YEAR 2014 N.º 1
ISSN 2182-9845
Paulo de Tarso Domingues
Borges e os “pierre-menardismos”, Popper e as palavras grandiloquentes: contributos para a redação de textos jurídicos
Quando a Diretora da RED, Professora Raquel Guimarães, me convidou para fazer o Editorial deste número, fiquei obviamente honrado, mas simultaneamente preocupado com o que poderia eu trazer para este texto de abertura da Revista Eletrónica de Direito da Faculdade de Direito da Universidade do Porto.
Lendo os editoriais anteriores, constatei – como é expressamente afirmado no editorial do n.º 1 – que a RED pretende ser um espaço multicultural e aberto, recebendo contributos de diferentes quadrantes e autores. Por isso, porque a RED se destina a acolher autores consagrados e prestigiados, mas também a promover e divulgar valores emergentes (o que deve ser, de resto, o desígnio de qualquer revista jurídica), decidi tomar a liberdade de aqui deixar aos mais novos, mas também (porque não?) aos mais velhos, alguns conselhos – que eu, quando jovem, seguramente gostaria de ter recebido – sobre a redação de textos jurídicos.
O primeiro prende-se com aquilo que se pode designar pelo fenómeno do “pierre-menardismo”. Pierre Menard é um personagem ficcional de Jorge Luís Borges (vide Ficções, Colecção Mil Folhas, Público, Porto, 2003) que, na sua obra “mais significativa”, mais não faz do que reproduzir “palavra por palavra e linha por linha” o clássico texto D. Quixote, de Cervantes. Pois bem, isso é – descontado o exagero – aquilo que se pode encontrar em vários textos jurídicos; ou seja, nada de novo! E este é um primeiro erro que deve ser evitado por qualquer autor. Com efeito, o texto doutrinal não deve ser uma mera câmara de ressonância, não se deve limitar a fazer eco do que outros já tenham dito sobre o assunto (como se verifica tantas vezes com a inclusão, no próprio texto, de extensas citações de terceiros sobre o tema) ou até, pior, limitar-se a reproduzir o que a própria lei consagra sobre a matéria; é preciso que haja uma reflexão crítica, que os assuntos sejam problematizados e que as questões – que porventura podem até já estar muito tratadas e debatidas – sejam apresentadas com um enfoque novo, com uma perspetiva diferente, permitindo, pelo menos, ao leitor conhecer e compreender as controvérsias e as diferentes posições que o tema suscita (vale aqui o velho brocardo: non nova, sed nove).
Por outro lado, é também comum, que aqueles textos essencialmente descritivos ocupem dezenas, senão centenas de páginas. E, como diz Borges, no prólogo ao referido livro Ficções, “espraiar por quinhentas páginas uma ideia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos” não se pode efetivamente deixar de considerar como um “desvario (…) empobrecedor”. A capacidade de síntese e a capacidade de abordar de forma direta e sem circunlóquios a questão que constitui o objeto do trabalho são qualidades preciosas que inquestionavelmente o autor deve cultivar.
Este é, pois, o primeiro conselho que aqui gostaria de deixar: o autor deve tentar evitar ser um (novo) Pierre Menard.
Uma segunda reflexão, que gostaria de partilhar com os leitores da RED, está relacionada com a circunstância de, não raras vezes, se encontrarem autores que gostam – que fazem até um esforço nesse sentido! – de tornar o discurso difícil, escrevendo de forma pomposa e utilizando palavras grandiloquentes. É esta uma armadilha e uma tentação para a qual é fácil os mais novos sentirem-se atraídos, precisamente porque muitas vezes é associada a esse “estilo” uma elevada preparação científica e intelectual.
A todos os que ponderem trilhar esse caminho, recomendo vivamente a leitura do texto de Karl Popper, “Contra as palavras grandiloquentes” (que se pode ler no livro Em busca de um mundo melhor, Editorial Fragmentos, Lisboa, 1992), onde o autor afirma que “quem não for capaz de se exprimir de forma clara e simples deveria permanecer calado e continuar a trabalhar até conseguir a clareza da expressão”. Aliás, Popper considera que a falta mais grave – o “pecado capital” – que um intelectual pode cometer é precisamente quando se tenta arvorar em grande profeta, em ser superior aos demais indivíduos, tentando impressioná-los com filosofias complexas. De resto, como acertadamente referiu outro grande intelectual, Einstein, quando não se consegue explicar alguma coisa de forma simples é porque não se a conseguiu ainda compreendê-la devidamente (“If you can´t explain it simple, you don’t understand it well enough”).
Donde, o texto jurídico – qualquer que ele seja: legislativo, jurisprudencial ou doutrinário – não deve ser hermético, fechado e obscuro, por forma a que apenas seja acessível a uns quantos iniciados ou iluminados. Bem pelo contrário! O texto jurídico deve tornar fácil o difícil, permitindo descodificar e compreender facilmente os problemas mais imbricados. Esse será seguramente o seu maior mérito, levando – deverá ser esta a sua finalidade última e, portanto, nessa medida, a primeira – a que a sua mensagem chegue e seja compreendida pelo maior número de pessoas possível (o que não significa, importa também sublinhá-lo, que a linguagem e o discurso jurídicos devam ser indigentes ou boçais..).
Ora, é com gosto que verifico que os textos que têm sido publicados na RED, sendo de elevado nível científico-jurídico, não têm enfermado de qualquer um dos vícios que assinalei. Para esse resultado seguramente terá contribuído a rigorosa política de peer review que tem sido levada a cabo pela comissão de redação da revista, que tanto quanto me é dado conhecer não tem paralelo entre nós, e que se traduz no facto de a publicação de qualquer texto – independentemente de quem é o seu autor e por mais prestigiado que ele seja – tenha obrigatoriamente que ser objeto de uma prévia apreciação por parte, pelo menos, de dois revisores.
Parece-me, por isso, que se poderá augurar, sem grande margem de erro, que, a manter-se a escrupulosa e exigente prática de peer review que tem vindo a ser implementada, a RED irá seguramente afirmar-se como uma revista de referência no panorama jurídico nacional.