ANO 2023 N.º 3
ISSN 2182-9845
Tiago Azevedo Ramalho
Do Direito Civil ao seu Processo: sentido de uma implicação
Entre as formas certamente mais esclarecedoras de olhar a relação entre o Direito Civil e o seu Processo está aquela que neste encontra, no Processo, um momento ainda interno à concretização do sentido da lei civil. Personae, res, actiones, tal a tripartição clássica do orbe civil: as pessoas e o seu estatuto; os diferentes modos de relações jurídicas; e, finalmente, as acções enquanto meios de tutela – e por estas últimas se entendendo, não apenas as concretas posições de índole simultaneamente material e processual respeitantes a cada relação jurídica, mas o conjunto do ordo iudiciorum, da ordenação do poder de julgar, desde a qual é facultada a respectiva concessão. Não é então o Processo uma pura forma exterior que se molda a um qualquer conteúdo normativo, mas existe somente numa pluralidade de realizações concretas, cada uma adequada, à sua singular maneira, a realizar as mais diferentes posições jurídicas cuja protecção por ele se solicite.
A cada ramo de Direito, o seu Processo. O mesmo é dizer: a cada regime substantivo a sua declinação adjectiva, declinação esta que, para juristas como para gramáticos, determina, restringe e especifica o sentido daquele primeiro. A ponto de a concreta feição de uma dada ordem jurídica se fazer mediante o concurso de um e de outro, do substantivo e do adjectivo – do substantivo no sentido especificado pelo adjectivo.
Recorda-se o célebre dictum de Henry Sumner Maine, que, aliás, tantas vezes escutei a quem me conduziu a olhar o Direito desde este seu ângulo processual:
“So great is the ascendancy of the Law of Actions in the infancy of Courts of Justice, that substantive law has at first the look of being gradually secreted in the interstices of procedure; and the early lawyer can only see the law through the envelope of its technical forms” (Dissertations on Early Law and Custom, 1883).
De facto, pode até viver-se sem uma lei substantiva entendida à maneira da modernidade europeia: acto que expressa a vontade do soberano, fonte primeira de regulação, criadora e recriadora das regras de agir social, Direito antes do Direito, acção demiúrgica. Que sem ela se pode viver é testemunhado, afinal, por toda a história anterior à do Estado moderno.
Mas não se vive sem um Processo, sem um qualquer tipo de Processo, certamente assumindo, de acordo com as lógicas e paragens, diferentes fisionomias. Um Processo que, na hora em que estale a controvérsia, aplaque o conflito, reconcilie os desavindos, reteça as relações rasgadas das partes. Ou, se estes feitos são impossíveis, que coloque termo à relevância pública do conflito mediante uma decisão com carácter de autoridade. Diante destas circunstâncias, é sem surpresa que se depara com o “early lawyer” a abeirar-se deste preciso lugar, o Processo, para surpreender o desenvolvimento do Direito.
A nós, juristas modernos, não é tão fácil compreendê-lo, precisamente por se preferir hoje um modo outro de narrar o Direito, o moderno, que o pretende expressão e resultado de um poder que vai recriando e recriando o espaço público de convivência de acordo com os propósitos actuais de quem se afirma soberano. Daí a já assinalada centralidade do poder legislativo e, mesmo onde se imponha a separação de poderes, a subordinação dos demais às intenções daquele primeiro. Dirigida a óptica para o instante mágico em que se exerce o poder legislativo, então tudo o que o ultrapassa é desgraduado, incluindo o Processo. Pode ele agora ser interpretado como uma instância realmente exterior e acessória, espécie de forma pura secundária que se limita à “aplicação” do que, sem ele, já existiria perfeitamente de modo acabado.
Sem prejuízo: não é esta óptica uma ilusão?
Não se disputa a centralidade que reveste, na compreensão moderna do Direito, o poder legislativo. Mas é uma centralidade acompanhada de balizas que condicionam os termos da sua eficácia. Entre essas balizas se encontra a garantia de não identificação entre aqueles que exercem a função legislativa (ou executiva) e o corpo pessoal que exerce a função judicial – este último corpo, o dos magistrados judiciais, encontra-se devidamente separado, e goza, aliás, de um estatuto reforçado de independência. De onde uma importante consequência: aquele poder que tem a exclusiva competência para estabelecer novas regras cogentes para a vida em relação, o poder legislativo, não se identifica com aquele que tem o exclusivo poder de receberessas mesmas regras. Onde o poder legislativo pretendesse determinar o concreto sentido da sua realização num dado caso jurídico concreto, estaria a usurpar o espaço próprio de competência do poder judicial: já não a estabelecer Direito, mas a determinar o sentido da sua recepção.
Justamente a recepção de uma regra pode conduzir a que ela possa valer com um sentido diferente daquele que foi pretendido na sua introdução. Assim ocorre mesmo onde se esteja longe de professar um qualquer activismo judiciário e se adira convictamente ao dever de obediência à lei.
É ponto que se esclarece ao apontar-se para o diferente horizonte em que se move a actividade político-legislativa e a realização concreta do Direito em âmbito judicial. Aquele primeiro horizonte é de transformação da realidade normativa de acordo com uma específica intenção política. Mas, no plano da recepção, a obediência é devida, não somente a essa concreta intenção, tal como plasmada no texto do acto legislativo colocado a valer, como igualmente a todo o seu pretexto e contexto: quer dizer, a todos os demais textos e discursos normativos – e seus quadros conceptuais, e seus parâmetros de valor, e modelos metódicos que pressupõem, … – sem cujo valor aquele primeiro não pode ser compreendido, cujo valor é por ele pressuposto, e que, por isso, contribuem para lhe fixar um significado porventura diferente do pretendido por quem propôs a novel lei. Todo o novo texto legislativo vale sub conditione de poder ser coerentemente reconduzido ao bloco de juridicidade que pressupõe apesar da respectiva novidade. Tal o alcance do exercício da jurisdição: actividade de dizer o Direito num discurso coerente e razoável o que, sem esse esforço de articulação, seria somente arbitrário e casuístico exercício do poder.
Do princípio da separação de poderes e da independência da função judicial decorre, portanto, que esta acção de receber o Direito é confiada a um poder não absorvido pela função legislativa. De novo com Maine, parece que o Direito continua a ser “secreted in the interstices of procedure”. Se antes se escreveu, “a cada ramo de Direito, o seu Processo”, agora acrescenta-se: “cada ramo de Direito na medida do seu Processo”.
Ora, esta realidade do Processo não se pensa senão por referência ao concreto éthos – ao meio humano, ao habitat, à práxis, … – no qual se desenvolve e que lhe permite constituir-se. No limite, são actuações pessoais – das partes, dos seus mandatários, dos funcionários de justiça, dos órgãos de polícia, de juízes, … – que conformam a realidade processual e, mediante ela, a própria realização do Direito. Existindo o Processo apenas em acto, está dependente da concreta organização judiciária através da qual se desenvolve. No Processo se visibiliza como, em última linha, a realidade do Direito é de índole pessoal, interpessoal, de prática política.
Ora, porque cada ramo de Direito existe na medida do seu Processo, talvez possamos neste último, e na concreta organização judiciária por ele pressuposta, encontrar uma razão explicativa para a várias vezes apregoada razoabilidade substantiva, ou equilíbrio, das soluções jurídico-civis.
Próprio do Direito Civil é versar o estatuto jurídico da pessoa na relação com os seus semelhantes. Mas, existindo mediante o seu Processo e a sua organização judiciária, é igualmente o Direito que tem a particularidade de, no momento da “recepção” normativa, às partes conferir a garantia de verem a sua controvérsia resolvida por um julgador que não é senão um outro parque, circunstancialmente colocado na posição de julgar, aplica aos seus semelhantes critérios de decisão que poderiam valer igualmente para si; e que o faz apenas na sequência de uma tramitação na qual foi conferida, aos que se vêem sujeitos aos efeitos da decisão, a possibilidade de suscitarem a bondade da aplicação daqueles critérios ao caso concreto. Atenta a rede capilar, descentralizada, pluralíssima, destas instâncias destinadas a razoar o Direito – as nacionais, é certo, mas também as estrangeiras, que igualmente contribuem para ponderar equilíbrios normativos que podem depois ser recebidos em diferentes ordens jurídicas –, descobre-se um meio especialmente participado de mediar a recepção do Direito, possibilitando que o sentido global atribuído à lei civil seja o resultado de um complexo e rico equilíbrio de sensibilidades. Bem diferentes são os resultados a que chega um qualquer regime de jurisdição concentrada numa única instância central.
Deste modo, e graças à respectiva organização judiciária, o Direito Civil é comum, não só no objecto da sua regulação – a vida comum da pessoa comum –, mas também do lado daqueles que concorrem para a definição do seu conteúdo: cidadãos comuns que, mediante estudos e concursos abertos, se predispõem a participar na tarefa de recepção do Direito.
Nestes termos, uma radical transformação da ordem do Processo ou da organização judiciária que permite o seu exercício não deixa intocado o próprio Direito Civil: assim só seria possível no pressuposto de que este último existiria de modo perfeito e acabado antes ou apesar do seu Processo.
Ponderem-se duas ameaças que, acaso um dia se concretizem, certamente contribuirão para que se desfigure o rosto da lei civil.
Por um lado, a tentação do emprego de técnicas automatizadas de decisão, eventualmente substitutivas de um juízo decisório, e que têm por consequência a elisão do momento de recepção do Direito. A serem adoptadas, trazem elas a possibilidade de o programador “legislativo” ou “executivo” usurpar a função judicial, ao negar que, nesta última, intervenha o juízo de um outroque avalie em que termos deverá o dado legislativo ser recebido pela rede de juridicidade.
Por outro lado, o enorme volume de acções distribuídas a cada julgador (e também: a tentação do emprego de técnicas de inteligência artificial para poder lidar com esse mesmo volume, e até aumentá-lo…), impedindo não mais do que uma solução “maquinal” – e mesmo assim: com que assinalável e louvável esforço e sacrifício pessoais! –, único modo de lidar com um ingente serviço processual.
À sua maneira, cada um destes modos de degradação do exercício da função judicial se repercutirá na própria definição concreta do Direito – precisamente por o Processo não ser forma externa em relação ao Direito material, mas momento ainda interno à concretização do respectivo sentido. No que ao Direito Civil respeita, a concretização de qualquer uma destas ameaças trará consigo o risco de expropriar, o Direito Civil, daqueles a quem pertence, impedidos da oportunidade de formularem, por intermédio de alguns de entre os seus que são investidos na função de julgar, um juízo crítico sobre a lei por que regem o respectivo quotidiano.
Mas este juízo crítico é necessário – e por isso deve ser bem salvaguardado o espaço para que se possa exercer. De facto, por ele se garante um modo de convivência política que, assentando sem reserva no governo pelas leis, as pretende bem enraizadas no sentir comum, por a esse enraizamento deverem o seu equilíbrio. Um modo de convivência política assente, afinal, na autonomia, no autogoverno, na liberdade diante do despotismo que é viver sob uma lei estrangeira.
[Tiago Azevedo Ramalho é Professor Auxiliar da Faculdade de Direito da U.Porto e Investigador do CIJ]