ANO 2019 N.º 3

ISSN 2182-9845

Editorial

Tiago Azevedo Ramalho

As recentes alterações ao regime do arrendamento urbano constituem mais um fator de turbação das já de si agitadas águas do Direito do Arrendamento. Certamente que, a julgar pela amostra das últimas décadas, não será de augurar particular boa sorte para esta ou para qualquer outra legislação que intervenha sobre a matéria. Mas será ao menos razão bastante para tentar compreender por que neste domínio, à imagem de alguns outros de Direito Civil, o ritmo da normalidade é pautado pela inconstância.


Pois talvez a causa da volatilidade não radique sequer no Direito Civil, ou ainda, como frequentes vezes aventado, numa possível imperícia do legislador para o modelar num sentido tal capaz de lograr uma ampla estabilidade das soluções normativas. Talvez assim possa acontecer uma vez por outra, pela infelicidade de alguma solução proposta – tenha-se em vista, por exemplo, a complexidade dos regimes transitórios. Mas parece não explicar a tão arreigada inconstância aumentada afinal por sucessivas tentativas de a resolver, e à qual ninguém, uma vez colocado no lugar de decidir, parece poder escapar.

A específica dificuldade da regulação do Direito do Arrendamento decorre – tal é a tese que aqui se sustenta – de se encontrar instalado na tensão entre fundamentais exigências da justiça distributiva e os possíveis resultados do funcionamento de um sistema negocial assente na justiça comutativa. A exposição será feita por referência ao arrendamento urbano com fins habitacionais, embora seja extensível, com as necessárias – e não poucas – modificações, para as restantes finalidades e modalidades do contrato.

Com efeito, antes ainda da questão jurídica de como regular o contrato civil de arrendamento urbano, está o problema anterior, de natureza pública, da garantia do acesso à habitação. Ora, o problema da garantia do acesso à habitação é essencialmente de justiça distributiva. Com a garantia do acesso à habitação pretende-se justamente que, considerados todos os bens disponíveis, sejam distribuídos de um tal modo que a todos garanta uma habitação razoavelmente apta à satisfação das suas necessidades pessoais e sociais. Seja como for, do ponto de vista da justiça distributiva o enfoque é colocado não tanto nos meios, mas no resultado distributivo que se pretenda alcançar. Os meios são, portanto, indiferentes, no sentido de que quaisquer uns são tidos por adequados, desde que instrumentalmente se adequem à obtenção do fim pretendido.

Bem diferente é a lógica do sistema comutativo civil, assente – entre outros elementos – no reconhecimento de posições privadas de soberania sobre certos bens, e na interação entre os diferentes intervenientes de acordo com critérios de liberdade e de responsabilidade. Interessam agora, não já os resultados finais, mas apenas a regularidade dos meios utilizados pelos diferentes participantes no tráfego jurídico. Qualquer resultado obtido, não sendo necessariamente bom, é pelo menos legítimo, regular e tutelado pelo Direito, desde que produzido em conformidade com os meios juridicamente atendíveis (por ex., contratos válidos e eficazes). Se, no fim de contas, um termina com tudo, ou poucos com muito e muitos com pouco, ou todos aproximadamente com o mesmo – qualquer um destes resultados é tido por indiferente, igualmente regular, desde que obtido em respeito pelas regras do jogo.

Um Direito Civil assente nestes princípios – e, se não assenta, então será já uma nova realidade sob uma arcana designação – não está, pois, em nenhuma circunstância a ponto de garantir certos fins de justiça distributiva que se pretendam produzidos. Pode ser até que os produza, mas pode ser também que não. Pois, em última linha, a feição final do Direito Civil é determinada, não por qualquer decisão de nível central, mas por um número possivelmente infinito de pequenas operações negociais efetuadas de modo livre e descentralizado pelos membros da comunidade na respetiva interação. Ora, o agregado de todas estas pequenas operações negociais não se pode antever à partida, porque dependente apenas da iniciativa pessoal daqueles que as levam a cabo. Por isso que uma reforma do regime contratual do arrendamento com vista a promover um certo resultado final possa conduzir a resultados fundamentalmente diversos dos pretendidos em sede legislativa, pois nunca pode antecipar aquilo que da legislação não depende: as próprias opções individuais dos intervenientes no tráfego, nas respetivas decisões de arrendar ou não arrendar, dos termos em que arrendar, de colocar ou não termo ao contrato, e assim sucessivamente.

Cruzando um e outro elemento, bem se percebe a forte tensão a que está sujeito o Direito do Arrendamento. Um qualquer sistema em que a garantia do acesso habitação se encontre dependente do efetivo funcionamento do mercado está necessariamente condenado a estar sob permanente tensão – porque aquilo em que assenta, o funcionamento de um modelo de justiça comutativa, não é deterministicamente capaz de gerar o output ou a externalidade que se deseja.
Sem prejuízo do que adiante se dirá, certamente que o modelo mais perfeito, do ponto de vista da articulação entre o sistema de justiça distributiva e justiça comutativa, assentaria em prever, à margem do Direito Civil, sistemas redistributivos tais que garantissem um efectivo acesso à habitação que não colocasse sobre o Direito de Arrendamento a pressão de ter de garantir, ou ter de contribuir, para regimes redistributivos finais – por ex., um sistema de arrendamento público, em bens públicos, de longa duração. Obtidas assim as finalidades redistributivas pretendidas (no caso, um efectivo acesso a habitação a todos que a procurassem), o sistema jurídico civil poderia funcionar de modo livre.
Na ausência, também pela sua eventual indesejabilidade, de tais mecanismos alternativos, só sobra uma possibilidade: justamente a de inserir no próprio Direito Civil regras que procurem garantir certos resultados redistributivos. Paradigmaticamente, favorecendo a maior estabilidade do vínculo em proteção de arrendatários e em prejuízo de senhorios, assentando aqui a redistribuição em tirar liberdade a uns para oferecer estabilidade a outros. E assim por exigência indeclinável de justiça distributiva: uma vez tutelado o núcleo fundamental de posições jurídicas da pessoa – este sim de tanta relevância que o seu primeiro agente reconhecido de tutela é o próprio titular, mediante diferentes mecanismos de acção directa disponíveis –, a satisfação das exigências de justiça distributiva tem de logicamente preceder o respeito pelas de justiça comutativa. Se por “vinculismo” se entender somente uma reforçada, qualificada, vigorosa protecção do inquilino, então o “vinculismo” enquanto tal não constitui nenhum atavismo, mas uma resposta possível, embora imperfeita, ao problema de conciliar o acesso à habitação com a eventual ausência de alternativas reais ao arrendamento em mercado. Solução resultante, portanto, da incorporação, internalização, das exigências de justiça distributiva num sistema de justiça comutativa.

Saber qual a medida exata de tutela, e qual o seu modo de operacionalização, é já uma outra tarefa – e fonte afinal de muita da instabilidade do regime jurídico do arrendamento. De resto, como já acima se sublinhou, do ponto de vista da justiça distributiva os meios são indiferentes, desde que se satisfaça o fim pretendido: se, sob o ponto de vista distributivo, a desejada destinação final dos bens se obtém de formas diferentes do “vinculismo”, então tais soluções poderiam até ser adoptadas. Mas, em caso negativo, nada há de estranho, nem de desusado, nem de inusitado, numa particularmente robusta protecção do arrendatário, como aliás é comprovado pelo contemporâneo Direito alemão, país sem prejuízo com um vigorosíssimo mercado de arredamento, cujas soluções altamente protectivas têm sido a este particular respeito estranhamente pouco divulgadas entre nós.

Mas mesmo caso houvesse sistemas redistributivos tais que facultassem o resultado redistributivo pretendido em sede de acesso à habitação, sempre seria de considerar, ao menos para os arrendamentos de média e longa duração, uma especial protecção do arrendatário. Se o Direito Civil é o Direito fundamental da pessoa comum, então não pode ficar indiferente à crescente fragilidade do arrendatário à medida que se prolonga a execução do contrato, a ponto de a cessação do contrato de arrendamento – com quanto ela implica de reconfiguração da identidade da pessoa, por provocar uma ruptura do seu espaço vital existencial – poder ter consequências particularmente lesivas do arrendatário e da sua família. Ora, é bem razoável, mesmo dentro de um estrito quadro de justiça comutativa, que aquele que disponibiliza onerosamente a outrem um bem que se lhe tornará de importância existencial, haja de ver restringida a sua liberdade de recuperar o bem e de o recolocar (ou não) em mercado. Com, obviamente, contrapartidas adequadas, quer na remuneração pela concessão de gozo, quer na possibilidade de poder energicamente exigir ao locatário o cumprimento do amplo feixe de deveres laterais que decorrem da relação contratual, e de poder reagir à respectiva violação – exigências também elas, e não menores, da justiça comutativa.

A tensão latente ao regime jurídico do arrendamento, na origem da sua instabilidade patente ao nível legislativo, parece estar para ficar. Por isso, mas agora já serenamente, atentemos nesta última e nas prováveis novas tentativas de encontrar um equilíbrio entre estas duas exigências de justiça distributiva e comutativa, as quais, embora tão diferentes na intenção, são aqui forçadas a entrar em convivência.


[Tiago Azevedo Ramalho é Professor Auxiliar Convidado da Faculdade de Direito da Universidade do Porto]