ANO 2025 N.º 3
ISSN 2182-9845
Rita Faria
Profissões e organizações legítimas como contextos criminógenos
Depois de, na década de 40 do século XX, Sutherland ter inovado com o conceito de crimes de colarinho-branco – crimes cometidos por pessoas de alto estatuto social e respeitabilidade, no decurso da sua profissão –, outros autores vieram propor definições mais fáceis de operacionalizar. São várias essas propostas, mas aqui salientamos duas: occupational crimes (crimes nas profissões), ou seja, ilícitos cometidos por indivíduos no âmbito da sua profissão legítima; e corporate crimes (crimes das empresas), isto é, ilícitos cometidos por funcionários a favor da empresa ou pela própria empresa. Neste último caso, pode-se mesmo substituir o contexto “empresa” por qualquer organização legítima, com ou sem fim lucrativo, e considerar os crimes das organizações (a não confundir com crime organizado). Finalmente, outros autores há que, a adicionar ao contexto legítimo, chamam a atenção para crimes e ilícitos cometidos por quem abusa da confiança que neles foi depositada em função de uma profissão, posição legítima ou papel social reconhecido [para um sumário da evolução dos conceitos, ver D.O. Friedrichs, Trusted criminals. White collar crime in contemporary society, Belmont, Wadsworth, 2010].
Estas definições e o trabalho de autores como Sutherland, Quinney, Clinard, Friedrichs, Shapiro ou outros permitem uma perspetiva crítica sobre as profissões e organizações legítimas como contextos onde o crime e o comportamento ilícito acontecem – por vezes até de modo frequente e recorrente. E apesar de o sistema de justiça continuar a dar prioridade aos crimes convencionais, ou seja, que sucedem fora daqueles contextos profissionais e organizacionais legítimos e que acabam por influenciar mais diretamente o medo do crime e o sentimento de insegurança, a verdade é que a literatura tem alegado que os danos sofridos por crimes cometidos no âmbito das profissões e das organizações ultrapassam amplamente os danos sociais causados por outros delitos (M. Dodge, “A Black Box Warning: The Marginalization of White-Collar Crime Victimization”, Journal of White Collar and Corporate Crime, 1(1), 2020, pp. 24-33).
O que é mais, este tipo de crimes causa danos a uma tal multiplicidade de vítimas que a Criminologia e o Direito devem urgentemente repensar o estatuto de vítima e os seus direitos em tais situações. Pense-se no caso de crimes e danos cometidos por grandes empresas internacionais, como seja o caso Dieselgate – o escândalo das emissões poluentes das viaturas da Volkswagen, descoberto em 2015 – que poderá ter conduzido à morte prematura de milhares de pessoas pelo impacto na poluição do ar (Centre for Research on Enegy and Clear Air, 2025); ou mesmo de start-ups inovadoras, como sucedeu com a Theranos, de Elizabeth Holmes, que causou perdas e danos a investidores e consumidores em tal número que os tribunais, em 2023, condenaram Elizabeth Holmes a cerca de 11 anos de prisão efetiva por fraude (The Guardian, 18 Nov 2022).
Paralelamente, o estatuto e a consideração das características do infrator deve continuar a ser alvo de análise científica, nomeadamente porque muitos dos ofensores por esta criminalidade não partilham – no geral – dos vários fatores de risco identificados para outros tipos de criminosos (consumo abusivo de substâncias, deficientes vínculos sociais, baixo autocontrolo, etc.) ou porque são empresas e organizações, pessoas coletivas face às quais o sistema de justiça criminal ainda se encontra bastante impreparado, preferindo frequentemente, mecanismos de diversão, acordo ou suspensão dos processos (L. Campbell, “Settling with corporations in Europe: a sign of legal convergence?”, in M. Lord, É. Inzelt, W. Huisman & R. Faria (Eds), European White-collar crime. Exploring the nature of European realities, Bristol, Bristol University Press, 2021, pp. 237-251). A literatura tem, inclusive, demonstrado que, em termos gerais, as abordagens preventivas e regulatórias em articulação com a ameaça da sanção penal parecem ser as estratégias mais eficazes para prevenir crimes, de tal modo que não apenas a lei mas também a reação informal de terceiros relevantes (incluindo colegas) e sentimentos de vergonha e embaraço dos gestores de empresas podem ter efeitos significativos na intenção de cometer crimes (S.S. Simpson et al., “An empirical assessment of coporate environmental crime-control strategies”, Journal of Criminal Law and Criminology, 103(1), 2013, pp. 231-278).
Em Portugal – como noutros países – continuam a ser necessárias mais e melhores análises críticas que partam da relevância social, económica e política das empresas, organizações e profissões ponderando-a devidamente com os fatores de risco (individuais, organizacionais e macro-estruturais) que empurram para o cometimento de infrações, num contexto de grandes fragilidades do sistema de justiça criminal e consequente necessidade de regulação responsiva e de envolvimento mais ativo de potenciais futuras vítimas (ex. consumidores, I. Ayres & J. Braithwaite, Responsive Regulation. Transcending the deregulation debat, Oxford, Oxford University Press, 1992). Tal só será possível em diálogos interdisciplinares que juntem o Direito, a Criminologia, a Economia e a Sociologia das Organizações – para nomear algumas áreas mais relevantes. Não o fazer é dar espaço para que estes ilícitos sejam usados como arma de arremesso em discursos populistas e mediáticos que podem trazer grandes perigos para a confiança em instituições mais relevantes.