A review of Ricardo Tavares da Silva, Interpretação Artificial: Sobre a Possibilidade de os Novos Sistemas de Inteligência Artificial fazerem Interpretação Jurídica, Coimbra, Almedina, 2025, 147 pp. (ISBN: 978 -989-40-2475-0)
A review of Ricardo Tavares da Silva, Interpretação Artificial: Sobre a Possibilidade de os Novos Sistemas de Inteligência Artificial fazerem Interpretação Jurídica, Coimbra, Almedina, 2025, 147 pp. (ISBN: 978 -989-40-2475-0)
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1. Através desta obra, o autor coloca uma questão deveras difícil, mas aliciante: será que os sistemas de Inteligência Artificial podem fazer interpretação jurídica? Com efeito, todos os juristas assistem agora à sucessiva integração de grandes modelos de linguagem em sistemas de inteligência artificial que servem de auxílio à elaboração de pareceres, peças processuais, e-mails, análise e síntese de textos, entre outros. Em resultado disso, creio que muitos de nós têm ficado surpreendidos com as respostas que são dadas por estes sistemas às questões que, por vezes, lhes colocámos.
Este tema poderia ter partido de variados pontos de vista e com diferentes delimitações, atendendo à riqueza das questões que levanta, mas o autor logo no início expõe qual o ponto de vista de que parte e as delimitações que fez. Assim, na obra assume-se que a IA não seja uma mente humana, mas aceita-se a possibilidade de que possa fazer interpretação jurídica.
Verificámos no índice que na obra se começa por apresentar noções gerais de computação no seu primeiro capítulo. Depois, na segunda parte, relaciona-se a computação, a mente e a imitação. No segundo capítulo, o autor entra na interpretação jurídica propriamente dita, começando por determinar o significado das palavras, e das coisas. No terceiro capítulo, o autor foca-se no significado do texto legal e distingue-o da fonte legal. No quarto capítulo, entramos no tema central desta obra: Podem os novos sistemas de IA fazer interpretação jurídica?
Apresentado que está o tema, a sua delimitação e o índice da obra, passaremos agora a enunciar as duas partes que nos parecem relevantes e que merecerão uma maior reflexão da parte de todos os juristas.
2. Em primeiro lugar, o Autor explica que podemos ter duas atitudes perante a IA generativa. Por um lado, teremos aquele grupo de pessoas que achará que a IA “(...) é mesmo uma mente, é uma mente artificial (ou seja, não-orgânica, para além de construída) (...)”. Por outro lado, teremos o grupo de pessoas que pensa que ela não funciona como a mente humana, “(...) não passando de um input para resultar no output (...)” (p. 113). Concordámos com o autor quando opta por uma posição intermédia: a IA não é mente pois faltam-lhes os traços característicos ligados à subjetividade, característicos da mente humana, mas não deixa de ser uma máquina a imitar perfeitamente a mente humana. A IA não poderá fazer interpretação jurídica como a mente humana porque não é a mente humana. A interpretação jurídica constitui um procedimento mental e a IA não é capaz de adotar procedimentos mentais. Portanto, o foco deve estar no resultado, passando a colocar-se a seguinte questão: será que a IA pode obter os mesmos resultados que a interpretação jurídica feita por humanos? A nosso ver, o autor coloca bem a questão ao afirmar: “(...) não se trata de saber se as máquinas compreendem, se valoram, se intuem e se pensam, coisas que nós fazemos, mas se podem imitar esses estados mentais, levando os mesmos resultados”(p. 114).
Podemos ir ainda mais longe e levantar mais questões. Poderemos admitir, como fazem alguns autores, que estamos perante a existência de diferentes tipos de inteligência, como os seres humanos, os animais e os sistemas de IA, que têm a sua forma própria de “pensar”, devendo ser devidamente entendidas e enquadradas no âmbito jurídico de uma forma diferente do que têm sido até então?
Este debate tem particular relevo na discussão relativa à atribuição de personalidade jurídica aos sistemas de IA: terão uma mente, serão mentes artificiais, imitam a mente humana, terão uma autonomia própria que indicia que devemos pensar na atribuição de personalidade jurídica?
O autor não explora essa questão na sua obra, mas seria um desenvolvimento interessante num trabalho posterior testar esta linha de pensamento e perceber se poderia ou não ser admitido à IA interpretar e aplicar o Direito, se, para tal, deveríamos atribuir personalidade jurídica a estes entes e equipará-los aos juristas humanos, admitindo que estes interpretem e apliquem o Direito. A nosso ver, este livro e um desenvolvimento posterior nesse sentido, poderia ser relevante para refletirmos sobre as aplicações de IA denominadas de self approach, ou seja, sistemas de IA desenvolvidos na área do Direito que qualquer cidadão pode consultar e utilizar para obter aconselhamento jurídico e para a prática de determinados atos legais.
Esta análise centra-se na interpretação legal, mas poderíamos questionar se a poderíamos alargar a outras áreas, como por exemplo, a área médica. Teremos aqui uma IA a fazer uma interpretação médica dos resultados; deveremos também olhar apenas para o resultado dessa interpretação? Estamos perante a imitação da mente médica?
3. Em segundo lugar, além da interpretação, o autor dá ainda atenção à integração de lacunas, referindo a analogia legis e a analogia iuris.
No que respeita à analogia legis, é explicado que o sistema de IA poderia ser treinado em procedimentos de analogia passados envolvendo os mesmos elementos. A IA encontraria os padrões e conseguiria replicar esse procedimento quando encontrasse os mesmos procedimentos. Contudo, o autor coloca ainda uma questão mais intrigante: poderia o sistema fazer uma analogia de raiz e termos assim acesso a novas analogias? É até apontada uma via de solução retirada de exemplos aplicados já em contexto jurídico: o uso de sistemas híbridos que combinassem knowledge-based e machine learning. O novo caso seria inserido no sistema, o sistema criaria um mapa normativo com normas semelhantes e encaixaria o novo caso entre elas.
Quanto à analogia iuris, o autor diz-nos que esta poderia também ser possível através de um sistema híbrido, pois poderia permitir que a IA conhecesse os comportamentos jurídicos ofensivos de bens jurídicos ou até chegar a novos bens jurídicos.
Parece-nos que estas reflexões relativas à integração reforçam o que dissemos acima relativamente à interpretação. Haverá aqui uma forma própria de funcionar do sistema que consiga chegar aos mesmos resultados que a mente humana, ou a resultados complementares ou diversos? Assumimos reproduzidas aqui as mesmas questões e fica ainda o repto para que as mesmas sejam testadas multidisciplinarmente, não se pensando só a nível conceptual, mas através da possibilidade tecnológica, testando-a e verificando se os resultados dos sistemas confirmam as nossas reflexões teóricas.
4. Partilhamos aqui os pontos centrais da obra em análise para assim convidarmos o leitor a analisar a obra com mais detalhe e a chegar às suas próprias conclusões relativamente ao papel da IA na interpretação e integração jurídica. Qualquer jurista interessado nestas matérias poderá encontrar aqui um forte estímulo para o estudo aprofundado destas matérias e de outras como aquelas que enunciei nesta breve recensão.