ANO 2024 N.º 2
ISSN 2182-9845
Filipa Margarida Dias Santa / José de Campos Amorim
Assimetrias híbridas; OCDE; BEPS; Planeamento Fiscal abusivo; Evasão fiscal; Elisão Fiscal.
As assimetrias híbridas, resultantes da diferença de qualificação de instrumentos financeiros, entidades e pagamentos efetuados por distintas jurisdições, têm sido usadas pelas grandes empresas em esquemas de planeamento fiscal para conseguir situações de dupla não-tributação, de duplas deduções e de deduções sem a inclusão dos respetivos rendimentos, dos quais terá resultado a erosão da base tributável e a transferência de lucros para países fiscalmente mais favoráveis. Em consequência destas assimetrias, a OCDE e a UE implementaram algumas medidas com vista a neutralizá-las, constantes da Ação 2 do Plano de Ações BEPS, respeitante às assimetrias híbridas e seus efeitos, e das Diretivas Anti Elisão Fiscal, as quais foram transpostas para o Código do IRC.
1. Introdução
2. A erosão da base tributável
3. Evolução das medidas de combate à erosão fiscal
4. Natureza das assimetrias híbridas
5. Efeitos das assimetrias híbridas
6. Recomendações quanto à aplicação da Ação 2 do BEPS
7. Considerações finais
Referências bibliográficas
1. Introdução
Com liberalização do comércio e dos movimentos de capitais, criou-se uma abertura para a criatividade e para o planeamento fiscal abusivo das empresas. Para as empresas que conseguem usufruir deste planeamento fiscal, este instrumento, apesar de consideravelmente vantajoso, gera uma desigualdade notável e fragiliza os sistemas fiscais dos países, culminando numa erosão substancial das bases tributáveis das demais jurisdições[1].
As vantagens fiscais que as pessoas coletivas usufruem a nível internacional, embora sejam consideradas legais, resultam muitas vezes de aproveitamento de lacunas fiscais nas demais legislações internas e até nas Convenções para Evitar a Dupla Tributação. Para fazer face à diminuição significativa das receitas fiscais, a OCDE, em 2013, apresentou 15 Ações para combater estas práticas abusivas, baseadas nos princípios da coerência, substância e transparência. Nenhuma das 15 Ações tem prioridade em relação às outras, existindo uma interligação entre todas na necessidade de combater a erosão da base fiscal e a transferência de lucros para países ou territórios com regimes fiscalmente mais favoráveis.
De entre as diversas Ações do Plano de Ações BEPS, a Ação 2 (Neutralising the Effects of Hybrid Mismatch Arragements, Action 2 – 2015 Final Report, OCDE, 2015)[2], visa combater a erosão da base tributária através das práticas de elisão fiscal e o desvio de lucros para jurisdições de reduzida tributação e, assim, atenuar os abusos praticados sobretudo pelas empresas multinacionais que tentam tirar partido dos mecanismos de otimização fiscal e adotam estratégicas agressivas de planeamento fiscal com vista à obtenção de uma maior vantagem fiscal.
Na sequência das recomendações da OCDE, a União Europeia (UE) aprovou várias diretivas antielisivas, nomeadamente a Diretiva (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016 (Diretiva Antielisão Fiscal I, Diretiva ATAD I)[3], a qual foi que foi posteriormente complementada pela Diretiva (UE) 2017/952 do Conselho, de 29 de maio de 2017 (Diretiva ATAD II) e transpostas para a ordem interna, através da Lei n.º 24/2020, de 6 de julho. A Diretiva ATAD I implementa um regime orientado para a correção das situações de dupla não tributação provocadas pelas assimetrias híbridas. A Diretiva ATAD II é destinada às assimetrias híbridas e à neutralização dos seus respetivos resultados. Este novo regime comunitário é compatível com as soluções propostas pela OCDE[4].
As assimetrias híbridas exploram as diferenças no tratamento fiscal de uma entidade ou de um instrumento financeiro nos termos da legislação de duas ou mais jurisdições fiscais, a fim de obter uma dupla não tributação, duplas deduções de gastos ou deduções de gastos sem inclusão dos rendimentos nas bases tributáveis. Elas operam em contextos transfronteiriços em resultado da interação entre ordenamentos jurídicos, o que coloca grandes desafios em termos de tributação internacional para os Estados e as instituições internacionais.
A principal manifestação dessas assimetrias ocorre quando a qualificação jurídica de um pagamento é interpretada de maneira diferente em distintos sistemas legais. Mais concretamente, estas assimetrias híbridas resultam de diferenças na qualificação jurídica de um determinado instrumento financeiro ou de uma entidade entre uma empresa com sede num determinado Estado e outra empresa associada com residência noutro Estado. Desta diferença, sucede que a dedução do pagamento, das despesas ou das perdas pode ocorrer em ambos os Estados (“dupla dedução”) ou é deduzido um pagamento no Estado onde o pagamento tem origem, sem a correspondente inclusão, para efeitos fiscais, desse mesmo pagamento no outro Estado (“dedução sem inclusão”). Com estas assimetrias híbridas acabam por beneficiar as empresas multinacionais que, no contexto de operações transfronteiriças, tentam aproveitar as diferenças entre os regimes fiscais das jurisdições em que operam, assim reduzido a sua carga fiscal.
Neste contexto, o objetivo principal deste artigo é analisar a natureza e os efeitos das assimetrias híbridas, previstas nos artigos no Código do IRC, em que os artigos 68.º-A a 68.º-D, que definem o âmbito de aplicação deste regime, bem como as soluções propostas pela OCDE e UE.
2. A erosão da base tributável
As instituições internacionais têm vindo a adotar um conjunto de medidas destinadas a combater a erosão da base tributária.
Para tal, a OCDE aprovou, em 1998, o relatório intitulado “Harmful Tax Competition: An Emergencial Global Issue”, em que identifica algumas práticas fiscais prejudiciais. Na sequência deste relatório, aprovou um Plano de Ações BEPS destinadas a combater algumas fontes de erosão da base tributável, nomeadamente a economia digital, a criação de produtos híbridos, os regimes fiscais privilegiados, a utilização abusiva das convenções de dupla tributação, os preços de transferência, o reporte de prejuízos fiscais, o recurso a sociedades estrangeiras controladas (“CFC”) e a transferência de rendimentos para estabelecimentos estáveis situados em países ou territórios com regimes fiscais prejudiciais.
Através deste Plano de Ações, a OCDE pretende combater estas fontes de erosão fiscal, em especial enfrentar os desafios da economia digital, neutralizar os efeitos negativos dos produtos híbridos, reforçar as regras das sociedades estrangeiras controladas, limitar a dedutibilidade dos encargos financeiras e lutar assim, de forma geral, contra o planeamento fiscal abusivo e as práticas fiscais desleais e prejudiciais.
De todas estas medidas, importa aqui destacar a utilização de produtos híbridos como uma das principais causas da erosão de base, bem como a transferência abusiva de lucros para empresas do mesmo grupo localizadas em países fiscalmente privilegiados e a defesa rigorosa de uma simetria de tratamento entre o país de origem e a jurisdição privilegiada. Estas medidas antielisivas tem em vista evitar, entre outros, as situações de dupla dedução, de dedução sem inclusão e créditos fiscais. Tal se verifica no caso de entidades híbridas, com estruturas empresariais de natureza diferente, com filiais em determinados territórios e sedes noutros países, localizadas em países transparentes num caso e opacas noutros, o que gera situações de concorrência fiscal desleal, na medida em que os rendimentos são objeto de uma dupla dedução, de dedução sem inclusão e de créditos fiscais.
Neste mesmo sentido, a UE aprovou algumas medidas destinadas a combater a concorrência fiscal prejudicial através da adoção pelo Conselho Ecofin, em 1 de dezembro de 1997, do código de conduta das empresas, com a finalidade de combater a fraude e evasão fiscal, cujo objetivo se tornou um dos principais eixos da política fiscal dos Estados-membros, bem como a aprovação de novas regras em matéria de auxílio aos Estados e a implementação de novas diretivas europeias antielisivas. A UE tomou essas medidas no sentido de assegurar condições de concorrência equitativas e leais entre os Estados da UE e os seus parceiros internacionais.
Foi assim que recentemente, na sequência das recomendações da OCDE[5], aprovou várias diretivas antielisivas da UE, nomeadamente a Diretiva (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016 (Diretiva Antielisão Fiscal I, Diretiva ATAD I), orientada para a correção das situações de dupla não tributação provocadas pelas assimetrias híbridas, a qual foi depois posteriormente complementada pela Diretiva (UE) 2017/952 do Conselho, de 29 de maio de 2017 (Diretiva ATAD II), destinada às assimetrias híbridas e à neutralização dos seus efeitos em termos de erosão da base tributável. Este novo regime comunitário é compatível com as soluções propostas pela OCDE.
A erosão da base tributável tem levado as instituições internacionais a aprovar uma série de medidas, que entretanto já foram incluídas no ordenamento jurídico interno, na expetativa que venham a produzir os seus efeitos.
3. Evolução das medidas de combate à erosão fiscal
Na evolução das medidas de combate à erosão fiscal, importa distinguir as medidas adotadas a nível da OCDE, da UE e de Portugal.
A nível da OCDE, podemos destacar um conjunto de medidas destinadas a lutar contra as assimetrias híbridas.
A OCDE apresentou em 1998 um relatório sobre as práticas fiscais prejudiciais[6], aprovado em 9 de abril de 1998, que elenca um conjunto de princípios e de ações destinadas a combater a concorrência fiscal prejudicial. Neste Relatório são identificados alguns fatores, como os regimes fiscais privilegiados, a falta de transparência, o sigilo bancário, a ausência de atividade real e efetiva e a qualidade da governação.
O relatório da OCDE de 2010 foi o primeiro a identificar o problema das assimetrias híbridas. Este documento, intitulado de Addressing Tax Risks Involving Bank Losses (OCDE, 2010), identificou os vários casos de planeamento fiscal resultantes do desfasamento das legislações nacionais e ressalvou a importância da assistência administrativa em matéria fiscal.
Em 2011, a OCDE apresenta o relatório Tackling Aggressive Tax Planning trough Improved Transparency and Disclosure (OCDE, 2011), em que faz referência ao aumento substancial da troca de informações fiscais entre os países como método eficaz de combate ao planeamento fiscal agressivo.
Em 2012, no relatório Hybrid Mismatch Arrangements: Tax Policy and Compliance issues, a OCDE reporta a dificuldade de as autoridades fiscais acompanhar as transações de maior complexidade, os desajustamentos híbridos e o impacto destes nas receitas dos Estados, bem como volta a referir a necessidade de trocas de informações fiscais entre os países. Neste relatório são identificados quatro tipo de assimetrias híbridas relacionadas com as diferenças de tratamento fiscal em cada jurisdição, entre as quais as entidades híbridas, as entidades com dupla residência fiscal, os instrumentos híbridos e as transferências híbridas.
No ano seguinte, foi reportado no relatório que a solução para o problema em causa não seria simples nem podia ser resolvido individualmente a nível de cada país, uma vez que, por um lado, as empresas multinacionais estão a tirar proveito dos diferentes regimes fiscais e, por outro lado, as ações levadas a cabo pelos Estados podem resultar em situações de dupla tributação internacional, o que é extremamente prejudicial para a atratividade do investimento.
Em fevereiro de 2013, o G20 reconhece a relevância do estudo da OCDE sobre esta matéria e recomenda um reforço das mediadas. Com a publicação em 2013 do relatório Addressing Base Erosion and Profit Shifting (OCDE, 2013), a OCDE tem em vista definir um plano concreto e de rápido desenvolvimento para combater a erosão da base fiscal, devido ao seu impacto negativo nos países industrializados e nos países em desenvolvimento.
Em resultado desta iniciativa, a OCDE, em colaboração com o G20, apresenta quinze ações (Action Plan on Base Erosion and Profti Shifting, OCDE 2013), por forma a introduzir uma linha de ações nas jurisdições nacionais para combater a erosão da base tributável. Este projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting) tem com objetivo combater os esquemas fiscais prejudiciais e promover a troca de informações entre os Estados.
Em 19 de julho de 2013, é publicado o Action Plan on Base Erosion and Profit Shifting, que contempla 15 ações, as quais incorporam novas medidas destinadas a rever as normas existentes e a acelerar a convergência das práticas nacionais em matéria fiscal. Das quinze ações planeadas, é de destacar a Ação n.º 5 que visa combater os regimes fiscais prejudiciais, dando prioridade à melhoria das regras de transparência e à exigência de uma atividade real e efetiva substancial, e a Ação n.º 2 que se dedica aos acordos híbridos assimétricos, e que apresenta recomendações para os Estados em matéria de neutralização dos efeitos de instrumentos e entidades híbridos.
O trabalho dos Estados membros da OCDE e das jurisdições membros do Quadro Inclusivo sobre a Ação 2 do BEPS culminou na aprovação do relatório da OCDE de 2015 sobre a neutralização dos efeitos dos acordos híbridos de incompatibilidade (Neutralising the Effects of Hybrid Mismatch Arragements, Action 2 – 2015 Final Report, OCDE, 2015).
Posteriormente, em 2017, a OCDE publicou um novo documento centrado na Ação 2 do BEPS em que foram fornecidas orientações adicionais relativas à implementação das novas normas para o combate das assimetrias híbridas (Neutralising the Effects of Branch Mismatch Arrangements, Action 2 - Inclusive Framework on BEPS, OCDE, 2017)[7].
Com o empenho da OCDE, do G20 e dos demais países, foram assim integralmente definidas as 15 medidas do Plano de Ação BEPS que vieram reformar a legislação fiscal internacional em matéria de combate à erosão fiscal[8].
A nível da UE, podemos destacar um conjunto de diplomas, que foram aprovadas no seguimento das recomendações da OCDE, em resposta à necessidade de uma tributação mais justa e destinada a combater, em particular, as assimetrias híbridas. A fim de transpor as Ações definidas no Plano de Ações BEPS, a UE aprovou a Diretiva 2016/1164 (The Anti Tax Avoid Directive, EU, 2016), em 12 de julho de 2016 (comummente conhecida como ATAD I) que estabelece regras contra as práticas de elisão fiscal que tenham incidência direta no funcionamento do mercado interno, tendo por base a Ação 2 do Plano BEPS.
Esta Diretiva vista estabelecer regras contra as práticas de elisão fiscal com incidência direta no funcionamento do mercado interno, da qual consta algumas recomendações como as regras de limitação da dedutibilidade de juros (Ação 4) e as regras de Controlled Foreign Corporation (CFC rules) (Ação 3). Pese embora a Diretiva só tenha entrado em vigor a 1 de janeiro de 2019, o Conselho da UE, veio estabelecer cinco medidas específicas para os Estados-Membro, que foram posteriormente transpostas para as legislações fiscais internas, por forma a combater o planeamento fiscal agressivo[9] praticado por empresas multinacionais.
Entende a UE que para o bom funcionamento do mercado interno e para garantir uma tributação justa e eficaz e desencorajar práticas de elisão fiscal é necessário que se coloquem em prática a Ação 2 do Plano BEPS da OCDE e estabelecer um nível mínimo comum de proteção no mercado interno. Adicionalmente, é essencial a existência de medidas nacionais de execução baseadas num regime comum proporcionado pela UE que deem segurança jurídica aos contribuintes.
Na medida em que uma das soluções propostas pela OCDE para atenuar os efeitos resultantes das assimetrias híbridas se traduz na redução da dedutibilidade dos gastos de financiamento, a Diretiva 2016/1164 impõe a necessidade de estabelecer um rácio de dedutibilidade respeitante aos resultados tributáveis dos contribuintes antes dos juros, impostos, depreciações e amortizações (EBITDA - Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization), como indicador de eficiência operacional da empresa sem os juros, impostos, amortizações e depreciações. Pode ainda ser adotada uma medida alternativa relativa aos resultados do contribuinte antes de juros e impostos (EBIT) que seja fixada de forma a ser equivalente ao rácio anteriormente enunciado (EBITDA).
Além disso, é mencionada na Diretiva a importância da tributação à saída (exit tax) nas situações em que um contribuinte transfere ativos ou o seu domicílio fiscal para uma outra jurisdição. O objetivo desta tributação é garantir que o Estado, onde estão localizados os ativos ou onde o contribuinte reside, tribute o valor económico das mais-valias geradas no seu território, ainda que não tenham sido realizadas no momento da saída para outro território. Este regime de tributação encontra-se já consagrado no artigo 83.º do CIRC e no artigo 10.º-A do CIRS.
Esta Diretiva 2016/1164 está mais direcionada para o combate à evasão fiscal nas suas diversas modalidades. Não obstante, uma vez que o previsto nesta Diretiva foi manifestamente insuficiente e dada a necessidade de “estabelecer regras que neutralizem as assimetrias híbridas de uma forma tão abrangente quanto possível”, em 29 de maio de 2017 foi publicada a Diretiva 2017/952 (ATAD II), que veio alargar o âmbito de aplicação da ATAD I “às assimetrias híbridas que envolvessem países terceiros”.
Em maio de 2017, na senda da OCDE, o Conselho da UE publicou no Jornal Oficial da UE a Diretiva 2017/952 (The Anti Tax Avoid Directive II, EU, 2017), com entrada em vigor a 1 de janeiro de 2022, com o objetivo de alargar o âmbito de aplicação das regras antielisivas aos países terceiros – com o aditamento dos artigos 9.º-A e 9.º-B, prevendo o combate às assimetrias híbridas importadas.
A nível de Portugal, podemos destacar as cláusulas gerais antiabuso e a lei que transpõe as Diretivas comunitárias. A cláusula geral antiabuso (CGAA) foi introduzida na legislação em 1998, aquando da aprovação da Lei n.º 87-B/98, de 31 de dezembro, através do artigo 32.º-A do Código de Processo Tributário (CPT), foi depois transposta para o artigo 38.º da Lei Geral Tributária (LGT), pela via da Lei n.º 100/99, de 26 de julho. O objetivo era implementar uma norma geral de combate à elisão fiscal, no sentido de ter uma amplitude maior do que as normas especiais antiabuso.
Na sequência da transposição da Diretiva (UE) 2016/1164 do Conselho, de 12 de julho de 2016 (Diretiva antielisão I), e da Diretiva (UE) 2017/952, do Conselho, de 29 de maio de 2017 (Diretiva antielisão II), o artigo 38.º da LGT foi objeto de alterações em que foram alterados alguns dos pressupostos da CGAA com vista à sua melhor eficácia. A CGAA, como norma supletiva, passou a abranger qualquer tipo de negócio jurídico, independentemente da natureza dos impostos diretos e indiretos [10].
A CGAA desempenha uma função preventiva e repressivo, tendo em vista impedir os “negócios anómalos que, embora lícitos, tenham como propósito exclusivo elidir a aplicação das regras tributárias”[11]. Para a sua aplicação, não basta que o negócio em causa tenha como objetivo principal a diminuição da carga fiscal ou a obtenção de uma vantagem fiscal, é ainda necessário provar que o contribuinte utilizou um meio fraudulento. Da aplicação da CGAA resulta a ineficácia do negócio em termos fiscais, passando a tributar-se o ato como se não tivesse havido um benefício fiscal.
A 3 de maio de 2019, Portugal, através da publicação da Lei n.º 32/2019, de 3 de maio, com entrada a vigor a 4 de maio de 2019, são efetuadas várias adaptações no Código do IRC, em conformidade com a Diretiva da UE n.º 2016/1164, e com a Diretiva (UE) 2017/952, do Conselho, de 29 de maio de 2017, que altera a Diretiva (UE) 2016/1164 no que respeita a assimetrias híbridas com países terceiros.
Esta lei prevê igualmente alterações ao nível, nomeadamente, dos artigos 46.º, 66.º, 67.º, 83.º e 84.º do CIRC, no que se refere à transferência da sede ou direção efetiva de entidades estrangeiras para território português; no que toca aos rendimentos de entidades não residentes considerados obtidos em Portugal, de acordo com o princípio da transparência fiscal internacional; em relação à modalidade de pagamento no caso de transferência da residência de uma sociedade com sede ou direção efetiva em território português para outro Estado-membro da União Europeia; e no que diz respeito à determinação do lucro tributável imputável a um estabelecimento estável de entidade não residente situado em território português.
Para além desta cláusula geral antibuso, foram criadas normas especiais antiabuso em sede de IRS, IRC e IVA. No caso do IRS, destaca-se o artigo 16.º n.º 6 (em matéria de residência), o artigo 18.º (relativo aos rendimentos obtidos em Portugal), o artigo 43.º n.º 5 (referente às mais-valias, na contraparte da operação em paraíso fiscal), e o artigo 73.º n.º 6 (taxas de tributação autónoma). Em sede de IRC, existem várias normas específicas antiabuso, entre as quais apontamos o artigo 23.º-A (encargos não dedutíveis), o artigo 49.º, n.º 10 (Instrumentos financeiros derivados), o artigo 51.º, n.º 10 (eliminação da dupla tributação económica), o artigo 73.º, n.º 10 (exclusão de neutralidade fiscal nas operações de fusão, cisão e entrada de ativos, quando estas operações tenham como principal ou principais objetivos a evasão fiscal), o artigo 63.º (preço de transferência é o “preço que seria acordado entre empresas independentes, relativamente a operações idênticas ou similares, no mercado livre” (OCDE) (critério do preço de plena concorrência ou “arm's length price”)), o artigo 64.º (correção do valor dos bens imóveis), o artigo 66.º (transparência fiscal internacional), o artigo 67.º (gastos de financiamento) e o artigo 88.º (tributação autónoma). Em matéria de IVA, é de destacar o artigo 19.º, n.os 3 e 4 (direito à dedução no caso de uma operação simulada) e o artigo 80.º (responsabilidade solidária dos sujeitos passivos). Além destas referências, estão ainda previstas outras normas antiabuso em sede de IMI, IMT e na LGT, sendo que, neste último caso, importa referir o artigo 63.º-B da LGT (levantamento do sigilo bancário) e o artigo 89º-A da LGT (manifestações de fortuna).
O passo seguinte resulta na implementação e monitorização destas alterações fiscais na vida das empresas.
4. Natureza das assimetrias híbridas
Importa, antes de mais, explicar o conceito de “assimetria híbrida”. Esta resulta das diferentes qualificações jurídicas decorrentes da interação entre os distintos ordenamentos jurídicos. O tratamento fiscal previsto nas diferentes jurisdições traduz-se em vantagens para ambas as partes, sendo a principal a redução da carga fiscal.
De acordo com o considerando n.º 15 da Diretiva (UE) 2017/952, distingue-se quatro grandes categorias de assimetrias híbridas: “em primeiro lugar, as assimetrias híbridas que resultem de pagamentos efetuados ao abrigo de um instrumento financeiro; em segundo lugar, as assimetrias híbridas que resultem de diferenças na imputação de pagamentos efetuados a uma entidade híbrida ou a um estabelecimento estável, inclusive em resultado de pagamentos efetuados a estabelecimentos estáveis não tidos em conta; em terceiro lugar, as assimetrias híbridas que resultem de pagamentos efetuados por uma entidade híbrida ao seu proprietário ou de pagamentos teóricos entre a sede e o estabelecimento estável ou entre dois ou mais estabelecimentos estáveis; por último, os resultados de dupla dedução decorrentes de pagamentos efetuados por uma entidade híbrida ou um estabelecimento estável”.
No primeiro caso, a assimetria híbrida pode resultar numa dedução sem inclusão imputável à diferença de qualificação do instrumento ou do pagamento efetuado. No segundo caso, a assimetria híbrida resultante da dedução sem inclusão decorre da diferença na imputação desse pagamento entre a entidade híbrida e o seu proprietário ou entre a sede e o estabelecimento estável ou entre dois ou mais estabelecimentos estáveis, no caso de pagamento efetuado a um estabelecimento estável. No terceiro caso, no que se refere aos pagamentos efetuados por uma entidade híbrida ao seu proprietário ou aos pagamentos teóricos efetuados entre a sede e o estabelecimento estável ou entre dois ou mais estabelecimentos estáveis, a assimetria híbrida resultante da dedução sem inclusão decorre do facto de o pagamento ou o pagamento teórico não ser reconhecido na jurisdição do beneficiário.
São assim consideradas híbridas as entidades que apresentam qualificações diferentes, entre pelo menos dois ordenamentos jurídicos, onde um é considerado transparente (imputação na esfera dos sócios) e outro opaco (em que a entidade é tributada pelos lucros gerados). Distingue-se assim, por um lado, a entidade híbrida clássica, que é tratada como opaca no Estado da sede e, simultaneamente, transparente no Estado da residência dos sócios; e a entidade híbrida inversa, que é tratada como transparente no seu Estado da sede e, simultaneamente, opaca no Estado da residência dos sócios.
As regras anti híbridas, aplicáveis às situações transfronteiriças, seguem as recomendações da Ação 2 do BEPS da OCDE, que visam neutralizar os efeitos destas assimetrias híbridas, o que obriga à aprovação de regras nacionais para neutralizar os efeitos dos instrumentos financeiros e das entidades híbridos nas respetivas jurisdições.
As assimetrias híbridas são também utilizadas no âmbito de operações de planeamento fiscal agressivo para explorar as diferenças de tratamento fiscal de uma entidade ou de um instrumento financeiro ao abrigo da legislação de duas ou mais jurisdições para obter uma dupla não tributação. Daí a importância em neutralizar os efeitos das assimetrias híbridas.
Estes tipos de assimetrias híbridas resultam numa erosão substancial das bases tributáveis das jurisdições em causa, conforme foi antes salientado no relatório da OCDE de 2010 intitulado “Addressing Tax Risks Involving Bank Losses” e numa análise subsequente efetuada por vários países membros da OCDE que identificaram exemplos de planeamento fiscal com recurso a expedientes híbridos, que conduziram ao relatório da OCDE de 2012 intitulado “Hybrid Mismatch Arrangements: Tax Policy and Compliance issues. Este relatório de 2012 sustenta que os regimes híbridos, para além do seu impacto nas receitas fiscais, têm um impacto global negativo em termos de concorrência, eficiência, transparência e equidade.
No relatório da OCDE de 2012 estão, aliás, categorizados 4 tipos de assimetrias híbridas mais comuns (Hybrid Mismatch Arrangements: Tax Policy and Compliance issues, OCDE, 2012, p. 7):
1) Entidades híbridas: Entidades que numa jurisdição são consideradas como transparentes e noutra jurisdição como opacas, i.e., numa entidade considerada transparente o lucro tributável é apurado na esfera da entidade e, posteriormente, tributado na esfera individual de cada sócio (imputável aos sócios ou detentores das participações (pass-trough)), enquanto que, numa entidade opaca, o lucro tributável é apurado e tributado na esfera da própria entidade, independentemente da relevância dos sócios para o apuramento da matéria coletável / da taxa de imposto que será aplicada em sede de IRC[12];
2) Entidades com dupla residência fiscal: Entidades com residência fiscal em mais do que um Estado (Hybrid Mismatch Arrangements: Tax Policy and Compliance issues, OCDE, 2012). Importa referir que a OCDE resolveu esta questão ao definir que, em situações de dupla residência de pessoas coletivas, considera-se o Estado de residência aquele onde está estabelecido a direção efetiva (Convenção Modelo da OCDE, artigo 4.º, n.º 3). Não obstante, revela mencionar principais vantagens e desvantagens destas situações de dupla residência. Ora, por um lado, a entidade poderá ser, injustamente, duplamente tributada pelo seu rendimento global. Por outro lado, poderá beneficiar da dupla dedução de custos e incentivos, o que se traduz num benefício fiscal (Lima, 2020);
3) Instrumentos financeiros híbridos: Instrumentos com qualificação diferente nos países envolvidos, em que, por motivos de diferença na qualificação do instrumento ou do pagamento, se verifica uma assimetria híbrida, quando o pagamento, efetuado ao abrigo de um instrumento financeiro, dá origem a um encargo dedutível no Estado do devedor sem inclusão no lucro tributável do Estado do beneficiário (Hybrid Mismatch Arrangements: Tax Policy and Compliance issues, OCDE, 2012).
4) Transferências híbridas: Estas transferências são classificadas, para efeitos fiscais, como uma transferência de propriedade de um ativo num país e como um empréstimo garantido num outro. Esta diferença resulta numa dedução sem inclusão, no sentido de que no segundo país podem ser deduzidos gastos de financiamento, enquanto que no primeiro não está sujeito a tributação (Hybrid Mismatch Arrangements: Tax Policy and Compliance issues, OCDE, 2012).
Destes 4 tipos de assimetrias híbridas mais comuns, resultam os seguintes efeitos: dupla dedução, de dedução sem inclusão e créditos fiscais[13].
No relatório da OCDE de 2017, intitulado Neutralising the Effects of Branch Mismatch Arrangements, Action 2 - Inclusive Framework on BEPS, são apresentadas recomendações com vista à adoção de regras nacionais destinadas à resolução das assimetrias envolvendo sucursais.
Este Relatório passa a alargar as assimetrias híbridas e a incluir as relações com as sucursais. Vários países do Quadro Inclusivo, como é o caso do Reino Unido, da Austrália e da Nova Zelândia, adotaram de imediato regras comuns de aplicação da Ação 2 para fazer face às assimetrias híbridas entre as entidades e suas sucursais.
As assimetrias que envolvem uma sucursal surgem quando as regras que regem a afetação dos rendimentos e das despesas entre a sucursal e a sede fazem com que uma parte do lucro líquido do contribuinte não seja tributada em ambas as jurisdições. Ao contrário das assimetrias híbridas que resultam de conflitos no tratamento jurídico de entidades ou instrumentos, as assimetrias que envolvem uma sucursal exploram as disparidades entre a forma como a sucursal contabiliza um pagamento efetuado por ou para a sucursal.
Na medida em que as assimetrias que envolvem uma sucursal se baseiam em diferenças de tratamento contabilístico e não em diferenças de classificação jurídica, a mesma estrutura jurídica de base pode exigir a aplicação de regras relativas a assimetrias que diferem consoante o tratamento fiscal/contabilístico adotado pela sede e pela sucursal, respetivamente[14]. Os acordos híbridos que envolvem uma sucursal permitem às multinacionais reduzir a sua carga fiscal global, explorando as diferenças nas regras de afetação dos pagamentos entre duas jurisdições.
Este relatório distingue cinco tipos de assimetrias envolvendo uma sucursal, a saber: a) a estrutura da sucursal não é considerada como estabelecimento estável ou sujeita a tributação no Estado onde se encontra; b) os pagamentos efetuados a uma sucursal não são imputados à sucursal mas à sede, que acaba por isentar esse pagamento pelo facto de ter sido efetuado em benefício da sucursal; c) os pagamentos efetuados pela sucursal e registados na sua contabilidade dão origem a uma assimetria de resultados fiscais entre as legislações dos dois países; d) os pagamentos efetuados pela sucursal dão lugar a uma dupla dedução de despesa, de acordo as legislações dos países da sede e da sucursal; e e) as assimetrias importadas envolvendo uma sucursal gera uma despesa dedutível[15].
Estas assimetrias envolvendo uma sucursal podem gerar um efeito de dedução/não-inclusão, de dupla dedução ou ainda assimetrias importadas.
Na sequência destas recomendações da Ação 2 da OCDE, os Estados-Membros da UE adotaram a Diretiva (UE) 2017/952 do Conselho, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2022, relativamente ao artigo 9.º-A da Diretiva (UE) 2016/1164.
Vejamos agora alguns dos efeitos das assimetrias híbridas.
5. Efeitos das assimetrias híbridas
Importa aqui analisar e concretizar os efeitos que resultam das assimetrias híbridas acima elencadas em termos de dupla dedução, de dedução sem inclusão e créditos fiscais.
a) Dupla dedução
De acordo com o ponto 9) do artigo 2.º da Diretiva 2016/1164, alterado pela Diretiva 2017/952, para efeitos dos artigos 9.º, 9.º-A e 9.º-B da Diretiva 2017/952, por dupla dedução entende-se “a dedução do mesmo pagamento, despesas ou perdas na jurisdição onde o pagamento tem origem, as despesas são incorridas ou as perdas são sofridas (jurisdição do ordenante) e noutra jurisdição (jurisdição do investidor)”. Isto faz com que o mesmo pagamento seja dedutível à matéria coletável em ambos os Estados, sempre que a entidade seja qualificada como transparente nos diferentes Estados (artigo 2º, nº 9, al. a) da Diretiva (UE) 2016/1164, de 12 de julho).
Este efeito é percetível numa assimetria híbrida originada pela dupla residência de uma entidade. Ora, tal como mencionado anteriormente, uma das vantagens principais que deriva do facto de uma entidade ser considerada residente fiscal em duas jurisdições diferentes é a possibilidade de poder deduzir os seus gastos em ambas as jurisdições. Concretizando, se considerarmos três empresas de um grupo, em que A e B são residentes no Estado I e B e C são residentes no Estado II, verificamos que a entidade B é considerada como residente fiscal em ambos os Estados, o que faz com que a empresa B, ao solicitar um financiamento para investimento, poderá deduzir os gastos de financiamento em ambos os Estados. Assim sendo, a existência de entidades híbridas tem um efeito de dupla dedução fiscal.
Vejamos um outro exemplo para ilustrar este efeito de dupla dedução. Suponhamos que a entidade A, residente fiscal no Estado I, detém a empresa A, residente no Estado II e que entre as entidades A e a B existe uma entidade híbrida[16] que, para efeitos fiscais, é considerada transparente no Estado I e opaca no Estado II.
Imaginemos que a entidade híbrida, igualmente detida pela entidade A, contratualiza um empréstimo com uma terceira entidade ou com uma entidade de um grupo de sociedades. No Estado II, não sendo a sociedade híbrida considerada transparente, estará sujeita a IRC, pelo que, ao abrigo do Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades, sendo a entidade híbrida a sociedade dominante naquele Estado, pode optar pelo regime especial de determinação da matéria coletável em relação a todas as sociedades do grupo e, assim, poderá beneficiar da dedução dos gastos de financiamento.
Pelo contrário, no Estado I, tendo em conta a legislação em vigor, sendo a entidade híbrida uma entidade transparente, a matéria tributável terá de ser apurada pela sociedade mãe (entidade A) e, posteriormente, tributada em sede de IRS na esfera dos sócios ou em sede de IRC no caso de agrupamentos complementares de empresas e de agrupamentos europeus de interesse económico, segundo o artigo 6.º do CIRC. Em todo o caso, a sociedade poderá deduzir os gastos de financiamento neste Estado.
b) Dedução sem inclusão
De acordo com a al. b) do ponto 9) do artigo 2.º da Diretiva 2016/1164, de 12 de julho, alterado pela Diretiva 2017/952, para efeitos dos artigos 9.º, 9.º-A e 9.º-B da Diretiva 2017/952, a dedução sem inclusão consiste na dedução de um pagamento efetuado por uma entidade a uma outra entidade (entre a sede e o seu estabelecimento estável ou entre dois ou mais estabelecimentos estáveis) em qualquer jurisdição em que esse pagamento é efetuado (designado por jurisdição do ordenante), sem a devida inclusão desse pagamento na esfera do beneficiário. O que significa que caso uma entidade seja qualificada como opaca no Estado de origem e transparente no Estado dos sócios, tal conduz a uma dedução na esfera dos sócios (pela sua participação), sem a inclusão do pagamento na matéria coletável da sociedade. Para combater tal assimetria, a dedução deve ser concedida apenas no Estado-Membro em que esse pagamento tem origem, evitando assim, a possibilidade de dupla dedução (artigo 9.º).
Vejamos, a título ilustrativo, um exemplo. Suponhamos que a Empresa A financia um investimento da Empresa B (subsidiária da Empresa A). No país da Empresa A, esta operação é qualificada em sede de IRC como um instrumento de capital. No país da Empresa B, este empréstimo híbrido é classificado como um instrumento de dívida. Ora, para o reembolso deste empréstimo, é legítima no país da Empresa B a dedução dos gastos de financiamento concedido pela Empresa A, verificando-se aqui uma dedução a favor do ordenante. Pois, na Empresa A, tendo em consideração a qualificação deste instrumento e o facto de se tratar de países membros da UE, com a aplicação do regime da participation exemption obtém-se uma isenção de participação, o que faz com que esses dividendos não sejam tributados.
Deste modo, a diferença na qualificação deste instrumento híbrido resulta numa dedução sem inclusão, em que os custos de financiamento deduzidos no país da Empresa B não concorrem para a determinação do lucro tributável no país da Empresa A.
c) Créditos fiscais
A duplicação (indevida) dos créditos fiscais resulta da prática de esquemas de transferências híbridas, em que a duplicação é causada pelas diferentes qualificações dos negócios em consequência da transferência de instrumentos financeiros.
A partir do exemplo seguinte, vejamos as consequências dos efeitos desta assimetria híbrida.
A entidade Beta, residente no Estado II celebra um contrato de empréstimo com a entidade Alfa, residente no Estado I. Além disso, a entidade Beta é titular de obrigações, das quais aufere juros e pretende usar esse rendimento para remunerar a entidade Alfa pela quantia emprestada. Uma vez que no Estado I prevalece o princípio de substância sob a forma, considerando que a entidade Beta é titular de obrigações e que a remuneração resultante do empréstimo está dependente do risco associado às obrigações, é, para o efeito, concedido um crédito pelo imposto que venha a suportar pelo rendimento resultante das obrigações.
Ora, pelo facto de o Estado II seguir a forma de negócio jurídico e, portanto, não existir qualquer transferência de titularidade das obrigações decorrentes deste negócio, a entidade Beta permanece com a titular das obrigações, mas poderá reclamar, neste Estado, um crédito pelo imposto que paga(ria) pelos rendimentos das obrigações.
Este direito a um crédito de imposto vem igualmente previsto no artigo 11.º das Convenções para Evitar a Dupla Tributação e na Convenção Modelo da OCDE, que preveem que “os juros provenientes de um Estado contratante e pagos a um residente do outro Estado contratante podem ser tributados nesse outro Estado”.
6. Recomendações quanto à aplicação da Ação 2 do BEPS
A Ação 2 é aquela que visa neutralizar os efeitos das assimetrias híbridas. O objetivo desta Ação é combater as divergências no tratamento fiscal de uma entidade/instrumento financeiro mediante a aplicação da legislação das jurisdições em causa[17]. Com esta Ação, a OCDE pretende que os resultados destas transações sejam coerentemente qualificados em ambas as jurisdições, pelo que quando um dos Estados reconhece um rendimento o outro deve reconhecer um gasto para que, no primeiro, esse rendimento possa ser tributado e no segundo o gasto seja devidamente deduzido.
Para que a Ação 2 seja aplicada, é necessário, segundo o previsto no Neutralising the Effects of Hybrid Mismatch Arragements, Action 2, que:
a) Sejam feitas alterações nas convenções para evitar a dupla tributação por forma a garantir que os instrumentos híbridos, bem como as entidades híbridas não sejam utilizadas com vista à obtenção exclusiva de vantagens fiscais;
b) As legislações internas impeçam a isenção / dedução de rendimentos e pagamentos, respetivamente;
c) As legislações internas recusem a dedução de gastos que não estejam incluídos no rendimento do destinatário (e que não esteja sujeito às regras de Controlled Foreing Corporation([18])– CFC – ou a regras similares);
d) As disposições do direito interno proíbem a dedução de gastos que sejam igualmente dedutíveis segundo a legislação nacional de outra jurisdição; e
e) Caso seja necessário, sejam coordenados os critérios para o caso de mais do que um Estado aplicar tais normas a uma determinada transação.
As recomendações previstas no relatório de 2015 da OCDE podem ser divididas em duas partes. Na primeira parte são apresentadas recomendações com vista a um alinhamento das legislações e à anulação das disparidades resultantes de assimetrias híbridas, nomeadamente:
a) Quando se trate de pagamentos dedutíveis efetuados ao abrigo de instrumentos financeiros híbridos, os dividendos que resultem dessas transações não devem estar isentos de tributação;
b) Os Estados devem prever medidas destinadas a evitar a dedução de duplos créditos fiscais relativos a impostos retidos na fonte;
c) Nos regimes de Controlled Foreing Corporation e noutros regimes de investimento offshore, os rendimentos das entidades híbridas devem ser tributados de acordo com a legislação da jurisdição do investidor;
d) Relativamente às entidades consideradas transparentes em cada uma das jurisdições, os Estados devem ser incentivados a adotar um método de reporte e a prestar as informações solicitadas;
e) No caso de híbridos invertidos, impõe-se a restrição da transparência fiscal dos híbridos invertidos que sejam membros de um grupo de controlo[19].
Ora, por referência aos efeitos das assimetrias híbridas acima elencados, a OCDE sugere especificamente o seguinte:
a) Dupla dedução
Para as transações efetuadas por entidades híbridas a solução é de não aceitar a dedução do gasto no Estado da sociedade mãe, o que, no caso do exemplo anterior, se traduz na não aceitação pela sociedade Alfa da dedução do gasto no Estado I. Em alternativa, a solução, mais defensável, consistiria em não deduzir o gasto na jurisdição da entidade que efetuou o pagamento, o que levaria a que a própria entidade híbrida não deduzisse esse gasto no Estado II, caso essa dedução fosse efetuada no Estado I.
b) Dedução sem inclusão
Quando estamos perante assimetrias híbridas resultantes de instrumentos classificados de forma diferente em duas jurisdições, podemos ter como resultado uma dedução num dos Estados sem a devida inclusão na matéria coletável do outro Estado (jurisdição do beneficiário). Ora, para estes casos, a OCDE propõe como solução a não dedução na jurisdição da entidade que efetua o pagamento (no exemplo acima referido seria a empresa Beta no Estado II). Caso tal solução não resolva o problema em apreço, a solução defendida pela Organização prevê que o Estado que beneficia do pagamento em causa deve incluí-lo na matéria coletável dessa entidade. No exemplo em apreço, trata-se de determinar que o reembolso que Beta efetua a Alfa seja devidamente incluído nos rendimentos da jurisdição da entidade que recebe esse pagamento, i.e., no Estado I, onde a empresa A é residente.
c) Créditos fiscais
Num cenário de duplicação de créditos de imposto em consequência de uma transferência híbrida (tal como descrito anteriormente), a recomendação da OCDE consiste em conceder o referido crédito em cada jurisdição na proporção do rendimento líquido tributável do contribuinte relativamente a essa transferência, por forma a que apenas o beneficiário efetivo desse rendimento obtenha o crédito correspondente (i.e., se aplicado no exemplo ilustrado supra, apenas a entidade Alfa terá direito ao crédito de imposto pelo rendimento que resulta das obrigações, dado que Beta utiliza esse mesmo rendimento para cobrir o gasto que tem com Alfa, em consequência do empréstimo que esta última lhe concedeu).
A OCDE apresenta várias recomendações que nos permitem perceber a sua importância e o seu impacto no combate à elisão fiscal. É de esperar agora que sejam seguidas estas recomendações e que seja aplicado o normativo previsto no CIRC, apesar das dificuldades na sua interpretação e aplicação.
7. Considerações finais
Pese embora a problemática de elisão fiscal não seja recente, com a evolução da globalização económica, as práticas de planeamento fiscal abusivo têm aumentado constantemente e de forma diversificada, tendo-se criado dificuldades crescentes para as autoridades tributárias no combate contra estas práticas abusivas de elisão e evasão fiscal.
O tema das assimetrias híbridas, inicialmente levantado pela OCDE e retomado pela UE, tem um impacto significativo na sociedade e no mercado interno, originando desigualdades consideráveis entre os demais contribuintes. As recomendações da OCDE foram transferidas para a legislação europeia e, posteriormente, para as legislações nacionais.
A transposição das Diretivas antielisivas para as legislações nacionais e a sua aplicabilidade em cada Estado da UE responde às preocupações dos Estados na quebra de eficiência fiscal e sobretudo na necessidade de lutar contra todos estes esquemas de concorrência desleal e de planeamento fiscal agressivo que conduzem à situações de dupla dedução, de dedução sem inclusão e de créditos fiscais.
Além destes instrumentos, a administração fiscal dispõe da CGAA, destinada a combater situações de planeamento fiscal abusivo naqueles casos em que não sejam aplicadas normas especiais. Tal CGAA foi adaptada ao novo quadro comunitário, em especial à Diretiva (UE) 2016/1164 e à Diretiva (UE) 2017/952, do Conselho, e admite novos critérios de combate da elisão fiscal nos casos de negócios que, mesmo lícitos, não sendo genuínos, ponham em causa as normas fiscais.
Com as recomendações da OCDE e da UE e o reforço das medidas internas, os Estados passam a ter condições para combater os efeitos das assimetrias híbridas resultantes da diferença de qualificação de instrumentos financeiros, entidades e pagamentos efetuados por distintas jurisdições.
Falta agora saber se estas medidas serão suficientes para evitar a realização de esquemas ou construções artificiais desenvolvidas sobretudo pelas multinacionais que tentam tirar partido das lacunas da lei para criar esquemas de planeamento fiscal abusivo cada vez mais sofisticados. Conhecidos os efeitos das assimetrias híbridas, as recomendações e as medidas legislativas previstas no CIRC, importa saber se as recentes alterações legislativas são de fácil interpretação e aplicação e suficientes para combater a elisão fiscal.
Importa, face à a complexidade destas operações, reforçar as orientações e os critérios objetivos de aplicabilidade das medidas antielisivas para garantir uma certa segurança jurídica aos contribuintes. Na dúvida, como não poderá deixar de ser, terão de ser os tribunais a garantir a sua correta interpretação.
Referências bibliográficas
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[2] Disponível no sítio https://www.oecd-ilibrary.org/docserver/9789264241138-en.pdf?expires=1717086532&id=id&accname=guest&checksum=56DCD8C89941704E6DD59A1BF3CF46BB (30.04.2024).
[4] Maria Rebelo Afonso d’Albuquerque, A diretiva antielisão fiscal: do regime anti-híbridos em especial, Lisboa, CIDEEFF, n.º 1/2022, 2022, pp. 1-182. Disponível em: https://www.cideeff.pt/xms/files/Arquivo/2022/CIDEEFF_Monografias_1_15mar2022.pdf (20.04.2024).
[5] Idem.
[6] OCDE, Harmful Tax Competition: An Emerging Global Issue, Paris, OECD Publishing, 1998. Este Relatório da OCDE visa a implementação efetiva de medidas de combate às práticas da concorrência fiscal prejudicial.
[7] Disponível no sítio https://www.oecd-ilibrary.org/docserver/9789264278790-en.pdf?expires=1717086357&id=id&accname=guest&checksum=2A2A52A85F2011E06C88ACDDEE4E28BA (15.04.2024).
[9] Marta Caldas, O conceito de Planeamento Fiscal Agressivo: Novos limites ao Planeamento Fiscal, Cadernos IDEFF, Coimbra, Almedina, n.º 18, 2015, p. 84; José Maria Logo Montero, “Planificación fiscal agresiva, beps y litigiosidad”, in Ars Iuris Salmanticensis ESTUDIOS, Ediciones Universidad de Salamanca, Vol. 3, 2015, pp. 67-68. Disponível no sítio https://revistas.usal.es/cuatro/index.php/ais/article/view/14449/14813 (05.05.2024).
[10] Processo n.º 167/2019-T do CAAD, 2020, p. 37. Disponível em: https://caad.org.pt/tributario/decisoes/ (28.03.2024).
[11] José de Campos Amorim, “Responsabilidade dos Promotores do Planeamento Fiscal”, in Amorim, José de Campos (Ed.), Planeamento e Evasão Fiscal, Porto, Vida Económica, 2010, p. 223.
[12] Cíntia Vaz Lima, As Assimetrias Híbridas e os desafios ao legislador português para o combate impostos pelas Diretiva (UE) 2016/1164 e Diretiva (UE) 2017/952). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2020. Disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/46827/1/ulfd145308_tese.pdf (06.03.2024).
[13] OCDE, Hybrid Mismatch Arrangements: Tax Policy and Compliance issues, Paris, OCDE, 2012, p. 7.
[14] OCDE, Neutralising the Effects of Branch Mismatch Arrangements, Action 2 - Inclusive Framework on BEPS, Paris, OCDE, 2017, p. 13.
[15] Idem.
[16] De acordo com o ponto 9) do artigo 2.º da Diretiva 2016/1164, alterado pela Diretiva 2017/952, para efeitos dos artigos 9.o, 9.o-A e 9.o-B da Diretiva 2017/952, uma entidade híbrida é uma entidade que passa a ser tributada de acordo com a legislação de uma jurisdição e os rendimentos obtidos ou despesas incorridas são tratados por uma ou várias outras entidades ao abrigo da legislação de outra jurisdição.
[17] João Miguel Vidreiro Martins, BEPS – Base Erosion and Profit Shifting: evolução, impacto e perspetivas futuras, Dissertação de Mestrado, Universidade de Aveiro, Instituto Superior de Contabilidade e Administração, 2018, pp. 1-151. Disponível em: https://ria.ua.pt/bitstream/10773/26768/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O_72825_J_MARTINS.pdf (20.03.2024).
[18] Uma Controlled Foreing Corporation (CFC) é uma empresa estrangeira que é direta ou indiretamente controlada por um contribuinte residente. Os critérios para a determinação do controlo variam de jurisdição para jurisdição, bem como as definições do rendimento de uma CFC e dos testes relativos à atividade substancial.
[19] De acordo com o artigo 9.º-A, n.º 1 da Diretiva 2017/952, do Conselho, de 29 de maio, “Caso uma ou mais entidades associadas não residentes que detenham de forma agregada um interesse direto ou indireto em 50 % ou mais dos direitos de voto, participações no capital ou direitos a uma parte dos lucros de uma entidade híbrida constituída ou estabelecida num Estado-Membro estejam localizadas numa jurisdição ou jurisdições que tratem a entidade híbrida como sujeito passivo, a entidade híbrida é considerada residente desse Estado-Membro e tributada sobre o seu rendimento na medida em que esse rendimento não seja de outro modo tributado ao abrigo da legislação do Estado-Membro ou de qualquer outra jurisdição”.