ANO 2016 N.º 2

ISSN 2182-9845

EDITORIAL

Newton De Lucca

O que se pode esperar do Direito neste século XXI?

1. Considerações introdutórias

Estamos no início do século XXI, mas não tão no início. Quinze anos já decorreram, desde as primícias não apenas de um novo século, mas de um novo milênio, do qual tanto se esperava, pois as ânsias por um novo período para a história da humanidade expandiram-se com todas as forças a partir da Declaração Universal dos Direito Humanos, de 1948, ganhando especial impulso, a partir da queda do muro de Berlim, em 1989, pondo fim à chamada “Guerra Fria”.

Mas o 11 de setembro, de um lado, e as guerras do Afganistão e do Iraque, de outro, logo mostraram que, em vez de caminharmos para adiante, estávamos retrocedendo, ou indo “a passo di gambero”, como iria assinalar Umberto Eco, em sua famosa obra... [A passo di Gambero. Guerre Calde e Populismo mediatico, Milão: Bompiani, fevereiro de 2006].

Com efeito, uma análise da sociedade contemporânea, por mais superficial que seja, não deixa de revelar esse quadro verdadeiramente confrangedor, já posto em realce, há algum tempo, por Octavio Paz, outrora aquinhoado com o Prêmio Nobel de Literatura:

 “O agressivo  recrudescimento dos particularismos raciais,  religiosos e linguísticos ao mesmo tempo que a dócil adoção de formas de pensamento e conduta erigidas em cânon universal pela propaganda comercial e política, a elevação do nível de vida e a degradação do nível da vida; a soberania do objeto e a desumanização daqueles que o produzem ou o utilizam; o predomínio do coletivismo e a evaporação da noção de próximo. Os meios se transformaram em fins: a política econômica em lugar da economia política; a educação sexual e não o conhecimento através do erotismo; a perfeição do sistema de comunicações e a anulação dos interlocutores; o triunfo do signo sobre o significado nas artes, e, agora, da coisa sobre a imagem...".

O citado autor, escrevendo a propósito da crescente desigualdade entre países ricos e pobres, em luminosa análise da sociedade contemporânea [Signos em Rotação, Editora Perspectiva, coleção debates, artigo com o mesmo título do livro, São Paulo, 1972, p. 97], ao observar o último parágrafo da seção Burgueses e proletários do Manifesto Comunista de Karl Marx, pôs em destaque a circunstância de que haveria sua plena aplicabilidade às relações hoje existentes entre nações ricas e pobres, afirmando que “bastaria substituir as palavras classe por nação, burguesia por países desenvolvidos, proletariado e operários por países subdesenvolvidos, para pensar que se trata de um texto sobre a realidade atual.”

E o que se pode esperar do futuro? Caberia, então perguntar...

Seja-me permitido valer-me das sábias considerações de Norberto Bobbio:

“O futuro da terra só pode ser objeto de uma aposta; ou, para quem não se contenta com uma aposta, e acredita que isso esteja em nossas mãos, de um empenho. Os sinais premonitórios são tanto negativos quanto positivos. Sem dúvida, um dos mais preocupantes sinais negativos é a crescente desigualdade entre países ricos e pobres, que é condição permanente de domínio dos primeiros, e de conflitos entre os segundos.”

Quanto ao sinal favorável, ao contrário, não obstante o seu espírito confessadamente pessimista [De senectute e altri scritti autobiografici, Einaudi, Turim, 1996], sustenta Bobbio ser “a intensidade cada vez maior com que no campo internacional vem sendo reproposto o tema da garantia dos direitos do homem, a começar pela Declaração Universal de 1948, que apontou uma meta ideal e traçou uma possível linha de desenvolvimento do direito internacional em direção à afirmação de um direito cosmopolítico, já previsto por Kant.”

Essa ideia kantiana de um direito cosmopolítico resgata, de maneira admirável, aquela utopia imaginada por Cícero, há mais de vinte séculos, da communis humani generis societas, ou, em vernáculo, sociedade mundial do gênero humano.

Quais respostas o Direito nos dará, neste século XXI, sobre o que resta das nossas utopias?... Estamos mergulhados no oceano da pós-modernidade— ou modernidade líquida, segundo a expressão cunhada pelo sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman — onde pouco ou nenhum espaço parece haver para as utopias. Nela tudo se torna volátil, etéreo, fugaz, carecendo a vida humana de raízes firmes, de consistência e de estabilidade [cf., a propósito, meu livro Da ética geral à ética empresarial, São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 123, nota nº 6].

Neste contexto, para que servem as utopias?... Eis a pergunta à qual o escritor Eduardo Galeano soube tão bem responder nesta famosa passagem:

“A utopia está lá no horizonte. Aproximo-me dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de  caminhar.”

E, exatamente por isso, a utopia parece ser uma espécie de irmã siamesa da esperança, ou seja, não deverá morrer nunca, ainda que seu inevitável destino seja morar sempre em outro lugar. E, entenda-se bem, o que pretendo designar como sendo utopia: se, etimologicamente, significa nenhum lugar, não é esse o propósito do pensamento utópico. Na famosa concepção de Thomas Morus, ela é modalidade de um discurso filosófico que se apresenta não como algo quimérico, fantasioso ou ilusório, mas sim como crítica à realidade social existente. 

É nesse caráter de contundente crítica à realidade social — sempre posto em realce pelos grandes partidários do pensamento utópico, desde Campanella, no século XVI, de Bernard Shaw, no século XIX, até Ernst Bloch, no século XX — que entendo  a utopia como uma espécie de movimento do pensamento social que clama por uma ordem social alternativa. A utopia, assim concebida, compromete-se com um processo de verdadeira mudança social.

Reconheço, de outro lado, que dos nossos sonhos e das nossas utopias, hão de ficar, talvez, mais coisas más do que boas... Por isso mesmo, na epígrafe de um de meus poemas, evoquei esta comovente passagem de Shakespeare (na peça Júlio César, ato II, fala de Marco Antônio):

“O mal que os homens fazem vive depois deles. O bem que puderam fazer permanece quase sempre enterrado com os seus ossos.” 

Se tivesse a ventura de ser um filósofo do Direito, a minha situação estaria, com certeza, bem mais confortável. Como disse Bobbio (ob. cit., pp. 169 e 170), o filósofo do Direito é um especialista em nada, estando autorizado, com muita freqüência, ao contrário do que sucede com os seus colegas juristas, a se ocupar de tudo. Mas como não me considero — e não o sou, efetivamente — nem jurista, nem, muito menos, filósofo do Direito, mas tão somente um observador perplexo — e, mais do que perplexo, estarrecido e mesmo estupefato — da irremediável falência dos valores humanos, em pleno século XXI, nada mais natural que me atenha, com todo o cuidado, aos acanhados limites desta minha modesta condição de singelo observador...

Tomo emprestadas, então, por um momento, as precisas palavras de Ulrich Beck: “a velha sociedade industrial baseada na distribuição de bens, foi sendo substituída por uma nova sociedade de risco, estruturada na distribuição de males.”

Despiciendo assinalar, aliás, que seria necessário um autêntico tratado — e não simplesmente uma exposição tão pobre quanto esta —, para que se fizesse um elenco de todos esses males que afligem a sociedade contemporânea, muito particularmente a brasileira, esta última mergulhada num imenso oceano de acrasia ética, onde até mesmo o acendrado amor pelo estudo aprofundado tornou-se coisa totalmente supérflua e descartável...

Era escusado dizer que a nossa pergunta: “O que se pode esperar do Direito neste século XXI?” pressupõe que o conceito de Direito já seja do conhecimento de todos, o que está longe de ser verdadeiro, dado que os juristas e os filósofos do Direito jamais se puseram de acordo com o real sentido e alcance desse conceito.

Larga é a discussão, a propósito, de ser o Direito uma ciência ou uma prudência. Afasto-me de tão apaixonante debate, convencido de que 
os magistrados, na verdade, quando aplicam as normas jurídicas para a solução dos casos concretos, praticam a juris prudentia e não uma juris scientia. Assim, a norma jurídica não é objeto de demonstração científica, mas de uma justificação axiológica.

Assim concebido, podemos dizer que o Direito é um produto da razão intuitiva, que não tem condições de identificar o que é exato, mas o potencialmente mais correto e justo. Não basta ao jurista ter conhecimento dos textos normativos que podem ser aplicados. É preciso que, além de conhecimento, tenha a sabedoria de como esses textos devem ser aplicados...

Seja como for, porém, ciência ou prudência, sabemos que ele deverá ter uma finalidade e esta não poderá ser outra senão a de construir uma sociedade justa, fraterna e igualitária, ainda que assimétricas possam ser nossas concepções em torno do que seja justo, fraterno e igualitário...

Arrisco-me a dizer, então, que o Direito é — ou, pelo menos, deveria ser — aquele ramo do conhecimento humano que busca encontrar soluções para o bem-estar de toda a humanidade...

A partir de tais considerações, parece-me que o nosso principal desafio será o de saber se tal desideratum — o bem-estar da humanidade — está sendo alcançado com as normas existentes em cada país e, bem assim, as editadas no âmbito do direito internacional.

A tal indagação parece-me que a resposta há de ser, peremptoriamente, negativa. O que assistimos, diariamente, é a progressiva degradação do meio ambiente, a desagregação dos valores fundamentais da pessoa humana, o crescimento da fome e da miséria em várias partes do mundo, para ficar apenas em alguns poucos exemplos...      

Nesse contexto, cabe naturalmente uma outra pergunta: qual será o papel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário diante das crises que se multiplicam na sociedade contemporânea?...

Claro está que esse tema — fundamental sob todos os aspectos —, para conforto e alívio de todos, há de ficar para uma outra palestra...

2. Breves considerações sobre a realidade brasileira  

Não pretendo, em tão curto espaço de tempo, fazer uma análise crítica da realidade brasileira, tarefa que extrapolaria os lindes de uma simples aula, ainda que magna... Será, antes, o desabafo de um professor de Direito, desejoso, desde logo, de apresentar suas sinceras desculpas por esta singela exposição, pelo seu tom talvez um pouco ácido, desencantado,  amargurado e, portanto, necessariamente pessimista, como não poderia deixar de ser...

Sei que estarei incorrendo, de certo modo, numa espécie de “contradição semântica”, vamos chamar assim, pois professor, como sempre costumo dizer, é quem professa, quem acredita, resultando daí que um professor pessimista não deixa de ser, até certo ponto, uma contradição nos próprios termos.

Em minha defesa — se é que tenho alguma prestável —, contra essa acusação que eu mesmo me fiz, é que entre tantos autores que admiro, encontrei admiráveis defesas do pessimismo.

Um deles, Octavio Paz, tão bem difundido entre os brasileiros pelo eminente e querido Prof. Celso Lafer, dizia ser pessimista por uma espécie de fatalidade congênita. E dava suas explicações para isso.

Outro autor, igualmente meu guru, como todos já devem ter percebido, é Norberto Bobbio, que dissertou, com sua grande genialidade, sobre os vários tipos de pessimismo existentes, concluindo que ser pessimista era, para ele, uma espécie de “dever cívico”...

Tentarei, então, comentar quais as principais contradições existentes no sistema jurídico brasileiro...

Um estrangeiro que se proponha a ler a Constituição Federal do Brasil, de 5 de outubro de 1988, chegará, muito provavelmente, a conclusões absolutamente erráticas em relação à realidade brasileira. Ela completou 27 anos no último dia 5 de outubro. Uma das constatações, que me parece irrecusável, é a de que a efetivação de todas as garantias constitucionais parece ser um ideal ainda muito distante, bastando mencionar, a propósito, a existência de mais de uma centena de dispositivos que precisam ser regulamentados. Cerca de noventa deles, acham-se em fase de tramitação no Parlamento Nacional.

Permito-me contar aqui duas anedotas que circulam no Brasil a propósito da Constituição de 1988.

Na primeira delas, o cidadão procurava nas estantes o exemplar da Constituição na seção de livros jurídicos. Inconformado, após quase meia hora de procura em vão, resolveu perguntar ao funcionário da livraria o porquê de não encontrar o exemplar da Constituição, tendo recebido como resposta o seguinte: “Meu Senhor, a secção de livros de ficção científica fica no sub-solo da nossa loja...”

Na segunda — tão pertinente quanto a primeira — ocorre a mesma situação, mas a resposta do funcionário da livraria foi um pouco diversa: “Meu Senhor, a nossa secção de periódicos fica na sala ao lado...”

Tais anedotas facilitam-me o trabalho de tentar explicar o que se passa no Brasil em relação à eficácia da nossa Constituição Federal. Um dos nossos maiores escritores de todos os tempos terá sido inegavelmente Machado de Assis. Numa tentativa de simplificação das coisas, acho que poderia dizer que Eça de Queirós está para Portugal assim como Machado de Assis está para o Brasil. Dois escritores geniais, em síntese.

 Entre os maravilhosos escritos de Machado de Assis (contos, romances e poemas) há um conto, intitulado “O Espelho”, de que se valeu o eminente professor Fábio Comparato, para fazer uma penetrante análise da nossa realidade.

Assinalou ele, então, o seguinte:

“Se lançarmos os olhos para o Brasil, haveremos de reconhecer, sem maior esforço de análise, que as Constituições aqui promulgadas apresentam-se, invariavelmente, pela alma exterior de que falava o narrador de ‘O Espelho’, como indumentárias de gala, exibidas com orgulho aos estrangeiros em comprovação de nosso caráter civilizado. São vestes litúrgicas, envergadas por doutores e magistrados nas cerimônias de culto oficial. Para o dia a dia doméstico, contudo, preferimos, como é natural, usar trajes mais simples e cômodos” [Brasil: A Ausência de República e de Democracia – O Direito e o Avesso, em Estudos Avançados, Instituto de Estudos Avançados da USP, v. 23, nº 67, e, posteriormente, com ligeiras modificações, em Rumo à Justiça, São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 343 e ss.].

A fim de facilitar a compreensão de tal análise, seja-me permitido fazer um rápido resumo do conto de Machado de Assis...

Jacobina era um homem de 45 anos, de origem humilde, que conseguiu subir na vida graças à nomeação que obteve para um posto militar. Estando reunido com mais quatro amigos,  debatendo sobre a alma, o universo e outros assuntos, manteve-se a maior parte do tempo calado, demonstrando desinteresse sobre o tema…

Quando, porém, um dos presentes exigiu que ele externasse sua opinião, Jacobina diz que  contaria um episódio de sua vida, pretendendo  defender sua teoria de que cada pessoa possui, na verdade, duas almas: uma exterior e outra interior.

E a história de Jacobina foi, mais ou menos, a seguinte… Aos 25 anos, fora nomeado Alferes da Guarda Nacional, o que lhe garantira considerável mudança em sua posição social. Passou a desfrutar do orgulho de sua família e das pessoas mais próximas, pois, agora, era o "Sr. Alferes". Sua tia Marcolina, sabedora da situação de que desfrutava seu sobrinho, ao convidá-lo para visitar o sítio em que morava,  oferece-lhe um grande espelho, proveniente da Família Real Portuguesa, seguramente a melhor mobília da casa, colocando-o no quarto destinado a Jacobina.

A partir desse momento,  tudo começa a mudar em sua vida. A percepção que Jacobina tinha de si mesmo passou a ser aquela que outros tinham dele, e não mais aquela que ele tinha de si próprio…

Algum tempo depois de chegar ao sítio, sua tia Marcolina resolveu viajar. Com a ausência dela, os escravos fugiram do sítio e Jacobina viu-se, de repente, absolutamente sozinho. Na aspereza dessa solidão, sente-se angustiado por ter perdido aquela sua "alma exterior", que nada mais era do que a imagem que os outros faziam dele. Quando ele decide olhar o espelho, deu-se conta de que a imagem por este refletida, estava diferente, deteriorada e difusa, assim como era a imagem que ele fazia de si mesmo quando estava na ausência dos outros.

À míngua da nitidez necessária para que pudesse enxergar-se a si mesmo, Jacobina resolveu vestir sua farda, olhando-se novamente no espelho. Enfim, a imagem agora era nítida e com absoluta clareza de pormenores. Recuperada, assim, a "alma exterior" — alimento da sua "alma interior" —, Jacobina logrou escapar da angústia e da solidão nos dias que se seguiram. Terminada sua história, Jacobina vai-se embora, deixando perplexos os amigos com seu impressionante relato de que nós possuímos duas almas…

É claro que não me considero com a autoridade do professor Fábio Konder Comparato na interpretação desse conto de Machado de Assis — e, muito menos ainda, da que fazem outros grandes acadêmicos das nossas Letras, professor Fábio Lucas, de um lado, e professor Alfredo Bosi, de outro —, mas me parece indubitável que, em última análise, Machado de Assis deixa claro que, em "O Espelho", nossa "alma externa", ligada à condição e ao prestígio sociais, à imagem que as  outras pessoas fazem de nós, é muito mais importante do que a nossa própria "alma interna", correspondente à nossa verdadeira personalidade.

Um dos exemplos da “alma externa” da Constituição brasileira pode ser encontrado no art. 5º, encartado entre os “Direitos e Garantias Fundamentais". Diz tal artigo:

"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...)"

Vários incisos desse artigo 5º ainda não foram regulamentados, embora já tenham se passado quase trinta anos da promulgação da nossa Constituição. Destaco, exemplificativamente, os seguintes:

Inciso VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;

Até hoje, porém, ainda não dispomos de uma lei, disciplinando a liberdade de consciência e de crença. Tramitam várias propostas no Parlamento Nacional, parecendo que a de nº 160, de 2009, que dispõe sobre as Garantias e Direitos Fundamentais ao Livre Exercício da Crença e dos Cultos Religiosos, estabelecidos nos incisos VI, VII e VIII do art. 5º e no § 1º do art. 210 da Constituição da República Federativa do Brasil, é a mais adiantada delas... [Em 22/10/2015, a chamada "Lei Geral das Religiões", como é conhecido esse PL da Câmara 160/09, foi aprovada pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, sendo enviada, nesta data, ao Relator atual, deputado Marcelo Crivella]. Mas o nosso Congresso Nacional, infelizmente, parece estar mais ocupado com outras questões internas...

Muitos outros exemplos poderiam ser dados a respeito da falta de regulamentação de vários dispositivos da nossa Constituição Federal, sendo que o mais gritante de todos, a meu ver, está na ausência de uma regulamentação dos arts. 220 e 221, que cuidam da adequação dos programas de rádio e televisão aos grandes valores republicanos e democráticos, assim como a concessão, a permissão e a autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens permanecem inteiramente controladas, quer por interesses pessoais de políticos, quer pelos dos grandes empresários...

Com tais considerações, tento atender ao comando dado pelo eminente professor Fábio Konder Comparato — meu orientador do mestrado e do doutorado no passado, mas, igualmente, um dos meus gurus do presente — a todos os intelectuais do Brasil: “denunciar sem tréguas a ilegitimidade absoluta da organização política brasileira, à luz dos grandes princípios éticos” [Cf. “O Direito e o Avesso”, in Estudos Avançados, Instituto de Estudos Avançados da USP, v. 23, n. 67, com versão ligeiramente modificada, publicada no livro Rumo à Justiça, São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 343 e ss.].

Na conclusão desse seu estudo verdadeiramente seminal, assim concluiu o citado professor:

“Na oração fúnebre que proferiu em homenagem à memória dos seus compatriotas mortos no primeiro ano da Guerra do Peloponeso, Péricles fez o elogio da democracia ateniense. Afirmou, entre outras coisas, que em Atenas os que participavam do governo da cidade podiam ocupar-se também de seus afazeres particulares, e aqueles que se dedicavam a atividades profissionais absorventes mantinham-se sempre a par dos negócios públicos. E concluiu: ‘Somos, com efeito, os únicos a pensar que um homem alheio à política merece ser considerado, não um cidadão pacífico e ordeiro, mas um cidadão inútil’.”

3. Considerações sobre o século XXI

O título da presente exposição — O que se pode esperar do Direito neste século XXI? — impõe-me um esclarecimento inicial quanto à espécie de previsão histórica que tento, despretensiosamente fazer... Com efeito, Karl Jaspers, em estudo fundamental [Die geistige Situation der Zeit, 1931], distinguia dois tipos dessa previsão: a puramente especulativa (dachtende Prognose) e a de natureza instigante (ervechkende Prognose).

Na primeira, o observador coloca-se à margem do mundo, postando-se como espectador do “Teatro da História”. Na segunda, muito mais abrangente e difícil, a par da razão raciocinante, existe a presença da sensibilidade axiológica e o irrecusável juízo ético. Esta segunda forma de previsão histórica, como nos diz o professor Fábio Konder Comparato, “é instigante da ação, pois supõem em cada um de nós a consciência de que somos sempre, respeitadas certas condições, senhores do nosso próprio destino.”

Não obstante meu expresso reconhecimento de que me faltariam envergadura e talento para esse segundo tipo de previsão histórica, não posso deixar de formular meu juízo crítico sobre o que acontece na sociedade contemporânea...

O professor e constitucionalista J. J. Gomes Canotilho, em recentíssima palestra feita no Brasil [18º Congresso Internacional de Direito Constitucional, organizado pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP)], revelou sua preocupação com os ditames impostos pela economia mundial. Afirmou, entre seus “augúrios preocupantes” de que teríamos perdido os ideais de liberdade, de igualdade e de fraternidade, vivendo, na verdade, o tempo da “pós-política, do ódio à democracia e da crise da representatividade da classe política”.

Afirmou, também, a melancólica perda de espaço dos textos constitucionais da Europa, que procuraram salvaguardar os direitos humanos, para “o mundo cruel da realidade”, que prioriza, sobretudo, a estabilidade econômico-financeira, ressaltando que, “na verdade, quem tem força normativa hoje são os tratados internacionais, os acordos de colaboração e os memorandos de entendimento que acabam entrando no orçamento e que acabam restringindo as liberdades conquistadas nos textos constitucionais.”

Identificando que estaríamos vivendo numa “terceira modernidade”, na qual existe uma “trágica comunhão da desatenção com despreocupação”, acabamos indo do “Yes, we can” para o “there is no alternative”...

Quero crer, no entanto, que temos uma alternativa entre as duas grandes correntes históricas existentes para o desfecho da História da Humanidade... Qual delas irá prevalecer neste século XXI?... Aquela que se funda no poderio bélico, na exploração do homem pelo homem, na dominação tecnológica e na progressiva concentração do poder econômico; ou, ao revés, será a que, fundada na transcendente dignidade da pessoa humana, ainda ousa sonhar com a sociedade mundial do gênero humano, de que nos falava Cícero?...   

Apesar do meu confessado pessimismo, ainda julgo possível que se faça a escolha desse segundo caminho... Escusava dizer que, para tanto, torna-se absolutamente indispensável e urgente pensarmos num amplo programa de reconstrução ética do mundo, a começar no recesso dos nossos lares, prolongando-se nas escolas, nas repartições públicas e nas empresas, cabendo especial papel a ser desempenhado pelas Faculdade de Direito de todo o mundo...

Seja-me permitido encerrar esta minha singela exposição, utilizando-me de uma passagem do Padre António Vieira, tantas vezes utilizada por mim ao cabo das minhas palavras: “Se eu não vos convenci de nada, espero que não vos tenha aborrecido muito...”.

Newton De Lucca é Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

(Excerto da Conferência Magistral proferida na cerimónia de comemoração dos 20 anos da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, no dia 17 de dezembro de 2015).