ANO 2020 N.º 3

ISSN 2182-9845

Editorial

Mariana Fontes da Costa

No passado dia 23 de setembro, o Estado Português depositou, junto do Secretário-Geral das Nações Unidas, o seu instrumento de adesão à Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (doravante identificada pela sigla inglesa CISG), estando prevista a sua entrada em vigor em Portugal no dia 1 de outubro de 2021.
Trata-se de um marco de enorme importância para todos os empresários portugueses que desenvolvem as suas atividades de comércio para além das fronteiras nacionais e de um acontecimento há muito esperado por aqueles que se dedicam ao estudo do direito comercial internacional, ou, mais rigorosamente, do direito que regula as relações comerciais transfronteiriças entre operadores económicos privados. 
Aprovada em 11 de abril de 1980, pela Conferência das Nações Unidas sobre os Contratos de Venda Internacional de Mercadorias, que teve lugar em Viena sob a égide da Comissão das Nações Unidas sobre Comércio Internacional, a CISG tem vindo a afirmar-se, ao longo dos seus quarenta anos de existência, como um dos mais bem-sucedidos instrumentos internacionais de harmonização legislativa, tendo, à data de hoje, sido já ratificada por noventa e quatro Estados. 
Dentre as Partes Contratantes da CISG contam-se países que provêm de todos os quadrantes do globo, de todos os contextos culturais, políticos e económicos e de todas as famílias jurídicas; daí que uma das principais características reconhecidas a este instrumento seja a de representar um compromisso entre sistemas jurídicos diferentes, em especial entre os sistemas romano-germânicos e os sistemas da common law.  Entre os Estados que são parte da CISG contam-se, por exemplo, todos os países da União Europeia, com exceção da Irlanda e Malta (ressalvando a entrada em vigor em Portugal apenas em outubro de 2021) e o Brasil, onde a CISG entrou em vigor no dia 1 de abril de 2014.
Nas palavras do preâmbulo do Decreto n.º 5/2020, de 7 de agosto (que aprova, para adesão, a CISG), a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias tem como objetivo “a promoção da segurança e previsibilidade jurídicas relativamente ao regime jurídico aplicável à compra e venda internacional de mercadorias através da remoção dos obstáculos legais ao comércio internacional, nomeadamente na determinação da lei aplicável”.
Este propósito de harmonização crescente das regras jurídicas que regulam as relações comerciais internacionais tem vindo a ser promovido, consistentemente, pela Comissão das Nações Unidas sobre Comércio Internacional (UNCITRAL), pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado (UNIDROIT) e pela Conferência de Haia sobre o Direito Internacional Privado (HCCH) – conhecidas como as “três irmãs”, em matéria de harmonização do direito comercial internacional - e surge da constatação do impacto profundamente nefasto que a divergência das soluções jurídicas nacionais tem na internacionalização das empresas (sobretudo nas de menor dimensão) e na promoção de relações comerciais transfronteiriças. 
Pretende-se também, nas palavras do preâmbulo da própria Convenção, promover a adoção de um regime jurídico uniforme, assente em princípios de igualdade e benefício mútuo, atenuando eventuais discriminações e comportamentos oportunísticos, em prejuízo da parte contratualmente mais débil. Daí que uma das características (críticas?) apontadas à CISG seja a de apresentar, em algumas situações, um relativo favorecimento do comprador face ao vendedor. É, por exemplo, o caso do artigo 36.º, n.º 1 da Convenção (por contraposição com o artigo 914.º do Código Civil), que estatui que “[o] vendedor é responsável, de acordo com o contrato e com a presente Convenção, por qualquer falta de conformidade [das mercadorias] existente no momento da transferência do risco para o comprador, ainda que a falta de conformidade só se manifeste em momento posterior”
Em abono de um exercício sério de imparcialidade e transparência, terá de se reconhecer que este propósito de criação e implementação de um regime jurídico unificado e equilibrado para regular a compra e venda internacional de mercadorias é prejudicado pela ampla possibilidade de formulação de reservas que é concedida aos Estados Contratantes, nos artigos 92.º a 96.º; bem como pelo limitado âmbito material de aplicação da Convenção, tal como identificado nos artigos 2.º a 5.º; e, sobretudo, pela possibilidade de opt-out que é concedida às partes que celebram o contrato de compra e venda internacional, nos termos do artigo 6.º da CISG.
Trata-se, porém, de soluções compromissórias, que visaram evitar alguns dos erros que conduziram ao insucesso das Convenções de Haia de 1964. O seu impacto, no contexto global de aplicação da Convenção, não ensombra o papel que a mesma tem vindo a desempenhar, com sucesso, na redução da insegurança associada à determinação da lei substantiva aplicável às compras e vendas internacionais de mercadorias, bem como no papel de referência que a mesma tem vindo a assumir perante outros instrumentos de harmonização do direito comercial internacional (como os Princípios UNIDROIT aplicáveis aos Contratos Comerciais Internacionais), e até mesmo na influência a reformas de leis nacionais no âmbito do contrato de compra e venda.
A CISG é composta por 101 artigos e encontra-se dividida em quatro partes: a primeira parte regula o âmbito de aplicação da Convenção e as suas disposições gerais; a segunda parte, que começa no artigo 14.º, regula a formação do contrato; a terceira parte, com início no artigo 25.º, regula os direitos e obrigações do comprador e do vendedor, bem como o regime do não cumprimento do contrato; e a quarta e última parte, com início no artigo 89.º, contém as disposições finais, regulando matérias como o âmbito de aplicação temporal, reservas e outras declarações dos Estados-Contratantes e o modo de entrada em vigor.
Apesar de não ser completamente estranho a um jurista familiarizado com o sistema romano-germânico, o regime jurídico consagrado pela CISG apresenta algumas diferenças significativas face ao regime português da compra e venda, as quais irão exigir um esforço de conhecimento e adaptação. E se esse esforço pode já ter sido imposto, esporadicamente, aos operadores nacionais, em virtude da norma de aplicação espacial consagrada no artigo 1.º, n.º 1, b) da Convenção (que consagra a aplicação da mesma quando as regras de Direito Internacional Privado conduzem à aplicação da lei de um Estado Contratante), é óbvio que essa exigência se coloca agora com reforçada premência.
Muito auxiliará neste processo de familiarização com o regime jurídico consagrado pela CISG, que os operadores jurídicos nacionais são agora interpelados a fazer, a experiência de outros países, como o Brasil, e o acervo valioso de materiais de consulta disponibilizados, em acesso livre, no site da UNCITRAL (de que se destaca o acervo de decisões judiciais e arbitrais sobre a CISG constante do CLOUT – Case Law on UNCITRAL Texts). Terão aqui, também, um papel muito importante as Faculdades de Direito, chamadas a um labor de formação e divulgação crítica e comparada de um regime jurídico que, em breve, terá impacto no dia-a-dia do tecido empresarial português.

[Mariana Fontes da Costa é Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e Investigadora do CIJ]