pedro Romano Martinez,
ob. e
loc. cit.
supra.
[56] Cf., p. ex., Acórdão do STJ, de 02.03.2010 (processo n.º 323/05.2TBTBU.C1.S1 | Relator: Urbano Dias).
[57] Na doutrina, veja-se,
p. ex., João Calvão da Silva,
Compra de Coisas Defeituosas …, cit., pp. 61 e ss. e, embora em termos mais elaborados, João Baptista Machado,
Acordo Negocial …, cit., pp. 116 e ss.
[58] Para um enquadramento das diferentes hipóteses de erro essencial parcial ou erro incidental, veja-se, João Castro Mendes,
Direito Civil, Teoria Geral (Lições ao 2.º ano jurídico de 1972-1973, com a colaboração de Armindo Ribeiro Mendes), Lisboa, FDUL, 1973, pp. 127-141. Muito embora defenda que o fundamento dos direitos atribuídos ao comprador reside no contrato (
i. e., na circunstância de o vendedor se encontrar obrigado a entregar uma coisa com as qualidades devidas), João Baptista Machado não deixa de assinalar que “a prestação por assim dizer sucedânea (substitutiva) difere algo da negocialmente programada”, assim como não deixa de referir que é essa diferença que explica que “só poderá exigir-se do vendedor este sacrifício ou incómodo suplementar se ele conhecia ou devia conhecer o defeito da coisa – se ele não agiu, ao contratar, com toda a lisura e diligência que é de exigir de um homem íntegro, prudente e avisado.”:
Acordo Negocial e Erro …, cit., pp. 106-107 e 119-120.
[59] A reflexão subjacente às considerações do texto beneficiou muitíssimo da leitura da monumental obra de Paulo Mota Pinto,
Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vols. I e II, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, nomeadamente, do Vol. II, pp. 1009 e ss., 1198 e ss., 1272 e ss., 1361 e ss. e 1473 e ss., o que não quer dizer que as nossas considerações estejam em linha com as teses ou mereçam a concordância do ilustre civilista. Fica a ressalva.
[60] Não será demais recordar que, de acordo com os pressupostos dogmáticos do legislador, o devedor cumpre a prestação a que se encontra vinculado através da venda da coisa escolhida, independentemente de a mesma ter ou não as qualidades acordadas. Como não será demais recordar que essa conceção, ainda hoje, tem os seus defensores: veja-se,
p. ex., Pires de Lima e Antunes Varela,
Código Civil Anotado, Vol. II, cit., pp. 207-208.
[61] Para uma possível explicação da diferença de regime, nesta matéria, entre a venda de bens onerados e a venda coisas defeituosas, pode ver-se Manuel António Carneiro da Frada,
Teoria da Confiança ..., cit., p. 685, em nota de rodapé.
[62] No que poderá ser visto com (mais) uma especialidade do regime da compra e venda de coisas defeituosas face ao regime geral do erro, a lei não faz depender o exercício destes direitos da existência de vontade hipotética concordante do vendedor. Este requisito não consta do artigo 914.º, ao contrário do que sucede,
p. ex., no artigo 292.º, relativo à redução do negócio jurídico, e no artigo 293.º, relativo à conversão do negócio jurídico. E ao invés do que tende a defender a doutrina para o erro incidental
tout court. A lei, todavia, não descura os interesses do vendedor, que protege, seja circunscrevendo a modificação contratual que lhe é imposta à
redução do preço, seja estabelecendo que esta deve ser calculada pelo
método proporcional, seja, ainda, impondo a obrigação de reparação ou substituição da coisa apenas no caso de o vendedor desconhecer, sem culpa, o vício da coisa.
[63] A interpretação dos artigos 908.º e 909.º não é pacífica. Uma interpretação possível é a defendida por Inocêncio Galvão Telles,
Culpa na Formação do Contrato, cit., pp. 351-353.
[64] Igualmente visível na circunstância de a lei fazer depender a obrigação de o vendedor substituir ou reparar a coisa defeituosa da circunstância de desconhecer, sem culpa, o defeito (vício ou falta de qualidade) de que a coisa padece (cf. artigo 914.º, parte final).
[66] Sobre a indemnização devida em caso de redução do preço, cf. Paulo Mota Pinto,
Interesse Contratual …, Vol. II, cit. p. 1023, pp. 1197 e ss.
[67] Em ambos os casos, a indemnização é ditada, pois, pelo interesse contratual negativo do comprador, total ou parcial, consoante o caso. Parcial na medida em que os danos sofridos pela celebração do contrato original não tenham (já) sido ressarcidos pela celebração do contrato modificado.
[68] Sobre a discussão em torno das pretensões indemnizatórias previstas no regime da venda de coisas defeituosas, pode ver-se Paulo Mota Pinto,
Interesse Contratual …, cit., pp. 1009 e ss. Com inegável interesse para a compreensão das soluções legais e da vontade do legislador nesta matéria, Inocêncio Galvão Telles,
Culpa na Formação do Contrato, cit.
[69] Estando em causa a proteção da confiança do comprador fundada na emissão de determinadas declarações por parte do vendedor, nada obsta a que tais declarações sejam negociais, no sentido de declarações sobre as qualidades prometidas ou garantidas. O que aí está em causa não é o incumprimento da promessa feita ou da garantia prestada, mas o facto de o comprador ter confiado que a coisa tinha as qualidades prometidas ou garantidas.
[70] Sobre as dificuldades “práticas” da destrinça entre umas e outras, Manuel António Carneiro da Frada,
Teoria da Confiança …, cit., p. 682, em nota de rodapé.
[71] Admite expressamente esta hipótese interpretativa Manuel António Carneiro da Frada,
Teoria da Confiança …, cit., pp. 681 e 685, ambas em nota de rodapé.
[72] Referindo-se expressamente, neste contexto, ao erro como causa anulatória ou modificativa do contrato, Inocêncio Galvão Telles,
Culpa na Formação do Contrato, cit., p. 346, nota 6.