ANO 2020 N.º 2

ISSN 2182-9845

Editorial

Helena Mota

As indeléveis transformações das formações familiares ocorridas nas últimas décadas impõem uma reflexão (também) sobre a componente patrimonial das relações jurídicas familiares e sobre a gestão do património familiar.
Nas sociedades contemporâneas, a família deixou de ser vista como unidade produtiva para constituir uma unidade de consumo; nesse sentido, a gestão dos ativos que permitem à família financiar a aquisição dos bens e serviços e as regras jurídicas aplicáveis nessa gestão assumem importância particular.
As famílias necessitam, amiúde, de financiamento por terceiros (mútuos bancários ou particulares) aos quais darão garantias através do seu património; outras vezes é a família quem investe e financia, vg através da participação no capital social das empresas ou pela colocação de imóveis no mercado de arrendamento. Neste sentido, a família é, também, unidade investidora.
A família contemporânea e o seu património ganharam ainda uma outra feição: são internacionais, movem-se, e fazem-no frequentemente em espaços jurídicos e económicos alargados, como a União Europeia. A emigração ou a imigração, as transferências de ativos financeiros ou os investimentos em ativos além-fronteiras são realidades conhecidas das famílias no séc. XXI.
Esteja o património familiar implicado em empresas familiares, cujo tratamento jurídico apresenta evidentes especificidades; tenha sido investido em imóveis para arrendamento ou comprometido no pagamento de dívidas a bancos, a senhorios, a empresas de locação financeira; deva este património ser repartido de formas distintas consoante as alterações sofridas pela estrutura familiar, após a morte ou o divórcio; fique circunscrito às fronteiras ou ganhe dimensão internacional: em qualquer caso, é necessário interpelar o jurídico e as soluções mais adequadas tanto do Direito da Família e das Sucessões como do Direito Comercial ou do Direito Internacional Privado.
É verdade que do ponto de vista jurídico, e numa análise superficial, são mais visíveis, até porque mais mediatizadas, as alterações legislativas em questões familiares pessoais.
De facto, receberam atenção privilegiada, quer dos meios de comunicação social quer das estruturas sociais e políticas, a admissibilidade e validade do casamento entre pessoas do mesmo género, a reforma da legislação em matéria de divórcio e de responsabilidades parentais, o estabelecimento da filiação através da PMA, o regime jurídico da união de facto e da vida em economia comum, a adopção conjunta por pessoas do mesmo género, entre outras.
É também razoavelmente aceite que todas estas “reformas” visaram, grosso modo, o aprofundamento e a densificação de uma ideia de “autonomia privada” em matéria pessoal familiar e de “desnormatização” da instituição familiar vista agora, em primeira linha, como cenário de afirmação da individualidade e singularidade de cada um dos seus membros e dos seus projectos pessoais.
Ora, e sem prejuízo de algumas contradições reveladas pelas soluções jurídicas adoptadas nestas matérias (vg liberdade de não casar vs regime parcialmente imperativo na união de facto; maior flexibilidade no acesso ao divórcio vs imposição de regras de partilha de bens; sedimentação do critério afectivo no estabelecimento de relações de filiação vs estímulo ao estabelecimento de filiação biológica pelo franqueamento dos métodos de PMA) parece ainda mais notória a ausência de intervenção legislativa em matéria patrimonial da família, omitindo, precisamente nas matérias onde a autonomia privada encontra menos resistência, uma reforma ampla e necessária de figuras e institutos que parecem já desfasados do seu tempo, como o princípio da imutabilidade dos regimes de bens, a (excessiva) comunicabilidade de dívidas entre os cônjuges, o aumento do espaço de autonomia da vontade em matéria sucessória e a “dessacralização” das legítimas ou dos pactos sucessórios ou dos testamentos de mão comum. Isto para além da sempiterna desarticulação entre as regras patrimoniais do Direito da Família, do Direito Bancário e do Direito Societário.
Ainda assim, nos últimos anos, assiste-se a uma intervenção legislativa em matéria patrimonial familiar. É disso exemplo, no ordenamento jurídico português, a alteração ao Código Civil operada pela Lei n.º 48/2018, de 14 de Agosto, através da qual foi consagrada a possibilidade de renúncia recíproca à condição de herdeiro legitimário do outro cônjuge ou a alteração do regime da transmissão por morte do arrendamento para habitação por mão da Lei n.º 13/2019, de 12 de Fevereiro.
Já no âmbito das relações familiares internacionais, a “revolução está em curso”: através do Regulamento (UE) n.º 650/2012, de 4 de Julho, e dos Regulamentos (UE) n.ºs 2016/1103 e 1104, de 24 de Junho, a lei aplicável quer às sucessões por morte quer aos regimes de bens e aos efeitos patrimoniais das parcerias registadas pode agora ser escolhida pelas partes envolvidas, afirmando a nova filosofia do primado da autonomia da vontade no Direito Internacional Privado em matéria de estatuto pessoal.
Não se pode, no entanto, esquecer que, por vezes, a articulação entre a autonomia conflitual nas matérias sucessória e matrimonial não foi a mais feliz, nem se tenha, por esta via da “europeização” do Direito Internacional Privado, alcançado quer a plena harmonia de decisões em todos os Estados-Membros quer evitar as eventuais dúvidas e problemas de qualificação, como é visível nas decisões do TJUE nos casos Mahnkopf e Kubicka e previsível quanto à qualificação da renúncia recíproca pelos cônjuges à condição de herdeiros legitimários.
Reflectir sobre estes problemas foi o objetivo do Colóquio Internacional “A Gestão do património familiar. Aspetos internos e internacionais”, realizado na Faculdade de Direito da Universidade do Porto, e que teve lugar no dia 22 de Novembro de 2019.
Este encontro científico, organizado no âmbito do Projeto de Investigação “The shape of law to come – Efeitos económicos da família no séc. XXI” do CIJ – Centro de Investigação Interdisciplinar em Justiça da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, reuniu juristas, académicos e especialistas de prestigiadas instituições como a Universidade de S. Paulo, a Universidade de Córdoba, a Universidade de Coimbra, a Universidade Católica-Porto e a Universidade do Minho.
Discutiram-se vários temas, desde a empresa familiar (vg tipos societários adequados, modos de governação, os problemas jurídicos suscitados pela participação do património familiar no capital social, incidências fiscais), ao “deve-haver” na família (do financiamento ao endividamento à repartição e transmissão do património, nos domínios do arrendamento, das dívidas conjugais, das garantias, das sucessões) sem esquecer a dimensão internacional da família, incidindo em particular no novo quadro legislativo europeu em matéria de conflitos de leis e de jurisdições.
Neste número especial da RED dedicado ao tema da Gestão do Património Familiar estão vertidas, de forma desenvolvida e aprofundada, algumas das importantes reflexões que vários oradores tiveram oportunidade de partilhar neste encontro científico e que são agora levadas ao conhecimento dos seus leitores.

[Helena Mota é Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto]