ANO 2016 N.º 1
ISSN 2182-9845
Christian Baldus
Inconscientes ou incendiários?
Sobre a avaliação universitária e imperialismo cultural
Por toda a Europa a avaliação da investigação universitária tem causado problemas. Quem sustente o contrário, mente – ou vive noutro mundo. Se, porém, a avaliação será veramente necessária, é todavia questão que, de momento, raras vezes se discute, apesar dos enormes recursos que consome: e logo em prejuízo da investigação e do ensino. Não fosse porém apenas desnecessária, é também – o que é pior – prejudicial.
Pois é com efeito prejudicial que a cultura científica seja manipulada ou limitada de uma forma tal que impede o seu natural desenvolvimento. É que a cultura científica funciona apenas a partir da iniciativa individual dos universitários e dentro da específica tradição de cada ramo do saber. A inovação e as relações científicas surgem, com efeito, quando os universitários, por sua livre iniciativa, se ocupam das matérias que pessoalmente lhes interessam. Sem surpresa, pois, quem exige formas burocráticas de associação entre investigadores não obtém qualquer inovação adicional. Todavia, as formas estandardizadas de avaliação estão em voga, quer a nível internacional, quer em todos os segmentos da sociedade – por razões conhecidas e seguramente por mais algum tempo. Trazendo consigo a ilusão de comparabilidade quantitativa da investigação ou mesmo de objectividade, servem de alimento a uma legião de burocratas e de ideólogos e facilitam afinal a ingerência, ora conformadora, ora manipuladora, da política, da burocracia e da economia sobre toda a sociedade.
Mas soam cada vez mais alto as vozes de protesto. Dirigem-se especialmente à chamada “valoração” da investigação de acordo com “métodos bibliométricos.” E assim por ser manifesto que por essa via não aumenta a qualidade, mas apenas o poder das pessoas e das empresas que controlam o acesso a certos journals, bem como, naturalmente, o poder daqueles que já têm esse acesso garantido e que se podem servir da citação como moeda de troca contra outras citações. Que mesmo o peer review não é remédio infalível contra estas últimas práticas, nem obsta aliás à publicação de textos sem qualquer valor, sabe-se hoje, de resto, a partir de disciplinas tão rigorosas como a Medicina. Intensifica-se, ao mesmo tempo, uma tendência de uniformização que subjuga novos temas e novos horizontes de tratamento. O mesmo vale, por fim, para os rankings de universidades, cujos métodos de avaliação em parte se revelam ininteligíveis, em parte desajustados no plano material, e que, em todo o caso, favorecem intencionalmente as universidades de certos Estados ou que se dedicam especialmente a certas matérias. Isso mostra-se com recurso a um critério tão simples como o do número de prémios Nobel. Tais prémios, com efeito, dirigem-se necessariamente, e em primeira linha, às ciências naturais e, depois, a institutos que gozam já de largas dotações para pessoal e equipamento; e por isso, na sua maioria, a institutos anglófonos. Contudo, as consequências de um tal ranking atingem com a mesma força, por exemplo, uma Faculdade de Letras de uma pequena universidade italiana, sendo indiferente quão bem esta realmente investigue e ensine. Se nesse pequeno lugar se encontram mais pessoas capazes de lerem grego antigo do que em todo um estado federado americano, e se são essas mesmas pessoas que, num certo sentido, alimentam a chama da Europa (dito de modo mais prosaico: que assim se conserve a actualidade dos recursos intelectuais da Europa), é ponto que, à luz daqueles critérios, em nada aproveita à posição no ranking da pequena universidade. Tudo gira, pois, em torno de interesses, em torno de um imperialismo cultural economicamente motivado.
Mesmo assim, os decisores políticos não decidem sacrificar a avaliação, reagindo em todo o caso à crítica com a promessa de que o sistema há-de ser “optimizado”. Ora, só se pode “optimizar” o que já é bom. Que esta posição, todavia, enferma de um erro de raiz – a ideia puramente ilusória de que a ciência poderá ser avaliada de modo absolutamente seguro e de que a simples quantificação oferecerá garantias suficientes –, não é porém, nos tempos que correm, um argumento politicamente correcto. De momento, digo, porque ninguém com o mínimo de ciência espera que o tempo das avaliações dure para sempre. Mais cedo ou mais tarde tudo se modifica: tão-só nesse momento ninguém quererá assumir a responsabilidade.
Importante é, aqui e agora, que até uma tal tomada de consciência não se destrua aquilo que putativamente só se pretendia melhorar: por exemplo, a universidade. Os sistemas de avaliação podem ser instituídos com mais ou menos diferenças e conduzidos por pessoas mais ou menos competentes. Há de resto exemplos de avaliações que, por bom conhecimento do ramo, permitiram de facto identificar alguns problemas. Mas há também um certo tipo de avaliação à bruta que como que arrasa por inteiro as diferentes culturas científicas de especialidade.
Nestes últimos casos impõe-se a pergunta: que interesses aí se escondem? Por que deve uma determinada linha de investigação ser eliminada? Ou um dado método? Ou um certo saber? Ou uma concreta cultura científica nacional? E ainda: quem tem realmente interesse em avaliar? Na Alemanha e em Itália – e apenas para estes dois Estados posso falar plenamente – a avaliação não traz vantagens pecuniárias substanciais aos avaliadores. Porque avaliam, então? Uns serão talvez idealistas, por acreditarem por essa via evitar males maiores; outros serão tão-só inconscientes; outros por fim são afinal cúmplices na prática de actos cujo vero impacto se depreende bem.
Um exemplo talvez ajude a aclarar o que se vem dizendo. Sobre um instituto jurídico de investigação português de referência foi recentemente emitida a seguinte avaliação por uma comissão internacional, composta, na sua maioria, por avaliadores estranhos à área:
“The innovators (…) have embarked on a path to modernize the study and research of law by shifting research away from dry doctrinal approaches to ‚the law in action‘ paradigm (...). It showed a mature choice by (nome do instituto) to select and focus on only a few themes which are prominent in contemporary society and which raise important legal questions to which thay [sic] want to devote themselves.” (“Os inovadores fizeram-se ao caminho de modernização do estudo e do ensino do Direito direccionando a investigação para longe de secas abordagens doutrinais em favor do paradigma da “law in action”. Tratou-se de uma escolha madura por parte do (nome do instituto) seleccionar e focar apenas uns poucos temas de grande relevo na sociedade actual e que levantam importantes questões jurídicas às quais eles próprios se pretendem devotar.”) Lamentável pareceu aos redactores da avaliação que a uma “prominence in Portuguese legal publications” (“proeminência em publicações legais portuguesas”) se contrapusesse uma “modest and uneven presence in peer-reviewed international journals” (“modesta e irregular presença em periódicos internacionais com revisão por pares”). E por isso são puxadas as orelhas aos avaliados: “(…) members need to be able to demonstrate through peer-reviewed publications at the next periodic assessment that they have successfully transitioned from doctrinal to law in context scholars.” (“os membros [do instituto] devem, no próximo período de avaliação, ser capazes de demonstrar, por via de publicações revistas por pares, que passaram com sucesso de académicos doutrinais para académicos centrados na law in context.”)
Ei-lo, o novo homem! Se por acaso a praxis jurídica portuguesa dele precisa, i.e., se juízes, funcionários públicos, advogados e notários, que dia após dia procuram resolver questões práticas de modo material e sistematicamente fundado, dele carecem – tudo isso parece manifestamente não interessar. Perante isto, há-de perguntar-se: que razões poderão levar estrangeiros como o Autor destas linhas, que (entre outros registos) também cultiva uma dogmática “crua e dura” (tal e qual como quase todos os juristas na Europa), a ler desde há décadas textos portugueses? A comissão não coloca a si própria estas questões, decerto por estar convencida de que menos dogmática, em favor de qualquer coisa como “training of legal practitioners”, será bom para as “productive structures” (sic). Parece-lhes, por certo, que uma law in context em lugar da dogmática é formidável.
Dá que pensar: quem autorizou esta comissão, manifestamente estranha à vivência prática do Direito e toldada por preconceitos, a avaliar o que é metódica e materialmente adequado, o que é actual, o que se justifica a longo prazo e o que não? A que é que se pretende agrilhoar a ciência jurídica portuguesa? E o que é que qualifica os avaliadores a dar conta do seu entendimento – mesmo se fosse procedente – em tão presumidomodo?
Segundo parece, nenhum dos Senhores que escreveram aquelas linhas goza sequer da formação necessária que os habilitaria a resolver um caso simples de compra e venda de acordo com o Direito português. (A dogmática é naturalmente seca: quando não se sabe a matéria.) Já se sentem, porém, capazes de mostrar a outros qual o caminho a seguir. Mas talvez devessem antes olhar com atenção e aprender: enquanto na maioria dos Estados europeus os universitários só muito raramente dominavam mais do que uma língua estrangeira, os privatistas portugueses (e não só os comparatistas) redigiam já monografias de largas centenas de páginas, com longos capítulos relativos ao Direito francês, inglês, alemão, …, conseguindo assim tratar os problemas jurídicos a partir de diferentes ângulos; e ainda hoje os discípulos dos seus discípulos trabalham assim. Escritos de tamanha precisão, densidade e profundidade – verdadeira alta tecnologia – encontrei apenas nuns poucos Estados europeus.
E a Europa precisa deste tipo de investigação fundamental. É o fundamento necessário para projectos legislativos concretos, mas também para uma aplicação inteligente do Direito no caso. Onde falhem estes fundamentos que, afinal, são os que desenvolvem e permitem levar à prática o Direito na Europa, então sofrerá a qualidade da aplicação do Direito e, no limite, a sua própria aceitação. Não há como quantificar essa influência, nem também o valor económico da aceitação do Direito pela comunidade: mas se desaparecerem, o custo será infindamente maior. De resto, a Europa está em crise também por força de um discurso económico demasiado precipitado.
O avaliador, porém, não parece apreciar a leitura de livros – para o caso, claro está, de sequer conseguir compreender textos jurídicos. Para isso não tem tempo. Prefere por isso ler pequenos textos em referred journals, preferencialmente em inglês – ou nessa linguagem que ele acha ser inglês; e assim mesmo quando o texto se refira, não à common law, mas a um Direito continental ou ao Direito da União Europeia: e porque são journals referred, então os textos são necessariamente bons. Sancta simplicitas! Decerto o problema do avaliador estará em saber pouco de questões jurídicas; em ignorar, por exemplo, o que é a dogmática: a saber, um caminho mais racional e mais seguro de levar o texto da lei a soluções dignas de consenso – e não, como uma certa imagem desfocada, persistente nos Estados Unidos, pretende, forma estranha à vida de lidar com o Direito. (Esta imagem da dogmática tem ela própria uma raiz histórica, que se encontra aliás na Europa no período em torno de 1900. Na Europa, porém, já a superamos, como superamos também o experimentalismo de um Direito casuístico a favor de uma ordem com império da lei).
Talvez, afinal, o avaliador não tenha qualquer problema, talvez ele seja o problema – ele ou o jogo daqueles que, consciente ou inconscientemente, o avaliador se presta a jogar. Muitos incendiários são doidos; outros, porém, são bem capazes de fazer contas: é que, quando em toda a Europa não se encontrar outra coisa que uma deslavada law in context ao estilo de universidades inglesas e norte-americanas de terceira linha, então, naturalmente, qualquer jurista com um mínimo de cabeça há-de orientar-se para as primeiras. Porque estas são realmente boas – mas à sua maneira e para o seu contexto, a common law. Aqui, as universidades não têm de se ocupar com a jurisprudência, nem, em geral, com questões práticas, pelo menos ao nível que uma Universidade da Europa continental compreensivelmente tem de o fazer. Pretendendo o estudante preparar-se para o bar exam, paga de novo, e paga a um outro. Deve ser este o modelo?
Se à Europa continental se tomar a sua dogmática e a sua cultura, a sua história e filosofia, mas também o seu modo próprio de integrar, por exemplo, a economia e a sociologia na reflexão jurídica, então dificilmente haverá uma qualquer universidade continental de primeira água. E assim nasce a hegemonia cultural. Não em competição justa, mas mediante espoliação das debilidades económicas de alguns países – situação em que consabidamente se encontram alguns Estados europeus. Uma hegemonia da mais fraca, da mais economicista (o que materialmente causa grandes reservas) cultura jurídica, mas politicamente mais forte.
Quem quiser que o deseje. Na dúvida, um jurista heidelberguense, como o é o Autor destas linhas, não o quer. E não pode também em seu juízo o governo da República Portuguesa, a quem cabe guardar uma robusta tradição académica, pretendê-lo: isto, claro está, se não quiser trair o próprio país. Por certo que muito em Portugal precisava de reforma, e que Portugal se reformou – com reconhecido sucesso. Mas reforma significa evolução e não destruição das próprias forças. Aqueles que proferiram o juízo acima citado não prestaram, em meu entender, qualquer bom serviço a Portugal: esses e os seus semelhantes podem, e têm mesmo, de ser postos de parte.
Um primeiro passo seria designar apenas avaliadores qualificados para a matéria e exigir-lhes relatórios em língua portuguesa – tão-só para garantir um mínimo de conhecimento do ramo. Embora para este como para qualquer outro passo posterior se deva registar: não há, por força do Direito da União Europeia, qualquer obrigação formal de levar a cabo um qualquer tipo de avaliação; e não há, muito menos, qualquer dever de levar a cabo os actuais processos de avaliação pseudo-internacionais e pseudo-científicos.
Portugal tem de resto boas razões para estar seguro de si. O tempo corre a favor da ciência portuguesa, precisamente por as questões linguísticas serem questões de poder. Além-mar a língua portuguesa é, sobretudo na América Latina, uma língua de peso. Com grande probabilidade o espanhol será a breve trecho a segunda língua de referência do Ocidente e, a partir daí, qualquer um será capaz de ler português, ficando então os tesouros da cultura portuguesa ao dispor de qualquer homem de cultura. E assim sem que Portugal ou Brasil sacrifiquem a sua identidade perante o mundo de habla españa, sem que se postule um anacrónico “iberismo”, sem que se recue de 1640 a 1580.
Possuirá porém a actual elite portuguesa a força de ânimo necessária para conservar a sua cultura – documento de uma tradicional abertura ao mundo e de grande profundidade, mas também de precisão dogmática – por mais uma geração? Para a continuar a desenvolver? É pedir de mais que uma geração se limite muito naturalmente a trabalhar a partir daquilo que já tem ao seu dispor, mesmo quando uns quantos inconscientes, quando não incendiários, não são capazes de o compreender? Nem sempre, é certo, se corrige com facilidade o rumo da política. Mas certo é também que a praxis jurídica portuguesa pode ajudar a fazê-lo, alertando sem reservas para o escândalo a que assiste e, no seu próprio interesse, garantindo que a próxima geração de juristas portugueses venha a gozar de uma sólida formação jurídica.
Christian Baldus ensina Direito Civil e Direito Romano, Direito Europeu e Direito Comparado em Heidelberg, onde foi já Decano – Director – da Faculdade de Direito. É segundo vogal da associação de juristas luso-alemães, coeditor da Zeitschrift für das Privatrecht der Europäischen Union/ European Union Private Law Review / Revue de droit privé de l'Union européenne (GPR), consultado no âmbito de projectos legislativos europeus e foi comissário OCSE na Abilitazione Scientifica Nazionale italiana. Sobre o ensino do Direito editou com Thomas Finkenauer e Thomas Rüffner a obra Bologna und das Rechtsstudium. Fortschritte und Rückschritte der europäischen Juristenausbildung [Bolonha e o ensino do Direito. Avanços e recuos na formação jurídica europeia], Tübingen, Mohr Siebeck, 2011. Do mesmo Autor, veja-se ainda: “El informe del Wissenschaftsrat „Perspectivas de la ciencia jurídica en Alemania“”, Anuario de Derecho Civil (Madrid) 66 (2013), 5-26. O Autor integra a Comissão Externa de Acompanhamento do instituto de investigação a que o relatório citado em texto se refere (Instituto Jurídico, FDUC).
A versão original, publicada em paralelo, encontra-se disponível em: http://bildung-wissen.eu/fachbeitraege/narren-oder-brandstifter.html. A tradução é dada por Tiago Azevedo Ramalho, FDUP.