EDITORIAL
Maria Olinda Garcia
Importância e complexidade do arrendamento urbano: a incerteza de uma casa portuguesa?
1. O convite da Doutora Maria Raquel Guimarães para participar neste número da RED sobre arrendamento urbano e para escrever o seu editorial foi um desafio irrecusável. O prestígio que esta jovem revista já alcançou deve-se, em grande medida, à dinâmica e à inteligente visão de futuro da sua diretora. De facto, a interdisciplinaridade e o inerente alargamento de horizontes temáticos, tanto a nível nacional como internacional, são incontornáveis no futuro da investigação e do ensino do direito, bem como no rejuvenescimento da dogmática jurídica.
Este é um número monográfico dedicado, centralmente, ao arrendamento urbano, matéria cujo regime se não confina à civilística contratual, pois ai se identificam marcadas opções de política legislativa (igualmente identificáveis em ordenamentos jurídicos estrangeiros), que se materializam também em específicas regras processuais, fiscais ou administrativas.
O acesso ao gozo de um imóvel por via do arrendamento pode parecer, à primeira vista, uma matéria distante do direito empresarial ou económico. Todavia, se considerarmos que o arrendamento é um importante investimento do setor imobiliário, que muitas atividades económicas se desenvolvem em locais arrendados e que o acesso à habitação arrendada é fundamental tanto para a mobilidade como para a estabilidade dos trabalhadores, percebe-se que entre estas áreas existem relevantes afinidades e potenciais linhas de investigação.
Por outro lado, a mobilidade de quem pretende trabalhar ou instalar um estabelecimento comercial noutro país assenta, em primeiro lugar, no acesso a um imóvel arrendado. Não sendo o arrendamento objeto direto de normas da União Europeia, mas sim um domínio da competência de cada Estado membro, é de fundamental importância o conhecimento dos demais regimes, os quais apresentam, entre si, uma significativa diversidade.
Queremos agradecer o contributo de todos os que aqui trouxeram o resultado da sua investigação e reflexão, e em particular aos professores e investigadores estrangeiros que enriqueceram a revista com as perspetivas dos respetivos ordenamentos jurídicos.
Com a brevidade própria do espaço que um editorial permite, deixamos, de seguida, algumas notas sobre as últimas alterações ao regime do arrendamento urbano.
2. A “permanente transitoriedade” do regime do arrendamento urbano
O quadro legal do arrendamento urbano, definido pela Lei n.6/2006 (e por vários diplomas complementares), já alterado em 2012 e em 2014, voltou a ser alterado, em junho de 2017, pela Lei n.42/2017 e pela Lei n.43/2017 (ambas de 14 de junho).
A “dinâmica” legislativa, ao longo destes anos, tornou a disciplina do arrendamento urbano numa matéria de grande complexidade, pelas dificuldades interpretativas que muitas soluções legais suscitam. O regime do arrendamento urbano parece, assim, ter-se tornado num regime “permanentemente transitório”, o que exige da doutrina e da jurisprudência um esforço de atualização e de “rápida reflexão” sobre as novas soluções e a forma como se integram, sistemática e teleologicamente, no quadro legal vigente.
Neste contexto, apontamos algumas notas breves sobre as principais mudanças que as leis de junho de 2017 trouxeram ao regime do arrendamento urbano, afirmando já que estes diplomas não são isentos de dificuldades interpretativas.
A lei n.42/2017 estabelece o regime de reconhecimento e proteção de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local, relevando tal qualificação quando esses estabelecimentos ou entidades funcionem em local arrendado, dado que passam a ser-lhes aplicáveis normas específicas do regime do arrendamento urbano, bem como do regime das obras em prédios arrendados. Tais particularidades normativas respeitam ao direito de preferência, ao direito de cessão da posição contratual do arrendatário e ao direito de realização de obras (vd. art.7º). Por outro lado, estes arrendamentos ficam também protegidos quanto à transição para o novo regime do arrendamento e quanto ao valor das rendas durante o período transitório, como resulta da alteração ao art.51º, n.4, al. d) da Lei n.6/2006. Aquela qualificação releva também para efeitos de aplicação do regime de obras em prédios arrendados, tornando mais restrita a possibilidade de denúncia do contrato para realização de obras de remodelação ou restauro profundos ou para demolição do imóvel arrendado (artigos 7º, 7º-A e 8º do DL n.157/2006).
Os critérios bem como o procedimento para o reconhecimento do interesse histórico e cultural ou social local de um estabelecimento ou entidade (previstos nos artigos 4º a 6º) parecem valer especificamente para os órgãos municipais responsáveis por tal qualificação (e não para serem aplicados pelos tribunais comuns em caso de conflito entre senhorios e arrendatários). Todavia, tais critérios não parecem ser completamente vinculativos para tais órgãos municipais, dado que estes podem até definir critérios especiais, como estabelece a al. b) do art.5º. Esta previsão legal pode suscitar dúvidas quanto ao âmbito do poder conferido aos municípios em matéria que é da reserva legislativa da Assembleia da República, pelo que poderão ter razão algumas vozes que já se pronunciaram pela sua eventual inconstitucionalidade.
A Lei n.43/2017 alterou quatro artigos do Código Civil: 1083º, n.3, 1084º, n.5, 1094º, n.3 e 1103º, n.4, 6 e 8. Estas alterações têm em comum o propósito de tutelar interesses do arrendatário, representando um “movimento pendular” de sentido oposto ao da Lei n.31/2012 (que tinha conferido maior tutela aos interesses do locador). Assim, em caso de falta de pagamento de rendas, a mora relevante para efeitos de resolução do contrato volta a ser de três meses (como era antes da Lei n.31/2012). O prazo supletivo do arrendamento a prazo para fim habitacional passa de dois para cinco anos. Todavia, esta é uma disposição de diminuto efeito prático, dado que as partes continuam ter total liberdade contratual para estabelecerem o prazo que quiserem. O regime da denúncia do arrendamento de duração indeterminada também é alterado num sentido mais favorável ao arrendatário, aumentando a indemnização a receber e o prazo para desocupar o imóvel.
Quanto às alterações introduzidas na Lei n.6/2006, destacam-se os artigos 35º e 36º (que tutelam os arrendatários carenciados e idosos), aplicáveis aos arrendamentos habitacionais anteriores ao RAU de 1990. Assim, passa de cinco para oito anos o tempo necessário para que o contrato transite para o novo regime, ao qual acrescem cinco anos de contrato a prazo (na ausência de acordo das partes). Por outro lado, durante todo este tempo, as rendas continuam a ser calculadas segundo os critérios estabelecidos no art.35º, n.2, no qual são agora introduzidos dois escalões intermédios, de 13% e de 15%. Estes critérios de cálculo de rendas são também aplicáveis, agora durante dez anos, aos arrendamentos que não transitam para o novo regime durante a vida do arrendatário (mais idoso ou deficiente), como previsto no art.36º. Também os arrendamentos para fins não habitacionais, comportáveis nas hipóteses do art.51º, n.4, passam a estar protegidos durante 10 anos, seguindo-se um contrato a prazo com a duração de 5 anos (na falta de acordo das partes).
As alterações ao DL n.157/2006 (nomeadamente artigos 4º, 6º e 8º) têm em comum o propósito de reforçar a tutela do arrendatário, densificando e restringindo o conceito de obras que podem justificar a denúncia do contrato, melhorando a indemnização a pagar ao arrendatário e ampliando o tempo para desocupação do imóvel (como disposto também no art.1103º do CC).
Em conclusão, a nosso ver, as alterações em análise não trazem uma melhoria significativa ao regime do arrendamento urbano, na perspetiva do equilíbrio de direitos e deveres das partes, perdendo-se, assim, uma oportunidade para corrigir situações injustas que se mantêm no regime do arrendamento (como já defendemos em anteriores publicações).
[Maria Olinda Garcia é Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra].
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1. O convite da Doutora Maria Raquel Guimarães para participar neste número da RED sobre arrendamento urbano e para escrever o seu editorial foi um desafio irrecusável. O prestígio que esta jovem revista já alcançou deve-se, em grande medida, à dinâmica e à inteligente visão de futuro da sua diretora. De facto, a interdisciplinaridade e o inerente alargamento de horizontes temáticos, tanto a nível nacional como internacional, são incontornáveis no futuro da investigação e do ensino do direito, bem como no rejuvenescimento da dogmática jurídica.
Este é um número monográfico dedicado, centralmente, ao arrendamento urbano, matéria cujo regime se não confina à civilística contratual, pois ai se identificam marcadas opções de política legislativa (igualmente identificáveis em ordenamentos jurídicos estrangeiros), que se materializam também em específicas regras processuais, fiscais ou administrativas.
O acesso ao gozo de um imóvel por via do arrendamento pode parecer, à primeira vista, uma matéria distante do direito empresarial ou económico. Todavia, se considerarmos que o arrendamento é um importante investimento do setor imobiliário, que muitas atividades económicas se desenvolvem em locais arrendados e que o acesso à habitação arrendada é fundamental tanto para a mobilidade como para a estabilidade dos trabalhadores, percebe-se que entre estas áreas existem relevantes afinidades e potenciais linhas de investigação.
Por outro lado, a mobilidade de quem pretende trabalhar ou instalar um estabelecimento comercial noutro país assenta, em primeiro lugar, no acesso a um imóvel arrendado. Não sendo o arrendamento objeto direto de normas da União Europeia, mas sim um domínio da competência de cada Estado membro, é de fundamental importância o conhecimento dos demais regimes, os quais apresentam, entre si, uma significativa diversidade.
Queremos agradecer o contributo de todos os que aqui trouxeram o resultado da sua investigação e reflexão, e em particular aos professores e investigadores estrangeiros que enriqueceram a revista com as perspetivas dos respetivos ordenamentos jurídicos.
Com a brevidade própria do espaço que um editorial permite, deixamos, de seguida, algumas notas sobre as últimas alterações ao regime do arrendamento urbano.
2. A “permanente transitoriedade” do regime do arrendamento urbano
O quadro legal do arrendamento urbano, definido pela Lei n.6/2006 (e por vários diplomas complementares), já alterado em 2012 e em 2014, voltou a ser alterado, em junho de 2017, pela Lei n.42/2017 e pela Lei n.43/2017 (ambas de 14 de junho).
A “dinâmica” legislativa, ao longo destes anos, tornou a disciplina do arrendamento urbano numa matéria de grande complexidade, pelas dificuldades interpretativas que muitas soluções legais suscitam. O regime do arrendamento urbano parece, assim, ter-se tornado num regime “permanentemente transitório”, o que exige da doutrina e da jurisprudência um esforço de atualização e de “rápida reflexão” sobre as novas soluções e a forma como se integram, sistemática e teleologicamente, no quadro legal vigente.
Neste contexto, apontamos algumas notas breves sobre as principais mudanças que as leis de junho de 2017 trouxeram ao regime do arrendamento urbano, afirmando já que estes diplomas não são isentos de dificuldades interpretativas.
A lei n.42/2017 estabelece o regime de reconhecimento e proteção de estabelecimentos e entidades de interesse histórico e cultural ou social local, relevando tal qualificação quando esses estabelecimentos ou entidades funcionem em local arrendado, dado que passam a ser-lhes aplicáveis normas específicas do regime do arrendamento urbano, bem como do regime das obras em prédios arrendados. Tais particularidades normativas respeitam ao direito de preferência, ao direito de cessão da posição contratual do arrendatário e ao direito de realização de obras (vd. art.7º). Por outro lado, estes arrendamentos ficam também protegidos quanto à transição para o novo regime do arrendamento e quanto ao valor das rendas durante o período transitório, como resulta da alteração ao art.51º, n.4, al. d) da Lei n.6/2006. Aquela qualificação releva também para efeitos de aplicação do regime de obras em prédios arrendados, tornando mais restrita a possibilidade de denúncia do contrato para realização de obras de remodelação ou restauro profundos ou para demolição do imóvel arrendado (artigos 7º, 7º-A e 8º do DL n.157/2006).
Os critérios bem como o procedimento para o reconhecimento do interesse histórico e cultural ou social local de um estabelecimento ou entidade (previstos nos artigos 4º a 6º) parecem valer especificamente para os órgãos municipais responsáveis por tal qualificação (e não para serem aplicados pelos tribunais comuns em caso de conflito entre senhorios e arrendatários). Todavia, tais critérios não parecem ser completamente vinculativos para tais órgãos municipais, dado que estes podem até definir critérios especiais, como estabelece a al. b) do art.5º. Esta previsão legal pode suscitar dúvidas quanto ao âmbito do poder conferido aos municípios em matéria que é da reserva legislativa da Assembleia da República, pelo que poderão ter razão algumas vozes que já se pronunciaram pela sua eventual inconstitucionalidade.
A Lei n.43/2017 alterou quatro artigos do Código Civil: 1083º, n.3, 1084º, n.5, 1094º, n.3 e 1103º, n.4, 6 e 8. Estas alterações têm em comum o propósito de tutelar interesses do arrendatário, representando um “movimento pendular” de sentido oposto ao da Lei n.31/2012 (que tinha conferido maior tutela aos interesses do locador). Assim, em caso de falta de pagamento de rendas, a mora relevante para efeitos de resolução do contrato volta a ser de três meses (como era antes da Lei n.31/2012). O prazo supletivo do arrendamento a prazo para fim habitacional passa de dois para cinco anos. Todavia, esta é uma disposição de diminuto efeito prático, dado que as partes continuam ter total liberdade contratual para estabelecerem o prazo que quiserem. O regime da denúncia do arrendamento de duração indeterminada também é alterado num sentido mais favorável ao arrendatário, aumentando a indemnização a receber e o prazo para desocupar o imóvel.
Quanto às alterações introduzidas na Lei n.6/2006, destacam-se os artigos 35º e 36º (que tutelam os arrendatários carenciados e idosos), aplicáveis aos arrendamentos habitacionais anteriores ao RAU de 1990. Assim, passa de cinco para oito anos o tempo necessário para que o contrato transite para o novo regime, ao qual acrescem cinco anos de contrato a prazo (na ausência de acordo das partes). Por outro lado, durante todo este tempo, as rendas continuam a ser calculadas segundo os critérios estabelecidos no art.35º, n.2, no qual são agora introduzidos dois escalões intermédios, de 13% e de 15%. Estes critérios de cálculo de rendas são também aplicáveis, agora durante dez anos, aos arrendamentos que não transitam para o novo regime durante a vida do arrendatário (mais idoso ou deficiente), como previsto no art.36º. Também os arrendamentos para fins não habitacionais, comportáveis nas hipóteses do art.51º, n.4, passam a estar protegidos durante 10 anos, seguindo-se um contrato a prazo com a duração de 5 anos (na falta de acordo das partes).
As alterações ao DL n.157/2006 (nomeadamente artigos 4º, 6º e 8º) têm em comum o propósito de reforçar a tutela do arrendatário, densificando e restringindo o conceito de obras que podem justificar a denúncia do contrato, melhorando a indemnização a pagar ao arrendatário e ampliando o tempo para desocupação do imóvel (como disposto também no art.1103º do CC).
Em conclusão, a nosso ver, as alterações em análise não trazem uma melhoria significativa ao regime do arrendamento urbano, na perspetiva do equilíbrio de direitos e deveres das partes, perdendo-se, assim, uma oportunidade para corrigir situações injustas que se mantêm no regime do arrendamento (como já defendemos em anteriores publicações).
Maria Olinda Garcia é Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.