Inteligência artificial; risco elevado; responsabilidade culposa extracontratual; divulgação de elementos de prova.
O Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia aprovaram uma proposta de Diretiva destinada a adaptar as regras nacionais processuais e de responsabilidade civil no caso de ações de indemnização relacionadas com danos causados por sistemas de inteligência artificial. Nesta Diretiva estabelecem-se regras comuns relativas à divulgação de elementos de prova sobre sistemas de inteligência artificial de risco elevado (cf. artigo 6.º do Regulamento (UE) 2024/1689 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024) e ao ónus da prova em caso de ações de indemnização relativas a responsabilidade culposa extracontratual, intentadas nos tribunais nacionais, por danos causados por um sistema de inteligência artificial. No presente artigo debruçamo-nos sobre o problema do acesso a elementos de prova, matéria regulada no artigo 3.º desta Diretiva. Debruçamo-nos sobre o regime normativo aqui consagrado, debatendo o significado desta norma no contexto de outras normas da EU e de direito interno onde se preveem mecanismos de conservação e de acesso a elementos de prova, e deixando algumas reflexões sobre a eventual transposição desta Diretiva para o ordenamento jurídico português.
1. Introdução
2. Divulgação de elementos de prova e presunção inilidível de incumprimento
2.1. Âmbito do dever de colaboração
2.2. Pressupostos
2.3. Limites ao dever de colaboração
2.4. Consequências da falta de colaboração
3. Confronto com outros diplomas
4. Transposição da Diretiva: conclusões
Bibliografia
1. Introdução
O Parlamento Europeu e o Conselho da União Europeia aprovaram uma proposta de Diretiva destinada a adaptar as regras nacionais processuais e de responsabilidade civil relativas a ações de indemnização relacionadas com danos causados por sistemas de inteligência artificial (doravante, a “Diretiva”
[1]). Nesta Diretiva estabelecem-se regras comuns relativas à divulgação de elementos de prova sobre sistemas de inteligência artificial de risco elevado (cf. artigo 1.º, n.º 1, al.
a), e artigo 3.º), e ao ónus da prova em caso de ações de indemnização relativas a responsabilidade culposa extracontratual (cf. artigo 1.º, n.º 1, al.
b), e artigo 4.º)
[2].
O artigo 6.º do Regulamento (EU) 2024/1689 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de junho de 2024 (Regulamento da Inteligência Artificial) estabelece as regras para a classificação de sistemas de inteligência artificial de risco elevado. O facto de a norma do artigo 3.º da Diretiva, relativa à divulgação de elementos de prova e a uma presunção inilidível de incumprimento, se cingir aos casos de danos relacionados com a utilização deste tipo de sistemas deve ser entendido no contexto da especial proteção conferida pelos artigos 6.º ss. do Regulamento da Inteligência Artificial.
Nos termos do artigo 3.º, n.º 1 da Diretiva, cabe aos Estados-Membros assegurar que os tribunais nacionais estão habilitados a ordenar, a pedido de um potencial demandante
[3] (que tenha previamente solicitado, sem êxito, a um fornecedor, a uma pessoa sujeita às obrigações de um fornecedor nos termos do artigo 24.º ou do artigo 28.º, n.º 1, do Regulamento da Inteligência Artificial, ou a um utilizador), ou a pedido de um demandante, que aquelas pessoas divulguem elementos de prova pertinentes de que disponham sobre um sistema de inteligência artificial de risco elevado específico suspeito de ter causado danos. Por sua vez, o n.º 3 do artigo 3.º prevê a possibilidade de o tribunal ordenar medidas de conservação da prova. É sobre regime do artigo 3.º que nos debruçamos no presente artigo.
2. Divulgação de elementos de prova e presunção inilidível de incumprimento
O regime da divulgação de elementos de prova encontra-se previsto no artigo 3.º da Diretiva. O artigo pode ser dividido em três partes. Os n.ºs 1 a 3 dizem respeito ao âmbito e aos pressupostos do dever de colaboração. O n.º 4 diz respeito aos limites a este dever. E o n.º 5 refere-se às consequências da falta de colaboração. Comecemos pelo primeiro aspeto.
2.1. Âmbito do dever de colaboração
Como vimos, nos termos do artigo 3.º, n.º 1, uma parte pode pedir ao tribunal que ordene a divulgação de elementos de prova de que o requerido disponha sobre um sistema de inteligência artificial de risco elevado
[4]. A norma distingue dois casos: aquele em que a ordem resulta da iniciativa de um “potencial demandante”, e aquele em que essa iniciativa pertence a um “demandante”. Ou seja, o pedido de divulgação (
i.e., o pedido ao tribunal para que ordene à parte contrária a divulgação) pode ser apresentado quer, por aquele que
pondere intentar uma ação de indemnização
[5] quer, pelo autor de uma ação de indemnização em curso. Em ambos os casos, deve tratar-se de elementos de prova pertinentes. A decisão é recorrível (cf. artigo 3.º, n.º 4, quarto parágrafo).
O confronto da norma do artigo 3.º, n.º 1 com a do n.º 3 deste mesmo artigo permite introduzir outro nível de distinção: com efeito, o dever de colaboração abrange não apenas o plano da produção de prova, mas também aquele da conservação da prova. Nos termos do artigo 3.º, n.º 3, os tribunais dos Estados-Membros devem estar habilitados a ordenar, a pedido de um demandante, a tomada de medidas específicas para conservar os elementos de prova referidos no n.º 1. Temos dificuldade em compreender por que razão esta norma se refere apenas ao pedido de um demandante, deixando de fora o potencial demandante. Atendendo à definição do artigo 2.º, alínea 6
[6], esta solução leva ao absurdo de poder o autor de uma ação declarativa requerer ao tribunal que ordene medidas de conservação da prova, mas de não o poder fazer a parte que pondera intentar uma ação. Ora, se pode encontrar-se uma razão para esta ordem poder ser emitida na pendência da ação de indemnização (dado o hiato temporal entre o momento da apresentação do pedido de conservação e aquele em que a prova deve ser apresentada), não se encontra, no entanto, explicação para ela não poder ser emitida antes de existir uma ação. Por um argumento de maioria de razão, a ordem deve poder ser emitida neste caso.
Vejamos agora quais os pressupostos da ordem de colaboração. Aos pressupostos positivos, previstos nos n.ºs 1 a 3, do artigo 3.º - de que trataremos de seguida –, acresce o pressuposto negativo, previsto no n.º 4.
2.2. Pressupostos
São três os pressupostos previstos no artigo 3.º, n.ºs 1 a 3: (i) a pertinência da prova (n.º 1), (ii) a prévia solicitação, sem êxito, ao demandado (n.ºs 1 e 2) e (iii) a fundamentação do pedido (n.º 1, segundo parágrafo).
O primeiro pressuposto não levanta dificuldades: trata-se de um pressuposto geral em matéria de produção de prova (aliás, um pressuposto geral da prática de atos processuais, dado a proibição da prática de atos inúteis). A prova deve ser pertinente, ou seja, destinar-se à prova de factos constitutivos do pedido (o pedido formulado na ação em curso, ou aquele a formular em futura ação de indemnização)
[7] e ser idónea para a prova desses factos.
Já o segundo pressuposto (ainda que “temperado” pelo terceiro) representa uma interessante aproximação ao modelo anglo-saxónico da
disclosure[8]. Este aspeto relaciona-se com a possibilidade, anteriormente referida, de a ordem de colaboração ser emitida por iniciativa do potencial demandante. Vejamos. No sistema norte-americano e no sistema inglês (os dois sistemas daquela família de Direito que conhecemos melhor) existe um “dever de revelação espontânea” dos elementos de prova que a parte tem ao seu dispor – de todos os elementos de prova, sejam eles favoráveis ou desfavoráveis a essa parte –, sendo a violação deste dever severamente sancionada. Os sistemas da
civil law, pelo contrário, não conhecem a existência de um dever como este (
nemo tenetur edere contra se). O modelo de colaboração não dispensa, assim, a instância do tribunal chamado a controlar os requisitos de que a lei faz depender o dever de colaboração: e o caso não é diferente no âmbito da Diretiva (com efeito, prevê-se nela, como vimos, que, a pedido da parte, o tribunal ordena…). No entanto, estabelece o artigo 3.º, n.º 1, segundo parágrafo, e o artigo 3.º, n.º 2 da Diretiva que a parte deve ter tentado sem êxito recolher os elementos de prova junto do demandado. Um tal requisito não encontra paralelo noutros regimes de colaboração probatória consagrados em legislação da União Europeia. No domínio do nosso Código de Processo Civil (CPC), o regime da exibição instrutória não o prevê (cf. artigo 429.º CPC).
Deve começar por se notar que o n.º 2 daquele artigo, relativo ao pedido de divulgação efetuado pelo demandante, parece ser mais exigente do que o n.º 1. Lê-se nele que “
o tribunal nacional só pode ordenar a divulgação dos elementos de prova (…) se o demandante tiver feito todas as tentativas proporcionadas para recolher os elementos de prova pertinentes junto do demandado”, ao passo que o n.º 1 prevê que o tribunal pode emitir uma ordem a pedido do potencial demandante no caso de este ter solicitado previamente ao requerido a divulgação, tendo o pedido sido recusado. Ou seja, ao passo que o n.º 1 (pedido de divulgação feito pelo potencial demandante) refere apenas que o requerente deve ter previamente solicitado a divulgação, o n.º 2 (pedido de divulgação feito pelo demandante) prevê que o requerente tenha feito
todas as tentativas proporcionadas para recolher os elementos de prova. Não existe razão, no entanto, para que o requisito da solicitação prévia (ao fornecedor, à pessoa sujeita às obrigações de fornecedor ou ao utilizador
[9]) seja mais apertado no caso do requerente-demandante
[10], do que no caso do requerente-potencial demandante. Pelo contrário: neste último caso, a atividade jurisdicional circunscreve-se ao pedido de divulgação (o poder jurisdicional é posto em ação apenas com a finalidade de se obter o acesso aos elementos de prova), devendo o interesse do requerente basear-se na impossibilidade de adquirir os elementos de prova por outra (sob pena de excesso de tutela jurídica).
Do nosso ponto de vista, este requisito deve ser visto da seguinte forma: o legislador europeu atua por conta do pressuposto do interesse em agir (no caso de o pedido de divulgação ser feito pelo demandante, o interesse em requerer a divulgação) não extraindo consequências negativas diretas, no plano probatório ou noutro, da recusa da parte em divulgar espontaneamente os elementos de prova a pedido da parte contrária.
Por último, prevê o artigo 3.º, n.º 1, segundo parágrafo que o potencial demandante deve apresentar factos e elementos de prova suficientes para fundamentar a plausibilidade de uma ação de indemnização. Este terceiro requisito encontra-se previsto apenas para o caso do pedido de divulgação efetuado pelo potencial demandante, mas nem por isso ele deixa de se aplicar ao caso do pedido efetuado pelo demandante (atendendo-se aqui à
fundamentação do pedido efetuado, e não à plausibilidade do pedido a efetuar em futura ação de indemnização). Em ambos os casos, está em causa, do nosso ponto de vista, a preocupação de evitar que o requerente se sirva da colaboração probatória, em particular do instituto da exibição instrutória para obter o conhecimento de elementos de fundamentação do pedido, ou de novos elementos (novas causas de pedir) que, até então, lhe eram estranhos (
fishing). Nos sistemas de
civil law, em particular na Alemanha, este aspeto é muito discutido: trata-se do principal argumento para limitar o dever jurídico de exibição de prova, ou seja, para rejeitar um sistema de exibição ao estilo norte-americano.
O modo como o artigo 3.º, n.º 1, segundo parágrafo enuncia este requisito (factos e elementos de prova suficientes para fundamentar a
plausibilidade de uma ação) faz-nos pensar num dos requisitos gerais de decretamento das providências cautelares: o requisito do
fumus boni iuris. Com efeito, a prova a que o artigo se refere deverá ser uma prova perfunctória, tratando-se, tal como no âmbito das providências cautelares, de demonstrar a probabilidade séria da existência do direito (cf. artigos 365.º, n.º 1, e 368.º, n.º 1 CPC). Este caminho é seguindo pela Lei de Arbitragem Voluntária (LAV), no plano da qual a preservação de elementos constitui o conteúdo possível das medidas cautelares decretadas pelo tribunal (artigo 20.º, n.º 2, al.
d) LAV). Mais à frente trataremos do problema de saber que forma processual deve seguir o pedido de divulgação ou de conservação de elementos de prova apresentando antes de ser intentada a ação de indemnização (ou seja, apresentado pelo potencial demandante).
2.3. Limites ao dever de colaboração
A norma do artigo 3.º, n.º 4 estabelece que os tribunais nacionais devem limitar a divulgação de elementos de prova ao que é considerado necessário e proporcionado para fundamentar uma potencial ação (pedido apresentado pelo potencial demandante) ou uma ação de indemnização (pedido apresentado pelo demandante), a mesma regra se aplicando ao domínio da conservação da prova. Trata-se de uma regra que corresponde à aplicação de um princípio de proporcionalidade (princípio geral em matéria de prática de atos judiciais). Não há nada de específico aqui. Deve notar-se que esta regra de proporcionalidade está em linha com a intenção, subjacente à norma do artigo 1.º, segundo parágrafo, de evitar que o requerente se sirva do instituto da exibição instrutória não para obter prova dos fundamentos da ação, mas como mecanismo para obter o conhecimento dos próprios fundamentos da ação
[11]. Surpreendo-nos, aliás, que o artigo 3.º não preveja a obrigação de o requerente proceder a uma identificação concreta dos elementos de prova a exibir, ao contrário do que acontece nos sistemas de colaboração probatória que abaixo referiremos. Cremos que se trata de mero esquecimento. Com efeito, pode retirar-se do sentido global norma do artigo 3.º, em particular da do artigo 3.º, n.º 1, segundo parágrafo e da do artigo 3.º, n.º 4, primeiro parágrafo, precisamente por causa do que acabámos de dizer, a existência de um ónus do requerente de proceder a esta identificação. Na prática, porém, é difícil determinar os contornos de um tal ónus
[12].
O artigo 3.º, n.º 4, segundo parágrafo determina, por sua vez, que, ao determinar se uma ordem de divulgação ou conservação de elementos de prova é proporcionada, os tribunais nacionais têm em conta os interesses legítimos de todas as partes, incluindo os terceiros pertinentes, em especial no que diz respeito à proteção de segredos comerciais na aceção do artigo 2.º, ponto 1, da Diretiva (UE) 2016/943, e de informações confidenciais, tais como as informações relativas à segurança pública ou nacional. A natureza confidencial da informação ou o facto de a mesma envolver segredos comerciais pode constituir, assim, uma causa legítima para não colaborar, ou seja, uma causa de inexigibilidade. Cabe ao tribunal apreciar em concreto a escusa apresentada, devendo, no caso de deferir o requerimento, acautelar a posição do requerido (cf. artigo 3.º, n.º 4, terceiro parágrafo
[13]).
Confrontando a norma do artigo 3.º, n.º 4 da Diretiva com a do artigo 417.º, n.º 3 CPC pode verificar-se que o elenco das causas de recusa legítima em colaborar não coincide totalmente. Isto justifica-se uma vez que a ordem de colaboração não contende em princípio, no caso da Diretiva, com a integridade física ou moral das pessoas (artigo 417.º, n.º 3, al.
a) CPC), dificilmente a intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações (al. b), daquele artigo) podendo erigir-se como limite neste caso, dada a especial necessidade de proteção do requerente. Cremos, assim, que o legislador europeu quis dar ênfase ao segredo de comércio e à natureza confidencial das informações como limites ao dever de exibição. Mas a norma do artigo 3.º, n.º 4 da Diretiva não é fechada, estabelecendo, pelo contrário, que o tribunal pondere todos os interesses envolvidos
[14]. Na ponderação concreta destes limites e na determinação do concreto conteúdo da ordem de exibição ou de conservação da prova aqueles aspetos deverão, pois, ser tidos em conta pelo tribunal, ponderando todos os interesses envolvidos, de acordo com um princípio de proporcionalidade.
2.4. Consequências da falta de colaboração
De acordo com o artigo 3.º, n.º 5, primeiro parágrafo, se o demandado não cumprir uma ordem de um tribunal nacional no âmbito de uma ação de indemnização no sentido de divulgar ou conservar elementos de prova, o tribunal presume que o demandando não cumpriu um “dever de diligência pertinente”, em especial nas circunstâncias referidas no artigo 4.º, n.ºs 2 e 3, falta de diligência esta que os elementos de prova solicitados se destinavam a provar. Note-se que o artigo 4.º estabelece uma presunção ilidível de nexo de causalidade em caso de culpa: o nexo de causalidade entre o facto culposo do demandado e o resultado produzido pelo sistema de IA, ou a incapacidade do sistema de IA de produzir um resultado. Para tal devem estar verificadas as condições previstas nas três alíneas do artigo 4.º, n.º 1: é necessário que a) o demandante tenha demonstrado
ou o tribunal tenha presumido, nos termos do artigo 3.º, n.º 5, a existência de culpa do demandado
[15], b) seja razoavelmente provável que o facto culposo influenciou o resultado e c) o demandante tenha demonstrado que o resultado produzido pelo sistema de IA, ou a incapacidade do sistema de IA de produzir um resultado, deu origem ao dano.
No caso de não cumprimento de uma ordem de divulgação ou de conservação de elementos de prova, o autor (na ação de indemnização em curso, ou na ação de indemnização que venha a intentar) encontra-se assim dispensado de provar a existência de culpa do demandado
[16]. Nos termos do artigo 3.º, n.º 5, segundo parágrafo, o demandado tem o direito de ilidir essa presunção: a presunção de não cumprimento de um dever de diligência do demandado (culpa). Estamos aqui perante uma inversão do ónus da prova relativamente ao pressuposto da culpa do lesante (é esse o significado prático desta presunção). Pelo contrário, se a presunção não for de aplicar, caberá ao autor fazer prova da culpa do demandado, nos termos do artigo 4.º, n.ºs 2 ou 3
[17].
Ou seja: o incumprimento da ordem de exibição ou de conservação da prova faz com que seja de presumir a culpa do demandado em ação de indemnização (cabendo a este o ónus de ilidir esta presunção) e, por sua vez, a existência de culpa (provada ou presumida) constitui um dos três requisitos para que, nos termos do artigo 4.º, n.º 1 possa funcionar uma outra presunção: aquela, quanto ao nexo de causalidade entre o facto culposo do demandado e o resultado produzido pelo sistema de IA, ou a incapacidade do sistema de IA de produzir um resultado. Esta última presunção podendo também ser ilidida pelo demandado.
O legislador europeu optou assim por seguir um caminho formalista no que diz respeito às consequências probatórias do incumprimento da ordem de colaboração. Esta tendência também existe no nosso direito interno (cf. artigo 417.º, n.º 2, parte final CPC: “
sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil”)
[18]. Encontra-se subjacente a este entendimento a ideia de que o comportamento processual da parte (ou mesmo o seu comportamento extra e ante processual) – meio de prova atípico – não constitui senão um princípio de prova (
argomenti di prova, na doutrina italiana), não podendo o tribunal, com base apenas neste meio de prova, formular um juízo probatório autónomo em relação ao facto que o elemento de prova se destinava a provar. Discordamos deste entendimento, considerando que resulta do mesmo uma limitação injustificada ao princípio da livre apreciação da prova. Vamos mais longe: apesar de a redação da norma do artigo 3.º, n.º 5, primeiro parágrafo da Diretiva não o referir, somos do entendimento de que não se encontra vedado ao tribunal a possibilidade de apreciar livremente o valor da conduta, apenas no caso de não ser possível formular um juízo probatório quanto ao respetivo facto
[19], devendo o tribunal aplicar a presunção nele prevista: afinal, a mesma solução que se encontra prevista no artigo 417.º, n.º 2 CPC.
3. Confronto com outros diplomas
Em matéria de legislação europeia, é muito relevante olhar para o regime introduzido pela Diretiva 2014/104/UE de 26 de novembro
[20], e para aquele consagrado pela Diretiva (UE) 2020/1828 do Parlamento e do Conselho, de 25 de novembro
[21]. A primeira, estabelece as regras que regem as ações de indemnização no âmbito do direito nacional e do direito europeu por infrações às disposições do Direito da Concorrência. A segunda, regula a ação coletiva para proteção dos interesses coletivos dos consumidores que visem medidas de reparação e/ou inibitórias.
A Diretiva 2014/104/UE de 26 de novembro dedica um capítulo (o capítulo II) à matéria da divulgação de elementos de prova (artigos 5.º a 8.º)
[22]. De acordo com o artigo 5.º, n.º 1, “
os Estados-Membros asseguram que, nos processos relativos a ações de indemnização na União e a pedido do demandante que apresentou uma justificação fundamentada com factos e elementos de prova razoavelmente disponíveis, suficientes para corroborar a plausibilidade do seu pedido de indemnização, os tribunais nacionais possam ordenar ao demandado ou a um terceiro a divulgação dos elementos de prova relevantes que estejam sob o seu controlo”
[23]. Existe um paralelismo entre esta norma e a norma do artigo 3.º da Diretiva: em ambas está presente a preocupação do legislador de que o pedido de divulgação dos elementos de prova não constitua uma forma de descobrir fundamentos do pedido até então desconhecidos pelo requerente: daí a exigência de que o pedido de indemnização esteja suficientemente fundamentado com factos e elementos de prova razoavelmente disponíveis (note-se o cuidado do legislador da Diretiva 2014/104, ao referir, “
elementos razoavelmente disponíveis”: de facto, destinando-se o requerimento precisamente à aquisição de elementos de prova, não pode o tribunal deixar de tomar em consideração esta circunstância na apreciação daquele requisito).
Acontece que, ao contrário do artigo 3.º da Diretiva, o artigo 5.º, n.º 2 da Diretiva 2014/104 UE de 26 de novembro estabelece que “
os elementos de prova ou as categorias relevantes de elementos de prova devem ser caraterizados de forma tão precisa e estrita quanto possível com base em factos razoavelmente disponíveis indicados na justificação fundamentada”
[24]. A indicação concreta dos elementos de prova constitui o contrapeso da atenuação do ónus (probatório) de fundamentação do pedido. Já tivemos oportunidade de dizer que um tal requisito também existe no âmbito da Diretiva, apesar de a norma do artigo 3.º não o referir de um modo expresso ou taxativo.
Outro aspeto a sublinhar diz respeito aos limites ao dever de exibição. Nos termos do artigo 5.º, n.º 3 da Diretiva 2014/104/UE de 26 de novembro, os Estados-Membros asseguram que os tribunais nacionais limitem a divulgação dos elementos de prova ao que for proporcional. Ao determinar se a divulgação requerida por uma parte é proporcional, os tribunais ponderam os interesses legítimos de todas as partes e dos terceiros interessados
[25]. Note-se o paralelismo entre esta norma e a norma do artigo 3.º, n.º 4, segundo parágrafo da Diretiva. O artigo 5.º, n.º 3 da Diretiva 2014/104/UE de 26 de novembro especifica, no entanto, o que se considera como interesses legítimos para efeitos da aplicação desta norma; pode ler-se: (os tribunais) “
têm, nomeadamente, em consideração: (a) a medida em que o pedido de indemnização ou a defesa são fundamentados em factos e elementos de prova disponíveis que justificam o pedido de divulgação dos elementos de prova; (b) o âmbito e os custos da divulgação, em especial para os terceiros interessados, inclusive para evitar pesquisas não específicas de informação de relevância improvável para as partes no processo; (c) se os elementos de prova cuja divulgação é requerida contêm informações confidenciais, em especial no que respeita a terceiros e quais os procedimentos adotados para proteger tais informações confidenciais”
[26]. O n.º 6 estabelece o princípio de respeito pelo sigilo profissional de advogado
[27]. Vejamos.
A al.
a), do artigo 5.º, n.º 3
da Diretiva 2014/104/UE de 26 de novembro constitui uma concretização do requisito previsto no n.º 1. Um tal requisito também se encontra previsto no âmbito da Diretiva (referimo-nos à Proposta de Diretiva relativa à adaptação das regras de responsabilidade civil extracontratual à IA). Este aspeto pode assim ser tido em conta pelo tribunal, no âmbito desta última diretiva, no momento de aferir a proporcionalidade do pedido.
A al.
c), do artigo 5.º, n.º 3 da Diretiva 2014/104/UE de 26 de novembro diz respeito a uma matéria que não é esquecida pela Diretiva objeto do presente estudo (causa de inexigibilidade). Não se trata, em ambos os casos, de um limite inultrapassável (cf. artigo 5.º, n.º 4 da Diretiva 2014/104/EU).
A al.
b) daquele artigo tem relevo do ponto de vista da densificação do conceito de “interesses legítimos”, podendo ser útil do ponto de vista da aplicação da Diretiva. Com efeito, ao pronunciar-se sobre o requerimento apresentado, deve o tribunal ponderar os custos da divulgação para o requerido (não os custos de um possível decaimento em ação de indemnização – note-se a ressalva do artigo 5.º, n.º 5 da Diretiva 2014/104/UE
[28], mas os custos materiais associados ao procedimento de revelação). Esta necessidade decorre, aliás, da aplicação do princípio da proporcionalidade (este aspeto encontra respaldo no artigo 3.º, n.º 4, primeiro parágrafo da Diretiva).
Por sua vez, o artigo 5.º, n.º 7 da Diretiva 2014/104/UE de 26 de novembro contém uma norma de caráter procedimental: os Estados-Membros asseguram que as pessoas de quem se requer a divulgação tenham oportunidade de ser ouvidas antes de o tribunal ordenar a divulgação. Curiosamente, a Diretiva não contém uma norma como esta. Isto levanta a questão de saber se a omissão é intencional, ou seja, se o legislador europeu pretendeu abrir a possibilidade de a ordem de divulgação ou conservação ser emitida sem audição prévia do requerido (note-se, no âmbito dos procedimentos cautelares, a possibilidade de diferimento do contraditório, nos termos do artigo 366.º, n.º 1 CPC), ou se se tratou de uma omissão não intencional.
Por último, prevê o artigo 8.º, n.º 1 que as partes, os terceiros ou os seus representantes legais ficam sujeitos a sanções quando se verifique: a) o incumprimento de uma ordem de divulgação; (b) a destruição de elementos de prova relevantes; (c) o incumprimento das obrigações impostas pelo tribunal destinadas a proteger informações confidenciais; ou (d) a violação dos limites à utilização dos elementos de prova. A al.
a) refere-se genericamente ao incumprimento de uma ordem judicial de divulgação de elementos de prova, ou à recusa em cumprir essa ordem. Nos termos do n.º 2, do artigo 8.º os Estados-Membros asseguram que as sanções que podem ser impostas pelos tribunais nacionais sejam efetivas, proporcionais e dissuasivas, incluindo: (1) a possibilidade de tirar conclusões desfavoráveis, tais como presumir que os factos controvertidos ficaram provados ou julgar, total ou parcialmente, improcedentes os pedidos e meios de defesa
[29], (2) condenar no pagamento das custas
[30].
Do artigo 8.º, n.º 1, al.
b) da
Diretiva 2014/104/UE de 26 de novembro, acima citado, retira-se, por sua vez, a existência de um genérico dever de conservação da prova, também ele sancionado nos termos do artigo 8.º, n.º 2.
Nada se diz nesta Diretiva sobre a recorribilidade obrigatória da decisão que ordena a divulgação da prova, nada se prevendo a esse respeito no diploma de transposição.
No que diz respeito à Diretiva (EU) 2020/1828 do Parlamento e do Conselho, de 25 de novembro, prevê o artigo 18.º da mesma que, “
caso a entidade qualificada tenha produzido prova razoavelmente disponível suficiente para sustentar uma ação coletiva e tenha indicado que outros meios de prova adicionais se encontram na possa do demandando ou de um terceiro, o tribunal ou a autoridade administrativa, mediante requerimento dessa entidade qualificada, devem ter a possibilidade de ordenar que esses meios de prova sejam apresentados pelo demandado ou pelo terceiros nos termos do direito processual nacional e em observância das normas da União e nacionais em matéria de confidencialidade e proporcionalidade”
[31]. A violação das obrigações referidas neste artigo deve ser sancionada (cf. artigo 19.º, n.º 1, al.
b), parte final), devendo as sanções previstas ser eficazes, proporcionadas e dissuasoras, e podendo revestir, nomeadamente, a forma de sanções pecuniárias (n.º 2, do artigo 19.º).
A norma do artigo 18.º da Diretiva (EU) 2020/1828 do Parlamento e do Conselho, de 25 de novembro está em linha com a do artigo 5.º, n.º 1, da Diretiva 2014/104/UE de 26 de novembro, ao prever como requisito da ordem de colaboração o facto de o requerente ter produzido prova razoavelmente disponível suficiente para sustentar uma ação coletiva
[32]. Trata-se do mesmo princípio segundo o qual deve estar vedado à parte realizar uma atividade exploratória, destinada a encontrar elementos de fundamentação da sua pretensão. Como vimos, o artigo 3.º, n.º 1 da Diretiva segue o mesmo caminho.
O artigo 13.º, n.ºs 2 a 4 do diploma de transposição da Diretiva (EU) 2020/1828 do Parlamento e do Conselho, de 25 de novembro (Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro) vai de encontro às regras e princípios gerais aplicáveis em matéria de exibição instrutória. Notamos com estranheza, no entanto, o facto de o artigo 13.º, n.º 4 se referir à possibilidade de o requerido ser condenado em multa
[33], deixando de fora a possibilidade de o tribunal tirar consequências probatórias do comportamento da parte. Dada a aplicação subsidiária do CPC, por força da remissão operada pela Lei de Participação Procedimental e de Ação Popular
[34], entendemos que essa possibilidade se encontra ao dispor do juiz, nos termos da norma do artigo 417.º, n.º 2 CPC.
Também nada se estipula quanto à recorribilidade obrigatória da decisão de divulgação, nada se estipulando também a esse respeito no diploma de transposição.
4. Transposição da Diretiva: conclusões
Nos termos do artigo 7.º da Diretiva, os Estados-Membros devem proceder à transposição da Diretiva no prazo de dois anos (a contar da data em que a Diretiva venha a entrar em vigor).
Este momento constitui uma oportunidade para o legislador português regular de modo uniforme a matéria da colaboração probatória e da conservação da prova.
Com efeito, pode notar-se que o artigo 417.º CPC se centra no momento da produção da prova: mas o dever de colaboração tem um âmbito mais vasto (isso pode retirar-se, aliás, da norma do artigo 431.º, n.º 2 CPC). Vemo-lo de modo muito claro no artigo 8.º, n.º 1, ponto b)
Diretiva 2014/104/UE de 26 de novembro. Por sua vez, a LAV segue um caminho diferente: tratando do problema da conservação dos meios de prova no plano da tutela de natureza cautelar (cf. 20.º, n.º 2, al.
d) da LAV
[35]). Por outro lado, e apesar de o CPC não se referir a esta possibilidade
[36], não vemos qualquer razão para que, tendo sido emitida uma ordem preliminar destinada à conservação da prova, deva estar vedado ao tribunal tirar consequências probatórias da conduta do requerido, no caso de, por culpa sua, os elementos de prova serem destruídos. A Diretiva 2014/104/EU, de 26 de novembro revela que o legislador europeu pensa da mesma forma (cf. artigo 8.º, n.º 1, al.
b) e n.º 2). Note-se que o artigo 8.º, n.º 1, al.
b) não estabelece qualquer requisito de culpa. Estamos de acordo com isto: efetivamente, sendo emitida uma ordem destinada à conservação da prova, e sendo destruídos ou desaparecendo elementos de prova relevantes, deve recair sobre o requerido o ónus de demonstrar que essa destruição não se deveu a culpa sua, se o mesmo quiser evitar que o tribunal tire consequências negativas do seu comportamento
[37].
Falta um regime comum de conservação de elementos de prova. Note-se que, com este regime, não deve ser confundido o da produção de prova
in futurum ou produção antecipada de prova, apesar de com ele ter muitas afinidades (cf. artigos 419.º e 420.º CPC). Nos termos do artigo 419.º CPC, “
havendo justo receio de vir a tornar-se impossível ou muito difícil o depoimento de certas pessoas a verificação de certos factos por meio de perícia ou inspeção, pode o depoimento, a perícia ou a inspeção realizar-se antecipadamente e até antes de ser proposta a ação”. O artigo está pensado, portanto, para o caso de produção antecipada de meios de prova constituendos, deixando de fora a prova pré-constituída, em particular, a possibilidade de se produzir antecipadamente prova documental. O regime da exibição instrutória (artigos 429.º ss. CPC) também não se encontra pensado para isto: ele foca-se no momento da produção da prova, embora resulte do artigo 431.º, n.º 2 CPC a existência de um dever de conservação da prova.
Releva, para este efeito, olhar para a Lei n.º 23/2018, de 05 de junho (diploma que transpôs para a ordem jurídica portuguesa a Diretiva 2014/104/UE de 26 de novembro). Apesar de esta Diretiva não se referir à possibilidade de os tribunais nacionais emitirem ordens de conservação da prova, o legislador português, através daquela Lei, regulou extensamente o regime de acesso a meios de prova antes de ser proposta a ação de indemnização, bem como a possibilidade de o tribunal emitir ordens de colaboração. Importa atender às normas dos artigos 13.º, 17.º e 18.º da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho.
O artigo 13.º diz respeito à aquisição de elementos de prova antes de intentada uma ação, e o artigo 17.º refere-se à preservação de meios de prova em caso de urgência. Ao ler estas normas verificamos, no entanto, que elas se socorrem inteiramente de mecanismos previstos no CPC. Deixando a descoberto a insuficiência destes mecanismos. Vejamos.
Para a aquisição de elementos de prova antes de um processo, o artigo 13.º chama à colação o processo especial dos artigos 1045.º ss. CPC
[38]. Nos termos do artigo 1045.º, aquele que, nos termos e para os efeitos dos artigos 574.º e 575.º CC
[39], pretenda a apresentação de coisas ou documentos que o possuidor ou detentor não lhe queira facultar justifica a necessidade da diligência e requer a citação do recusante para os apresentar no dia, hora e local que o juiz designar
[40]. Nos termos do artigo 574.º, n.º 1 CC, “
ao que invoca um direito, pessoal ou real, ainda que condicional ou a prazo, relativo a certa coisa, móvel ou imóvel, é lícito exigir do possuidor ou detentor a apresentação da coisa, desde que o exame seja necessário para apurar a existência ou o conteúdo do direito e o demandando não tenha motivos para fundadamente se opor à diligência”. Por sua vez, o artigo 575.º CC estabelece que as disposições do artigo 574.º são extensivas, com as necessárias adaptações, aos documentos, desde que o requerente tenha um interesse jurídico atendível no exame deles
[41].
A obrigação prevista no artigo 574.º CC tem um fundamento material (note-se que a origem histórica deste instituto se encontra na chamada
actio ad exhibendum). O artigo é bastante claro: a apresentação das coisas pode ser pedida por aquele que invoca um direito, pessoal ou real, relativo a essa coisa
[42]. Ora, o artigo 13.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho determina como vimos que a apresentação de meios de prova (leia-se: de elementos de prova), nos termos previstos nos artigos 1045.º a 1047.º CPC, tem lugar nos termos e para os efeitos dos artigos 573.º a 576.º CC. Desta remissão, resulta a limitação referida: o requerente deve ter um direito sobre a coisa cuja apresentação requer, o que retira ao instituto muita da sua importância prática.
O artigo 575.º CC, relativo à apresentação de documentos
[43], prevê – é certo – que o requerente deve ter um
interesse jurídico atendível no exame deles. Esta redação mais ampla pode ser lida num sentido que aproxima o regime material de apresentação de documentos do regime da exibição instrutória (note-se que o regime da exibição instrutória evoluiu no sentido da sua processualização
[44]). Será assim se entendermos que o interesse jurídico atendível pode consistir no uso do documento como elemento de prova numa ação que o requerente pondera intentar (ou mesmo numa ação já intentada): uma ação – clarifique-se – que não tem por objeto o exercício de um direito sobre o documento. Deve, no entanto, atentar-se no seguinte:
Em primeiro lugar, o recurso a um processo especial para apresentação de documentos (nos termos dos artigos 1045.º ss. CPC) só tem razão de ser no caso de a ação, na qual é alegado o facto que o documento se destina a provar, ainda não ter sido intentada
[45]. Com efeito, se o requerente pretende usar o documento numa ação em curso, o mesmo pode recorrer ao mecanismo da exibição instrutória (artigos 429.º ss. CPC). Não teria qualquer sentido, neste caso, que o requerente intentasse uma ação especial, nos termos dos artigos 1405.º ss. CPC, para obter a apresentação do documento. Resta assim a possibilidade de recurso a uma ação especial para obtenção de uma prova a usar numa futura ação. Vejamos.
Em abstrato, o recurso a este processo especial, nos casos em que o interesse atendível na apresentação do documento diga respeito ao uso do mesmo como elemento de prova numa outra ação
[46] (repita-se, uma ação futura – veja-se a epígrafe do artigo 13.º da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho
[47]) pode servir uma de duas finalidades: (i) permitir ao requerente determinar se existe fundamento para intentar essa ação, ou seja, se a mesma é viável; (ii) assegurar a preservação da prova. Acontece que:
No que diz respeito à primeira finalidade, ela é manifestamente contrária ao regime de exibição que vigora nos sistemas jurídicos da
civil law. Com efeito, o regime jurídico encontra-se modelado em termos tais que o requerente não possa servir-se dele para, precisamente descobrir pela primeira vez os fundamentos da ação (daí a necessidade de o requerente proceder a uma identificação concreta do elemento de prova
ad exhibendum). Não vigora entre nós um sistema de arquivos abertos, ao estilo norte-americano
[48].
A norma do artigo 13.º Lei n.º 23/2018, de 5 de junho pode ser vista como uma aproximação a este regime. Mas uma interpretação como esta é manifestamente contrária ao espírito da lei (é inequívoco, a este propósito, o artigo 12.º, n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 23/2018 de 5 de junho). Com efeito, não teria qualquer sentido que recaísse sobre o requerente, nos casos em que o requerimento é apresentado no decurso da ação
[49], um ónus de fundamentação e de identificação dos elementos de prova (
de forma tão precisa e estreita quanto possível), mas um tal ónus não existisse quando, para aceder a esses elementos, o requerente se servisse, não de um incidente probatório, mas de uma ação declarativa autónoma. Reafirme-se: o regime da exibição instrutória encontra-se ao serviço da salvaguarda do direito à prova (princípio da tutela jurisdicional efetiva), não podendo constituir um modo de o requerente descobrir novos fundamentos da sua pretensão
[50]. Pelo menos, é assim no nosso sistema atual. O legislador europeu não se desvia desta linha. Por conseguinte, não vemos nenhuma razão, deste ponto de vista, que justifique o recurso a uma ação declarativa especial para a obtenção de prova, quando existe um incidente probatório que permite a obtenção dessa prova diretamente na ação
[51]. Por esta via, não vemos que interesse prático possa ter a norma do artigo 13.º da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho. Se o objetivo do legislador é o de aproximar o nosso regime do regime de arquivos abertos conhecido dos sistemas de matriz anglo-saxónica, isso deve ser feito através de uma mudança do CPC (em particular, através de uma alteração ao artigo 429.º, n.º 1 CPC). Note-se, porém: mesmo aí, a exibição à parte contrária de todos os elementos de prova relevantes que a parte tem à sua disposição, é feita na ação a que a prova se dirige. Com efeito, uma mudança no regime da exibição, de modo a abrir o nosso sistema a um regime de arquivos abertos, pressuporia antes do mais uma mudança no regime do artigo 552.º, n.º 1, al.
d), CPC (teoria da substanciação). A matéria não pode ser tratada atomisticamente. Um tal regime insere-se no contexto de um sistema baseado na teoria da individualização, diferente daquele adotado pelo CPC.
Isto deixa-nos com o segundo aspeto. A apresentação de documentos antes da ação, através de uma ação especial destinada a essa apresentação, pode servir o propósito de acautelar o perigo de desaparecimento ou destruição dos elementos de prova. Trata-se pois, não de aceder ao documento com a finalidade de conhecer o seu conteúdo e aquilatar a viabilidade de uma ação (propósito que não se compagina com um sistema baseado na teoria da substanciação), mas de salvaguardar a prova ante o risco de a mesma desaparecer
[52]. Ou seja, trata-se de aceder aos elementos de prova com uma finalidade cautelar. Acontece que o nosso sistema – foi o que começámos por dizer – não prevê um regime geral de utilização da figura das providências cautelares com uma finalidade probatória
[53]. Como referimos acima, o CPC consagra um regime de produção de prova
in futurum e nele se prevê a possibilidade de essa produção ter lugar antes mesmo de ser intentada a ação (cf. artigo 419.º CPC). Mas trata-se de um regime que se aplica apenas a alguns meios de prova: testemunho, perícia e inspeção. Para ela, e para o regime processual do artigo 420.º, remete genericamente o artigo 17.º, n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho
[54]. Põe-se assim a questão de saber se o artigo 17.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho consagra um regime geral, desconhecido do CPC. Prevê-se nesta norma que: “
sempre que haja indícios sérios de infração ao direito da concorrência suscetíveis de causar danos, pode o alegado lesado requerer ao tribunal medidas provisórias urgentes e eficazes que se destinem a preservar meios de prova da alegada infração, com as limitações estabelecidas no presente capítulo”. “
Em qualquer caso, deve notar-se que o regime do artigo 419.º e 420.º CPC, para os quais os n.ºs 2 e 3 daquele artigo 17.º remetem, não satisfaz a necessidade de tutela provisória e urgente referida no n.º 1. O artigo 419.º CPC permite que a prova seja produzida antes mesmo de ser intentada a ação (correspondendo assim ao horizonte das providências cautelares preliminares ou preparatórias). Apesar da afinidade com o regime das providências cautelares
[55], há, no entanto, vários aspetos do regime das providências cautelares que não se encontram previstos: pense-se, por exemplo, na possibilidade de diferimento do contraditório, nos casos em que a audiência prévia do requerido ponha em risco sério o fim ou a eficácia da providência (artigo 366.º, n.º 1 CPC). Por outro lado, o regime da produção antecipada de prova não abrange o plano da prova documental, não permitindo, pois, uma exibição instrutória antecipada com finalidade cautelar.
A regra enunciada no artigo 17.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2018, de 5 de junho
[56] só pode assim aplicar-se através do mecanismo da providência cautelar comum. Simplesmente, na falta de uma indicação expressa do legislador, como acontece na LAV, de que as providências cautelares podem ter um escopo probatório, fica a dúvida quanto à existência desta possibilidade. A remissão feita pelo n.º 2 do artigo 17.º para o artigo 419.º CPC adensa esta dúvida, pelas razões referidas. E a própria existência do regime do artigo 419.º CPC pode ser vista como um sinal do legislador no sentido de que as providências cautelares não podem ser utilizadas, em termos gerais, com uma finalidade de conservação de elementos de prova. Com efeito, se o legislador prevê um regime de produção de prova
in futurum, deixando de fora a prova documental, isso pode significar que ele não admite a produção antecipada deste meio de prova
[57].
Pode argumentar-se o seguinte: um regime como o previsto no artigo 17.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho não é necessário, na medida em a lei prevê a existência de um dever de conservação da prova e sanciona a sua violação. Com efeito – prevê o artigo 431.º, n.º 2 CPC –, incumbe ao notificado que haja possuído o documento e que pretenda eximir-se ao efeito previsto no artigo 344.º, n.º 2 CC, demonstrar que, sem culpa sua, ele desapareceu ou foi destruído
[58].
[59] Acontece que, o princípio da verdade e a necessidade de tutela da posição jurídica do requerente impõem que existam mecanismos viáveis de conservação da prova. A solução do artigo 431.º, n.º 2 CPC não é a mais idónea do ponto de vista epistémico, e a aplicação da mesma pressupõe que o requerido tenha possuído o documento (embora haja casos em que a utilização de uma regra de experiência comum permite ao tribunal concluir isto, incumbe ao requerente o ónus da prova deste facto). O princípio da tutela jurisdicional efetiva determina que existam mecanismos que permitam ao requerente obter cautelarmente a prova
[60], não existindo nenhum interesse do requerido que, em termos gerais, se sobreponha a este
[61].
Somos assim da opinião de que a matéria da produção antecipada de prova e da conservação da prova deveriam ser objeto de um regime comum: prevendo-se a possibilidade, em geral, de produção antecipada de prova, sempre que o risco de ocultação da prova a isso aconselhe, com a possibilidade de decretamento da medida conservatória sem audição prévia do requerido. Bastaria, para tanto, que o legislador clarificasse que as providências cautelares podem ser usadas com uma finalidade probatória (tal como fez no âmbito da LAV)
[62]. Esta clarificação é necessária (no mínimo, ela seria útil)
[63]. Em primeiro lugar, o artigo 20.º, n.º 2, al.
d) da LAV pode ser usado como argumento contrário à existência desta possibilidade
[64]. Em segundo lugar, a redação do artigo 362.º, n.º 1 CPC (“
sempre que alguém mostra fundado receio de que outrem causa lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado”) não é de molde a poder concluir-se com segurança que aquela possibilidade existe. O risco de lesão do direito deveria consistir neste caso no risco de a parte não ser capaz de fazer prova do seu direito, ou de estar impossibilitado de fazer essa prova (não obstante o disposto no artigo 344.º, n.º 2 CC). Este risco situa-se, pois, no plano da tutela jurisdicional do direito. Ou seja, não é o objeto do direito, a eficácia da medida destinada à execução coerciva do direito, ou a impossibilidade prática de realização do mesmo (em virtude da existência de uma situação de facto consumada) que está em causa. O que está em causa é a possibilidade de obter uma tutela jurídica para a situação carecida dela
[65]. Ora, isto é muito controverso, na medida em que um dos requisitos para o decretamento de uma medida cautelar consiste na prova sumária do direito (artigo 365.º, n.º 1 CPC)
[66].
Na decorrência do que acabámos de dizer, gostaríamos de notar que o momento da transposição da Diretiva pode servir, não apenas para o legislador clarificar que o dever de colaboração intersubjetiva em matéria probatória abrange, em geral, o plano da conservação da prova
[67], mas também para determinar que consequências resultam da violação deste dever.
O comportamento da parte que concretamente, viola o dever de conservação de documentos é sancionado pelo artigo 431.º, n.º 2 CPC. Prevê-se neste artigo como vimos que, se o documento desapareceu ou foi destruído por culpa do requerido, ele fica sujeito ao efeito do artigo 344.º, n.º 2 CC (inversão do ónus da prova). Cabe ao requerido, que haja possuído o documento, o ónus de afastar esta presunção de culpa. Repare-se que o artigo remete diretamente para o artigo 344.º, n.º 2 CC, e não para o artigo 417.º, n.º 2 CPC (o qual, por sua vez, remete por sua vez para o artigo 344.º, n.º 2 CC). Note-se, por outro lado, que não é esta a única consequência prevista no artigo 417.º, n.º 2 CPC no que diz respeito às consequências probatórias do comportamento da parte: a norma refere-se também à possibilidade de o tribunal apreciar o valor da conduta (princípio da livre apreciação da prova).
Com efeito, entendemos que a remissão direta para o artigo 344.º, n.º 2 CC, pelo artigo 431.º, n.º 2 CPC se insere no contexto de um entendimento doutrinal e jurisprudencial de acordo com o qual a inversão do ónus da prova se apresenta como a consequência mais gravosa em matéria de consequências probatórias do comportamento do recusante (no caso da violação de um dever de conservação da prova, um comportamento extra e ante processual). Por outro lado, ao não remeter para o artigo 417.º, n.º 2 CPC, pode entender-se que o artigo 431.º, n.º 2 CPC desvia a matéria da destruição culposa da prova da esfera das violações ao dever de colaboração probatória
[68].
No que diz respeito, por sua vez, às consequências da violação do dever de cooperação, quando essa violação seja cometida pelas partes, o artigo 417.º, n.º 2 CPC não nos parece dever ser reformulado. Ele refere-se a todas as consequências possíveis (com exceção daquela que consiste em dar como provado o facto como consequência automática da violação ou como procedente a ação ou a exceção – solução com a qual não concordamos). O único aspeto que poderia ser clarificado, e objeto de tratamento comum, diz respeito à possibilidade de execução indireta da ordem de colaboração – concretamente, à possibilidade de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória e ao regime a que a mesma se encontra sujeita. Também aqui a transposição da Diretiva poderia ser um momento clarificador.
Da mesma forma, a matéria dos limites ao dever de colaboração encontra regulação adequada no artigo 417.º, n.º 3 CPC.
Existe um último ponto que gostaríamos de referir, e que diz respeito à norma do artigo 3.º, n.º 4, quarto parágrafo da Diretiva. Nos termos desta norma, cabe aos Estados-Membros assegurar que a pessoa à qual seja ordenada a divulgação ou conservação de elementos de prova dispõe de vias de recurso processuais adequadas relativamente a tais decisões. Trata-se de uma norma que não encontra paralelo nos diplomas que analisámos. Ela visa assegurar um segundo grau de jurisdição. Do ponto de vista do CPC, a matéria não se encontra regulada no artigo 417.º. Devem assim aplicar-se as regras gerais acerca da admissibilidade do recurso, previstas no artigo 629.º, n.º 1 CPC, assim como no artigo 644.º, n.º 2, al.
d) CPC (caso se entenda não ser de aplicar esta última norma – cf. artigo 644.º, n.ºs 3 e 4 CPC).
A garantia de um segundo grau de jurisdição em matéria probatória e de colaboração encontra lugares-comuns no sistema do CPC. Nos termos do artigo 542.º, n.º 3 CPC, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admitido recurso, em um grau, da decisão que condene por litigância de má-fé (note-se que, a omissão grave do dever de cooperação com dolo ou negligência grave figura entre as hipóteses de litigância de má-fé – cf. artigo 542.º, n.º 2, al.
c) CPC). Por sua vez, a norma do artigo 630.º, n.º 2 CPC, de acordo com a qual não é admissível recurso das decisões de simplificação ou de agilização processual, exceciona as decisões que contendam com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou (sendo este o aspeto que agora pretendemos assinalar) com a admissibilidade de meios probatórios. Por último, prevê o artigo 629.º, n.º 3 CPC que, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível para a Relação das decisões de indeferimento liminar da petição da ação ou do requerimento inicial de procedimento cautelar (referimos esta norma dada a afinidade existente entre as medidas de conservação da prova e as providências cautelares). Note-se que, quer a norma do artigo 542.º, n.º 3 CPC, quer a norma do artigo 629.º, n.º 3 CPC garantem apenas um grau de jurisdição
[69].
Um aspeto que pode levantar dúvidas, na falta de regulação expressa, é aquele que diz respeito ao efeito do recurso (referimo-nos ao recurso de apelação). Nos termos do artigo 647.º, n.º 4 CPC, o recorrente pode requerer, ao interpor o recurso, que a apelação tenha efeito suspensivo, quando a execução da decisão lhe cause prejuízo considerável e se ofereça para prestar caução, ficando a atribuição desse efeito condicionada à efetiva prestação da caução no prazo fixado pelo tribunal. A regra, prevista no n.º 1 deste artigo, é a de que o recurso tem efeito meramente devolutivo. No caso de uma ordem de colaboração, a emissão da mesma pressupõe que o tribunal pondere os interesses envolvidos, considerando não apenas a necessidade da diligência, mas também a onerosidade da mesma para o requerido. O princípio da proporcionalidade a isso obriga, devendo estar também presente no momento da determinação do concreto conteúdo da medida. Por outro lado, o legislador indica, no artigo 417.º, n.º 3 CPC, os casos em que considera não ser exigível ao requerido colaborar com a contraparte (ou seja, os casos de recusa legítima em colaborar). Do nosso ponto de vista, isto não deixa margem para que o recorrente possa alegar que a execução da decisão lhe causa um prejuízo considerável, com vista a obter a suspensão dos efeitos da decisão, mediante a prestação de caução.
Bibliografia
Lang, Sonja,
Die Urkundenvorlagepflichten der Gegenpartei gemäß § 142 Abs. 1 Satz 1 ZPO, Europäische Hochschulschriften Rechtswissenschaft 4571, Frankfurt am Main, Peter Lang, 2007
Monteiro, Jorge Ferreira Sinde,
Responsabilidade por conselhos recomendações ou informações, colecção teses, Coimbra, Almedina, 1989
Serra, Adriano Vaz, “Exibição de coisas ou documentos”,
BMJ, N.º 77 – Junho – 1958, pp. 227-249
Silva Pereira, Fernando,
A responsabilidade probatória das partes no atual modelo processual, Coimbra, Almedina, 2019
Silva Pereira, Fernando, “O regime da exibição instrutória – um sistema baseado no princípio “
nemo tenetur edere contra se…” moderado, na proibição de “prova-exploratória”, e nas regras do ónus da prova”,
Julgar online, outubro de 2021, pp. 1-27
Sousa, Miguel Teixeira de,
As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, Lisboa, Lex, 1995
(texto submetido a 24.03.2025 e aceite para publicação a 14.05.2025)
[1] Os artigos indicados sem referência ao diploma dizem respeito à Diretiva.
[2] Nos termos do artigo 1.º, n.º 2, a Diretiva é aplicável a ações de indemnização de direito civil relativas a responsabilidade culposa extracontratual, nos casos em que os danos causados por um sistema de IA ocorram após [o termo do prazo de transposição]. No segundo parágrafo, do n.º 2, do artigo 1.º estabelece-se que a Diretiva não é aplicável à responsabilidade penal. Esta norma é tautológica, dada a redação do n.º 1: “ações de indemnização de direito civil”. Esta tautologia faz-nos pensar se o sentido da norma é o de afastar a aplicação da mesma aos casos em que o pedido de indemnização é apresentado no âmbito de um processo penal. Entendemos, no entanto, que a norma não deve ser interpretada nesse sentido, uma vez que ele é contrário à intenção de proteção da parte lesada por sistemas de inteligência artificial. Pelo menos, é-o do ponto de vista de um sistema como o nosso, baseado num princípio de adesão (cf. artigo 71.º do Código de Processo Penal).
Deve notar-se, entretanto, que, nos termos do artigo 1.º, n.º 3, a Diretiva não afeta: (i) as regras do direito da União que regulam as condições de responsabilidade no domínio dos transportes; (ii) quaisquer direitos que uma pessoa lesada possa ter ao abrigo das regras nacionais de execução da Diretiva 85/374/CEE; (iii) as isenções de responsabilidade e as obrigações de diligência devida previstas no Regulamento Serviços Digitais e, (iv) as regras nacionais que determinam sobre que parte recai o ónus da prova, o grau de certeza necessário no que respeita ao nível de prova ou a definição de “culpa”, salvo no que diga respeito às disposições do artigo 3.º e 4.º.
[3] Nos termos do artigo 2.º, n.º 7, a expressão “potencial demandante” significa: “
uma pessoa singular ou coletiva que pondere intentar uma ação de indemnização, mas ainda não a tenha intentado”.
[4] Naturalmente, a parte final da norma (
(…) ou a pedido de um demandante, a divulgação desses elementos de prova às referidas pessoas”) não deve ser lida no sentido de que a divulgação dos elementos de prova é feita às pessoas aí referidas (note-se que uma tal interpretação seria absurda: a parte não pode divulgar elementos de prova a si mesma), mas no sentido de que o tribunal ordena a divulgação desses elementos às pessoas referidas.
[5] O artigo 2.º, alínea 5 fornece a definição de “ação de indemnização”.
[6] Demandante é: “
uma pessoa que intenta uma ação de indemnização (…)”.
[7] Diretamente (prova dos factos essenciais), ou indiretamente: prova de factos instrumentais ou prova do valor probatório de outras provas.
[8] Pode ver-se, Fernando Silva Pereira,
A responsabilidade probatória das partes no atual modelo processual, Almedina, 2019, pp. 201 ss.
[9] As noções de “fornecedor” e de “utilizador” estão previstas no artigo 2.º, alíneas 3 e 4.
[10] Veja-se a definição do artigo 2.º, alínea 6.
[11] O requisito previsto no n.º 1, segundo parágrafo (o potencial demandante deve apresentar factos e elementos de prova suficientes para fundamentar a plausibilidade da ação) é novamente convocado também por uma outra razão: note-se que a apresentação de provas para fundamentar a plausibilidade da ação pode não ser possível, precisamente porque essas provas se encontram em poder da parte contrária e o requerente não tem forma de aceder a elas sem a colaboração de vontade do requerido, ou a execução judicial da ordem de colaboração. Sendo assim, o tribunal deve tomar em conta a afirmação, pelo requerente da divulgação, de que os elementos de prova em causa são idóneos para a prova do facto.
[12] Pode ver-se: Fernando Silva Pereira, “O regime da exibição instrutória – um sistema baseado no princípio “
nemo tenetur edere contra se…” moderado, na proibição de “prova-exploratória”, e nas regras do ónus da prova”,
Julgar online, outubro de 2021, pp. 1-27.
[13] Cabe aos Estados-Membros (pode ler-se no artigo 3.º, n.º 4, terceiro parágrafo) assegurar que, sempre que seja ordenada a divulgação de um segredo comercial ou de um alegado segredo comercial que o tribunal tenha considerado confidencial na aceção do artigo 9.º, n.º 1, da Diretiva (UE) 2016/943, os tribunais nacionais estão habilitados a tomas as medidas específicas necessárias, mediante pedido devidamente fundamentado de uma das partes ou por sua própria iniciativa, para preservar a confidencialidade sempre que esses elementos de prova sejam utilizados ou referidos em processos judiciais.
[14] Note-se que, ao contrário da norma do artigo 417.º, n.º 3, CPC, o artigo 3.º, n.º 4, segundo parágrafo refere que o tribunal deve ter em conta os interesses envolvidos, incluindo nesta ponderação os interesses de terceiros.
[15] Ou de uma pessoa por cujo comportamento o demandado é responsável. A culpa consiste no incumprimento de um dever de diligência previsto no direito da União ou no direito nacional diretamente destinado a proteger contra o dano ocorrido.
[16] Requisito previsto, como vimos, no artigo 4.º, n.º 1, al.
a), do qual depende, a par dos dois outros requisitos previstos nesta norma, a possibilidade de aplicar a presunção relativa ao nexo de causalidade entre o facto culposo e o resultado produzido pelo sistema de IA ou a incapacidade do sistema de IA de produzir um resultado.
[17] O artigo 4.º, n.º 2 diz respeito aos casos em que a ação de indemnização é intentada contra um fornecedor de um sistema de IA de risco elevado sujeito aos requisitos estabelecidos no título III, capítulos 2 e 3 do Regulamento Inteligência Artificial ou uma pessoa sujeita às obrigações do fornecedor nos termos do artigo 24.º ou do artigo 28.º, n.º 1, deste Regulamento, e o artigo 4.º, n.º 3 diz respeito aos casos em que a ação de indemnização é intentada contra um utilizador de um sistema de IA de risco elevado sujeito aos requisitos estabelecidos no título III, capítulos 2 e 3, daquele Regulamento.
[18] A interpretação doutrinal e jurisprudencial dominante do sentido desta norma vai de encontro à ideia de que a inversão do ónus da prova se apresenta como a consequência mais grave (mais grave, entenda-se, face à possibilidade de o tribunal apreciar o valor do comportamento processual da parte, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova).
[19] Dando o facto como provado ou como provado o contrário do facto (com base neste meio de prova atípico, ou através da ponderação do conjunto de provas existentes no processo).
[20] Esta Diretiva foi transposta para a ordem jurídica pela Lei n.º 23/2018, de 05 de junho (Direito a indemnização por infração ao direito da concorrência).
[21] Esta Diretiva foi transposta para a ordem jurídica pelo Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro.
[22] Não atenderemos aos artigos 6.º e 7.º, uma vez que eles são específicos da matéria da propriedade intelectual. Referem-se os mesmos, respetivamente, à divulgação de elementos de prova incluídos no processo de uma autoridade da concorrência, e aos limites à utilização de elementos de prova obtidos exclusivamente através do acesso ao processo de uma autoridade da concorrência.
[23] O artigo acrescenta que o dever de colaboração existe também em sentido inverso: “Os Estados-Membros asseguram que os tribunais nacionais possam, a pedido do demandado, ordenar ao demandante ou a terceiros a divulgação de elementos de prova relevantes. Apesar de a Diretiva não o dizer, o dever de colaboração vincula também o demandante. Isso resulta da aplicação dos princípios gerais do CPC. Acontece que a Diretiva está pensada para proteger a parte que sofre danos resultantes da aplicação de sistema de AI.
[24] Parece-nos que o legislador parte aqui de uma interpretação ampla do requisito da concreta identificação do documento, parecendo aceitar que sejam requeridos grupos de documentos, sem identificação de um documento concreto. Contra, pode ver-se: Sonja Lang,
Die Urkundenvorlagepflichten der Gegenpartei gemäß § 142 Abs. 1 Satz 1 ZPO, Europäische Hochschulschriften Rechtswissenschaft 4571, Frankfurt am Main: Peter Lang, 2007, pp. 100 e ss.
[25] De notar que, nos termos do artigo 5.º, n.º 8, a norma do artigo 5.º não impede os Estados—Membros de manter ou introduzir regras que conduzam a uma divulgação mais alargada de elementos de prova.
[26] Nos termos do n.º 4, os Estados-Membros asseguram que os tribunais nacionais tenham competência para ordenar a divulgação dos elementos de prova que contêm informações confidenciais quando a considerarem relevante para a ação de indemnização- Os Estados-Membros asseguram que os tribunais nacionais disponham de medidas eficazes para proteger tais informações quando ordenam a sua divulgação.
[27] Apesar de a Diretiva não conter uma norma como a do artigo 5.º, n.º 6, da Diretiva 2014/104/UE de 26 de novembro, o sigilo profissional de advogado constitui um limite ao dever de colaboração (veja-se o artigo 3.º, n.º 4, segundo parágrafo da Diretiva, quando se refere à necessidade de proteção de informações confidenciais).
[28] O n.º 5 deste artigo esclarece que o interesse das empresas em evitar ações de indemnização na sequência de uma infração ao direito da concorrência não constitui interesse que justifica proteção.
[29] A redação do artigo 8.º, n.º 2 não é muito clara. Não se entende por que razão a lei fala de presunção. A expressão “presumir que os factos ficaram provados” parece indicar que o tribunal decide “como se…” o facto existisse (decisão probatória formal). Mas a seguir prevê-se a possibilidade de o tribunal julgar improcedente o pedido ou exceções (perentórias). Esta parte da norma pode ser lida como consagrando a consequência mais grave para a falta de colaboração: ser a ação julgada contra a parte (decisão de mérito). Mas esta parece-nos uma sanção excessiva. Por outro lado, não se compreende em que casos o tribunal deveria tirar consequências probatórias, e em que casos o tribunal poderia decidir a causa contra a parte (repare-se: não se trataria de formular um juízo probatório autónomo – dando o facto, constitutivo ou impeditivo, modificativo ou extintivo, como provado ou como não provado; tratar-se-ia de decidir a causa contra a parte). Parece assim que o legislador se quer referir genericamente à possibilidade de o tribunal tirar consequências probatórias da recusa, deixando aberta a faculdade de o mesmo formular um juízo probatório autónomo com base no comportamento processual da parte. O legislador português interpretou desta forma a referida norma. No artigo 18.º, n.º 4 da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho, prescreve-se: “
sempre que as condutas referidas no n.º 1 forem imputáveis a uma parte, o tribunal aprecia livremente o seu valor para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil”. Trata-se de uma norma retirada do artigo 417.º, n.º 2 CPC.
[30] No artigo 18.º, n.º 3 e 4 do diploma de transposição (a Lei n.º 23/2018, de 05 de junho) prevê, respetivamente, que, o tribunal pode, no caso da al.
a) do n.º 1, aplicar uma sanção pecuniária compulsória fixada entre 5 e 500 UC por cada dia de atraso e até cumprimento da ordem de apresentação de meios de prova, e que, sempre que as condutas referidas no n.º 1 foram imputáveis a uma parte, o tribunal aprecia livremente o seu valor para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.
[31] Por outro lado, os Estados-Membros asseguram que o tribunal ou a autoridade administrativa,
mediante requerimento do demandado, tenham também a possibilidade de ordenar a apresentação dos elementos de prova relevantes tanto
à entidade qualificada como a um terceiro, nos termos do direito processual nacional.
[32] Este requisito está expressamente previsto no diploma de transposição: veja-se o artigo 13.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro.
[33] Multa, a fixar pelo tribunal, nos termos do artigo 417.º, n.º 2 CPC.
[34] Lei n.º 83/95, de 31 de agosto.
[35] Veja-se também os artigos 22.º e 23.º, relativas às chamadas ordens preliminares (os artigos 24.º ss., por sua vez, contêm regras comuns às providências cautelares e às ordens preliminares). As ordens preliminares são decretadas sem audição prévia do requerido, mas as mesmas não são suscetíveis de execução coerciva, ou melhor, não podem ser diretamente executadas. Pode discutir-se a possibilidade de serem aplicadas, no âmbito das mesmas, medidas de execução indireta, em particular uma sanção pecuniária compulsória (artigo 829.º-A CC).
[36] Não se refere à possibilidade de o tribunal emitir uma ordem de conservação da prova. Não obstante, veja-se a norma do artigo 431.º, n.º 2 CPC: “
Incumbe ao notificado que haja possuído o documento e que pretenda eximir-se ao efeito previsto no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil demonstrar que, sem culpa sua, ele desapareceu ou foi destruído”.
[37] É esse o caminho seguido no artigo 431.º, n.º 2 CPC.
[38] Artigo 13.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho: “
Aquele que, nos termos e para os efeitos dos artigos 573.º a 576.º do Código Civil, pretenda obter informações ou a apresentação de meios de prova, incluindo os que o possuidor não lhe queira facultar pode, mediante justificação da necessidade da diligência e com as demais limitações estabelecidas no presente capítulo, requerer ao tribunal competente a citação do recusante para os apresentar no dia, hora e local que o juiz designar, nos termos previstos nos artigos 1045.º a 1047.º do Código de Processo Civil”. Nos termos do n. 2, do artigo 13.º da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho, é aplicável aos pedidos de acesso referidos no n.º 1, com as devidas adaptações, o disposto nos números 2 a 9 do artigo 12.º desta Lei.
[39] O artigo 13.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho também se refere ao artigo 573.º CC. Este artigo prevê uma obrigação de informação, sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias.
[40] O citado pode contestar no prazo de 15 dias, a contar da citação; se detiver as coisas ou documentos em nome de outra pessoa, pode esta contestar dentro do mesmo prazo, ainda que o citado o não faça (artigo 1046.º, n.º 1 CPC – note-se que o artigo 574.º, n.º 2 CC estipula que: “
quando aquele de quem se exige a apresentação da coisa a detiver em nome de outrem, deve avisar a pessoa em cujo nome a detém, logo que seja exigida a apresentação, a fim de ela, se quiser, usar os meios de defesa que no caso couberem”). Na falta de contestação, ou no caso de ela ser considerada improcedente, o juiz designa dia, hora e local pata a apresentação na sua presença (artigo 1046.º, n.º 2 CPC). A apresentação faz-se no tribunal, quando se trate de coisas ou de documentos transportáveis em mão; tratando-se de outros móveis ou de coisas imóveis, a apresentação é feita no lugar onde se encontrem (artigo 1046.º, n.º 3 CPC). Nos termos do artigo 1047.º CPC, se os requeridos, devidamente notificados, não cumprirem a decisão, pode o requerente solicitar a apreensão das coisas ou documentos para lhe serem facultados, aplicando o disposto quanto à efetivação da penhora, com as necessárias adaptações.
[41] Feita a apresentação das coisas ou dos documentos (lê-se agora no artigo 576.º CC), o requerente tem a faculdade de tirar cópias ou fotografias, ou usar de outros meios destinados a obter a reprodução da coisa ou documento, desde que a reprodução se mostre necessária e se lhe não oponha motivo grave alegado pelo requerido.
[42] Sobre esta matéria veja-se Adriano Vaz Serra, “Exibição de coisas ou documentos”,
BMJ, N.º 77 – Junho – 1958, pp. 227-249 e Jorge Ferreira Sinde Monteiro,
Responsabilidade por conselhos recomendações ou informações, colecção teses, Coimbra, Almedina, 1989, pp. 409 ss.
[43] Um documento também é uma coisa. Esta norma diz respeito, portanto, a um caso particular.
[44] O interesse público na descoberta da verdade é soberano no que diz respeito ao fundamento do dever de colaboração probatória, donde resulta a autonomia adjetiva do instituto da exibição. Tal, não obsta, porém a que se possa dizer que, nos casos em que exista um direito à exibição, se verifique (concorrencialmente) um fundamento substantivo. Este aspeto é notado em Miguel Teixeira de Sousa,
As partes, o objecto e a prova na acção declarativa, Lisboa, Lex, 1995, p. 232. O interesse no apuramento da verdade e a situação de necessidade probatória em que a parte se encontra são, portanto, os elementos determinantes do ponto de vista da justificação do dever de exibição, ligado ao princípio da boa-fé processual, prescindindo-se da existência de um direito material à exibição.
[45] Ou, pelo menos, o réu ainda não foi para ela citado.
[46] Caso se entenda que a norma do artigo 575.º CC abrange este caso – é esse o entendimento do legislador da Lei n.º 23/2018, de 05 de junho.
[47] Acesso a meios de prova antes de intentada a ação de indemnização.
[48] Sistema onde se aponta como vantagem do regime da
disclosure precisamente uma ideia de anti-litigiosidade: ao conhecer as armas do seu adversário a parte pode prever mais facilmente qual será o resultado da ação, propiciando-se desta forma uma resolução amigável do conflito.
[49] Da ação no âmbito da qual o requerente pretende usar esses elementos como prova (incidente probatório).
[50] Está em causa uma situação de necessidade probatória: o requerente alega o facto e indica a prova que o demonstra, mas não tem forma de apresentar essa prova em tribunal – uma prova que ele conhece e indica – sem a colaboração de vontade da parte contrária, ou a execução, direta ou indireta, da ordem de exibição.
[51] Na ação dentro da qual é alegado o facto a cuja demonstração essa prova se dirige.
[52] Não podendo, assim, ser utilizada no âmbito da ação que venha a ser intentada.
[53] Embora não seja, como vimos, um regime desconhecido do nosso sistema jurídico (artigo 20.º, n.º 2, al.
d) da LAV).
[54] “Nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Civil, havendo justo receio de vir a tornar-se impossíveis ou muito difícil o depoimento de certas pessoas ou a verificação de certos factos por meio de perícia ou inspeção, pode o depoimento, a perícia ou a inspeção realizar-se antes de ser proposta a ação” (artigo 17.º, n.º 2, da Lei n.º 23/2018, de 5 de junho). “
A produção antecipada de prova prevista no número anterior obedece à forma estabelecida no artigo 420.º do Código de Processo Civil” (n.º 3).
[55] Note-se que é o risco de perda da prova que permite a produção da mesma em momento processual anterior, ou mesmo antes de proposta a ação. O legislador optou, no entanto, por regular a produção antecipada de prova fora do Título IV (artigos 362.º ss.), dando um sinal claro de que o instituto não tem a natureza de uma providência cautelar.
[56] Recorde-se: “
sempre que haja indícios sérios de infração ao direito da concorrência suscetíveis de causar danos, pode o alegado lesado requerer ao tribunal medidas provisórias urgentes e eficazes que se destinem a preservar meios de prova da alegada infração, com as limitações estabelecidas no presente capítulo”.
[57] Note-se que a produção antecipada de documentos pode, em abstrato, estar ligada à própria ação especial prevista nos artigos 1405.º ss. CPC.
[58] Da mesma forma, prevê o artigo 13.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 114-A/2023, de 5 de dezembro que são sancionados com multa processual as seguintes condutas: a) O incumprimento ou a recusa em cumprir uma ordem de apresentação de meios de prova emitida nos termos dos n.ºs 1 e 2; b) A destruição, ocultação ou qualquer outra forma de tornar impossível o acesso efetivo aos meios de prova cuja apresentação tenha sido ordenada ao abrigo dos n.ºs 1 e 2.
[59] Note-se que este regime não tem aplicação aos casos do artigo 419.º, tal como os mesmos foram pensados pelo legislador: casos, digamos, em que um fator natural (como a idade avançada de uma testemunha ou o estado de deterioração da sua saúde mental, ou o estado de degradação de uma coisa) cria o risco de o elemento de prova não pode ser utilizado no processo em curso, ou naquele que vier a ser intentado. Recorde-se que estamos a falar de meios de prova constituendos (na verdade, o regime do artigo 419.º CPC pode ter por base um documento – que é uma coisa –, mas estará em causa, tecnicamente, uma prova pericial: perícia a um documento muito antigo com risco de se tornar ininteligível; o caso não tem a ver com a falta de exibição espontânea do documento). Em suma, não é o risco de impossibilidade probatória derivada de um comportamento do requerido (como no caso de este destruir ou ocultar meios de prova) que se encontra subjacente ao regime do artigo 419.º CPC. Este regime não daria aliás proteção adequada ao requerente uma vez que a este risco dificilmente pode obviar-se através de um mecanismo processual baseado na citação ou notificação prévia do requerido. Por outro lado, o facto de estar em causa, nos casos do artigo 419.º CPC, uma deterioração natural dos elementos de prova, faz com que não possa extrair-se consequências do desaparecimento da prova, como no artigo 431.º, n.º 2 CPC (daí precisamente a necessidade do regime do artigo 419.º CPC).
Mas já deve estar sujeito a um regime semelhante ao do artigo 431.º, n.º 2 CPC a parte que, por exemplo, impede a realização de prova testemunhal ao, por ex., ameaçar ou agredir uma testemunha de forma a impedir que a mesma preste o seu depoimento. Estando em causa uma violação do dever de colaboração, pode aplicar-se as consequências do artigo 417.º, n.º 2 CPC. Pode argumentar-se que não se trata da violação de um dever de colaboração probatória em sentido técnico. Mas trata-se, sem dúvida, de um comportamento contrário aos ditames da boa-fé e do dever de ter um comportamento processual probo, devendo estar sujeito ao mesmo regime (e às consequências mais graves nele previstas, dada a especial gravidade da conduta).
[60] No caso – já o dissemos – de existir o fundado receio de que o requerido a esconda ou a destrua.
[61] Isto, não obstante – evidentemente –, a necessidade de existirem mecanismos de salvaguarda do requerido (princípio do contraditório, regime sancionatório do requerente em caso de caducidade, etc.): afinal, garantias previstas no regime dos artigos 362.º ss. CPC.
[62] Reconhecemos que, na prática, o efeito útil do recurso a uma providência cautelar conservatória não condiz inteiramente com os objetivos referidos acima, dada a impossibilidade, na maior parte dos casos, de executar diretamente a ordem de conservação. Em todo o caso, a emissão de uma ordem como esta tem a vantagem de desonerar o requerente do ónus de demonstrar que o documento existe e se encontra no poder do requerente, no caso de o mesmo desaparecer, e de o requerente pretender valer-se da presunção do artigo 431.º, n.º 2 CPC. Do nosso ponto de vista, deve a esta luz ser interpretado o regime das ordens preliminares da LAV, no que diz respeito à possibilidade de estas ordens terem por objeto a conservação da prova. Este regime pode servir de inspiração para uma futura reforma do CPC.
[63] Caso o legislador entenda que a tutela cautelar pode genericamente abranger o plano da prova, e que essa possibilidade cabe dentro das normas em vigor (a alternativa, conforme referimos acima, diz respeito a um sistema semelhante ao das ordens preliminares da LAV).
[64] Se o legislador sentiu necessidade de afirmar o que aqui afirma, isso decorre do facto de o CPC não prever, em geral, a possibilidade de as providências cautelares terem por objeto a conservação de elementos de prova.
[65] No sentido de estar em risco a viabilidade da ação destinada a obter essa tutela jurídica.
[66] O requisito da prova sumária do direito, previsto no artigo 365.º, n.º 1 CPC, não pode ser alheio ao facto de que a providência se destina precisamente à obtenção de elementos de prova necessários para a demonstração da existência de bom direito. O legislador pode assim aproveitar o momento da transposição da Diretiva, se ela vier a ser aprovada, para clarificar esta matéria. É interessante notar a este respeito que o artigo 21.º, n.º 3 LAV estabelece que, no caso de uma providência cautelar destinada à conservação da prova (artigo 20.º, n.º 2, al.
d) LAV), os requisitos previstos no artigo 21.º, n.º 1 LAV se aplicam apenas na medida que o tribunal arbitral considere adequada. O artigo 21.º, n.º 1 regula os requisitos de que depende o decretamento de uma providência cautelar: os requisitos do
fumus boni iuris e do
periculum in mora (al. a)) e o requisito negativo de que o prejuízo resultante para o requerido do decretamento da providência não exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar (al. b)). O legislador flexibilizou, pois, o regime de decretamento das providências cautelares destinadas à conservação da prova. Este caminho pode ser seguido pelo legislador se pretender criar um regime comum em matéria de conservação da prova.
[67] No que diz respeito à transposição propriamente dita, cremos que o legislador português deve deixar claro que as medidas de conservação da prova podem ser requeridas quer, pelo demandante, quer pelo potencial demandante (até por um argumento de maioria de razão). Já nos pronunciámos sobre este ponto. Com efeito, o artigo 3.º da Diretiva parece estipular o contrário, na medida em que o artigo 3.º, n.º 3 prevê que os tribunais nacionais devem estar habilitados a ordenar medidas de conservação da prova a pedido do demandante (não se encontrando formulação equivalente no n.º 1, o qual apenas se refere à possibilidade de o potencial demandante requerer medidas de colaboração no plano da produção da prova). Mas esta solução não tem razão de ser.
[68] Contrariamente, os diplomas europeus que analisámos, e os respetivos atos de transposição, referem-se a um dever de conservação da prova, e sancionam nos mesmos termos quer a violação do dever de colaboração para a produção de prova, quer a violação do dever de conservação da prova.
[69] No âmbito das providências cautelares, a lei nega mesmo, aliás, a possibilidade de ser intentado recurso de revista, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível (cf. artigo 370.º, n.º 2 CPC, e, para os casos em que o recurso – de apelação e de revista – é sempre admissível, o artigo 629.º, n.º 2 CPC.