European Private International Law; Regulation (EU) 2015/848 of the European Parliament and of the Council of 20 May 2015; cross-border insolvencies; main and secondary insolvency proceedings; case law of the Court of Justice of the European Union and of the Portuguese higher courts; conflict rules in CIRE.
This article aims to analyse, albeit briefly, the main and secondary insolvency proceedings in light of Regulation (EU) n.º 2015/848 of the European Parliament and of the Council of 20 May 2015, on insolvency proceedings, by studying the provisions of the Regulation on this subject and some case law, not only of the Court of Justice of the European Union, but also of the Portuguese High Courts on the same subject. After a short introduction to the aforementioned Regulation and its antecedents, with curtly references to cross-border insolvencies, we will address the provisions of the Regulation regarding the subject of main and secondary insolvency proceedings, mentioning, whenever relevant, the case law. We will also succinctly examine the legal provisions of the CIRE on the subject. We will end with brief conclusions on the topics mentioned.
1. Introdução
Fazendo parte de um mundo em constante evolução, cada vez mais assistimos a fenómenos de globalização da economia, acompanhando os Estados-Membros da União Europeia, como não podia deixar de ser, face à sua importância, essa tendência. Essa globalização tem, com frequência, uma dimensão para além das fronteiras de cada Estado, impondo-se assim a existência de instrumentos que regulem as relações transfronteiriças
[1] em várias matérias. Uma dessas matérias é a das insolvências, mais precisamente, as insolvências transfronteiriças
[2], cada vez mais comuns.
Trata-se de assunto corrente, nos dias de hoje, resolver questões respeitantes, por exemplo, a uma sociedade comercial que tem a sua sede e estabelecimento em Portugal, mas que igualmente tem sucursais em outros países da União Europeia, possuindo também bens, ou pelo menos relações comerciais nesses países, ou uma sociedade comercial que tem a sua sede na Bélgica mas tem estabelecimentos em França e na Bulgária onde também desenvolve atividade comercial. O comércio, cada vez mais global, assim o impõe. E quando surgem incumprimentos, surge igualmente a necessidade de saber a que instrumentos poderemos recorrer para os resolver.
No âmbito deste artigo iremos debruçar-nos, com maior profundidade, sobre as previsões do Regulamento (UE) 2015/848, de 20 de maio de 2015
[3], relativo aos processos de insolvência, mais precisamente sobre a matéria dos processos de insolvência principal e secundários, analisando, quando pertinente, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e alguma Jurisprudência dos Tribunais Superiores Portugueses sobre estas matérias.
Certo é que, no estudo destas temáticas, não nos podemos esquecer da ordem jurídica portuguesa, importando ter em consideração o Regime do Direito Interno, nas previsões do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas
[4] aprovado pelo Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março
[5].
2. Os antecedentes do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência
Em 2000, surge o primeiro Regulamento relativo aos processos de insolvência, o Regulamento (CE) 1346/2000, de 29 de maio de 2000
[6].
Trata(va)-se de um instrumento primordial de Direito Internacional Privado nestas matérias
[7].
Tal como se referia no Considerando 8 deste Regulamento, o mesmo visava “alcançar o objetivo de melhorar a eficácia e eficiência dos processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços”, sendo “necessário e oportuno que as disposições em matéria de competência, reconhecimento e direito aplicável neste domínio constem de um ato normativo da Comunidade, vinculativo e diretamente aplicável nos Estados-Membros”.
O referido Regulamento entrou em vigor em 31 de maio de 2002
[8], sendo apenas aplicável aos processos de insolvência abertos posteriormente à sua entrada em vigor
[9]. Quanto à sua aplicabilidade territorial a mesma estendia-se a todos os Estados-Membros com exceção da Dinamarca.
[10] Quanto ao Reino Unido e a Irlanda os mesmos notificaram o desejo de participar na aplicação e aprovação do Regulamento
[11].
O âmbito da aplicação do Regulamento era o dos processos coletivos em matéria de insolvência do devedor que determinassem a inibição parcial ou total desse devedor da administração ou disposição de bens e a designação de um síndico
[12], sendo que o mesmo não era aplicável a algumas empresas e organismos
[13].
Como antecedentes do referido Regulamento podemos assinalar alguns instrumentos, que embora não tendo entrado em vigor, constituem um marco histórico antecessor deste Regulamento: A Convenção Europeia sobre certos Aspectos Internacionais da Falência, de 05 de junho de 1990 e a Convenção Comunitária sobre Processos de Insolvência, de 23 de novembro de 1995.
De salientar que, mesmo após a entrada em vigor do Regulamento (CE) 1346/2000, estas matérias continuaram na ordem do dia para a Comissão de Europeia, como resulta, a titulo exemplificativo, da Comunicação da Comissão ao Conselho, ao Parlamento Europeu, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões com o tema: ”Superar o estigma do insucesso empresarial – por uma política de segunda oportunidade - Implementar a Parceria de Lisboa para o Crescimento e o Emprego”, datada de 2007 e da recomendação da Comissão, de 12 de março de 2014, sobre uma nova abordagem em matéria de falência e de insolvência das empresas
[14].
Voltando ao Regulamento (CE) 1346/2000, já no mesmo surgem referências aos processos principal e secundário de insolvência em moldes que iremos desenvolver mais à frente comparativamente com o Regulamento (UE) 2015/848, tanto mais que o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 continua a aplicar-se aos processos de insolvência iniciados antes de 26 de junho de 2017, de acordo com a previsão do art. 84.º, do Regulamento (UE) n.º 2015/848.
Este Regulamento constituiu um marco histórico, com relevância e impacto direto importante nas insolvências abertas com dimensão internacional na Europa, uma vez que foi o primeiro instrumento, de Direito Internacional Privado, a entrar em vigor, nos termos enunciados, regulador dessas matérias entre os Estados-Membros.
3. Considerações sobre o Regulamento (UE) 2015/848 e insolvências transfronteiriças
Em 20 de maio de 2015, a União Europeia adotou o Regulamento (UE) 2015/848 no domínio dos processos de insolvência, reformulando o Regulamento (CE) n.º 1346/2000. Esta reformulação surgiu na sequência da adoção pela Comissão Europeia, em 12 de dezembro de 2012, de um Relatório sobre a aplicação do Regulamento que, em linhas gerais, concluiu que seria de aperfeiçoar a aplicação de algumas das disposições do Regulamento, a fim de melhorar a gestão eficaz dos processos de insolvência, visando pois esta reformulação objetivos muito específicos
[15] [16] [17].
Este Regulamento tem caráter geral, é obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados Membros, sem necessidade de transposição, considerando a previsão do art. 288.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)
[18] [19].
O referido Regulamento entrou em vigor no vigésimo dia seguinte ao da sua publicação (25.06.2015) no Jornal Oficial da União Europeia, e é aplicável a partir de 26 de junho de 2017, com exceção dos seus artigos 86.º, 24.º, n.º 1 e 25.º, aplicáveis, respetivamente a partir de 26 de junho de 2016, 26 de junho de 2018 e 26 de junho de 2019
[20].
A sua aplicabilidade estende-se a todos os Estados Membros, com exceção da Dinamarca, que não participou na adoção do Regulamento, não ficando a ele vinculada nem sujeita à sua aplicação
[21].
Os objetivos deste Regulamento encontram-se enunciados no Considerando 3 do Regulamento reformulado, visando assim o mesmo o bom funcionamento do mercado interno, o que implica a tramitação eficiente e eficaz dos processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços.
De salientar, por um lado, que não se estabelecem no Regulamento regras uniformes de direito substantivo para todos os Estados Membros aos quais o Regulamento é aplicável, sendo reconhecido no Considerando 22 do Regulamento que: “não é praticável criar um processo de insolvência de alcance universal na União, tendo em conta a grande diversidade das leis substantivas” e, por outro, que não é o único instrumento aplicável a esses mesmos Estados em matéria de insolvência.
Temos, desde logo, que ter em consideração que o art. 1.º, n.º 2, do Regulamento exclui a sua aplicação a alguns processos
[22], mencionando-se, no Considerando 19, que algumas entidades deverão ficar excluídas do âmbito de aplicação do mesmo “uma vez que estão sujeitos a um regime específico e que as autoridades nacionais de supervisão dispõem de extensos poderes de intervenção”. Para além disso, importa ter em atenção a existência de outros atos jurídicos da União Europeia que também regulam estas matérias, nomeadamente Diretivas
[23].
Quanto à aplicabilidade do Regulamento, estabelece o art. 1.º requisitos de aplicabilidade do mesmo, desde logo, um requisito de base, na descrição efetuada no n.º 1, três requisitos adicionais ou complementares, referidos nas alíneas a), b) e c) e um requisito geral e eventual, na penúltima parte do número 1 do normativo.
Na parte final do n.º 1, do artigo enunciado, é referido que os processos mencionados no mesmo número são os enumerados no anexo A, de que falaremos mais à frente.
Em traços gerais, importa concluir que o Regulamento é aplicável aos processos coletivos públicos de insolvência
[24], cabendo aqui ter em consideração as definições previstas no art. 2.º, n.ºs 1
[25] e 4 e ainda os Considerandos 9
[26] e 14 do Regulamento, incluindo processos provisórios com fundamento na lei, no domínio da insolvência e nos quais, para os efeitos previstos no n.º 1, estejam preenchidos os requisitos das referidas alíneas, sendo que nos casos em que os processos enunciados são iniciados nas situações em que existe uma probabilidade de insolvência, a sua finalidade é a de evitar a insolvência do devedor ou a cessação das suas atividades, ou seja privilegiando-se a recuperação do devedor, constituindo esta finalidade um elemento inovador relativamente ao anterior Regulamento
[27] [28].
O Regulamento não é no entanto aplicável se o centro dos interesses principais do devedor se situar fora da União Europeia, referindo o Considerando 25 uma aplicação exclusiva do Regulamento aos processos relativos ao devedor cujo centro dos interesses principais está situado na União.
De salientar ainda que o Regulamento é aplicável apenas a processos de natureza pública e não a processos de natureza confidencial, como resulta da leitura dos Considerandos 12 e 13 e do referido no art. 1.º, n.º 1, do Regulamento.
Este Regulamento aplica-se exclusivamente aos processos transfronteiriços, tal como é salientado pelo Considerando 4 do Regulamento, impondo-se aqui fazer algumas considerações, sobre o conceito de insolvência transfronteiriça.
Catarina Serra avança uma definição de insolvência transfronteiriça, fazendo referência a outros autores, como sendo a insolvência que: “pressupõe uma situação em que o devedor tem ligações com mais de um ordenamento jurídico, designadamente por ter bens ou credores localizados em mais do que um Estado Membro”
[29].
Também no considerando 25 do Regulamento, como já referimos, se enuncia que o regulamento se aplica exclusivamente aos processos relativos ao devedor cujo centro dos seus interesses principais está situado na União, sendo este conceito primordial, como veremos, para apurar em que Estado da União Europeia o processo principal deve ser aberto e qual a lei aplicável
[30].
O regulamento consagra, em traços gerais, um conjunto de normas relativas a competência internacional – art. 3.º; lei aplicável – arts, 7.º a 18.º; reconhecimento de decisões que determinam a abertura de um processo de insolvência – arts. 19.º a 20.º; reconhecimento e execução de outras decisões – art. 32.º, sendo ainda de destacar disposições relativas aos processos de insolvência secundários – arts 34.º a 52.º e respeitantes a processos de insolvência concernentes a membros de grupos de sociedades – arts. 56.º a 77.º.
Quanto aos processos nacionais de insolvência os mesmos são os enumerados, como referimos, no Anexo A do Regulamento, que relativamente a Portugal são: o processo de insolvência, o processo especial de revitalização (PER) e o processo especial para acordo de pagamento (PEAP), previstos no CIRE. Quanto ao Regime Extrajudicial de Recuperação de Empresas (RERE)
[31]o mesmo não está mencionado neste anexo A, não sendo pois o Regulamento aplicável a este regime, salientando Maria do Rosário Epifânio que este “é por força da lei um procedimento confidencial”, estando pois excluído face ao referido no Considerando 13 do Regulamento, que exclui do âmbito de aplicação do Regulamento os processos de insolvência de caráter confidencial
[32].
4. Os processos principal e secundários de insolvência no Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência; a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e dos Tribunais Superiores Portugueses
Dispõe o art. 3.º, n.º 1, do Regulamento que os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor (CIP) são competentes para abrir o processo de insolvência, esclarecendo o regulamento que se trata do processo principal de insolvência, embora não definindo o mesmo, o que pode gerar algumas dificuldades.
Quanto ao “Momento de abertura do processo” refere-se na definição que é dada pelo Regulamento no art. 2.º, 8) que é: “o momento em que a decisão de abertura do processo produz efeitos, independentemente de essa decisão ser ou não final”. Não exige assim o Regulamento que a referida decisão de abertura do processo seja final, privilegiando o Regulamento a produção de efeitos da decisão.
Tal como enuncia Fernando Taínhas “… parece-nos claro que, para efeitos de aplicação do Regulamento, constitui decisão de abertura do processo de insolvência a decisão que declare a insolvência, a que nomeie um administrador judicial provisório no âmbito de medidas cautelares, tal como no PER/PEAP a que nomeia o administrador judicial provisório, mesmo que sejam decisões não definitivas, como refere o artigo 2.º, n.º 8 do Regulamento”
[33].
Diz também Alexandre Soveral Martins, a propósito da mesma questão, que o que conta é o momento em que a decisão de abertura do processo produz efeitos e não o momento em foi instaurado o processo
[34].
No que concerne a esta questão da abertura do processo principal importa mencionar também o decidido no Acórdão do TJUE, de 24 de março de 2022 (C-723/20), que concluiu que: “O artigo 3.º, n.º 1, do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, deve ser interpretado no sentido de que o órgão jurisdicional de um Estado-Membro ao qual foi submetido um pedido de abertura de um processo principal de insolvência mantém a competência exclusiva para abrir esse processo quando o centro dos interesses principais do devedor é transferido para outro Estado-Membro após a apresentação desse pedido, mas antes de o referido órgão jurisdicional se ter pronunciado sobre o mesmo. Consequentemente, e desde que este regulamento continue a ser aplicável ao referido pedido, o órgão jurisdicional de outro Estado-Membro posteriormente chamado a pronunciar-se sobre um pedido apresentado para os mesmos fins não se pode, em princípio, declarar(-se) competente para abrir um processo principal de insolvência enquanto o primeiro órgão jurisdicional não tiver decidido e declinado a sua competência”
[35].
Cumpre ainda, a propósito desta questão, referir o disposto nos arts. 19.º e 20.º do Regulamento, prevendo o primeiro o reconhecimento, em todos os outros Estados-Membros, de qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro competente por força do artigo 3.º, logo que produza efeitos no Estado Membro de abertura do processo e o segundo, que essa decisão produz, sem mais formalidades, em qualquer dos demais Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo, salvo disposição em contrário do próprio Regulamento e enquanto não tiver sido aberto nesse outro Estado-Membro um processo secundário de insolvência
[36] [37].
Define ainda o Regulamento, no mencionado art. 3.º, o que é o centro dos interesses principais do devedor, precisando a definição no caso de o devedor ser uma sociedade e pessoa coletiva e no caso de estar em causa uma pessoa singular, estabelecendo ainda presunções relativamente a esse centro de interesses, privilegiando a estabilização temporal com diferentes períodos temporais, de acordo com a natureza da entidade
[38].
Importa também ter em consideração, sobre esta matéria, o enunciado nos Considerandos 28, privilegiando o mesmo a perceção dos credores e 30, do Regulamento, que enuncia desde logo que “a presunção de que a sede estatutária, o local da atividade principal e a residência habitual constituem o centro dos interesses principais deverá ser ilidível e o órgão jurisdicional competente de um Estado-Membro deverá ponderar cuidadosamente se o centro dos interesses principais do devedor está verdadeiramente situado nesse Estado-Membro”, referindo após em que termos essas presunções podem ser ilididas.
No direito português importa ter em atenção o disposto no art. 7.º, do CIRE, que, referindo-se ao tribunal competente para o processo de insolvência, menciona, no seu n.º 2, que: “É igualmente competente o tribunal do lugar em que o devedor tenha o centro dos seus principais interesses, entendendo-se por tal aquele em que ele os administre, de forma habitual e cognoscível por terceiros”, tratando-se aqui de uma definição similar à constante do Regulamento.
De salientar que a referida previsão do Regulamento é uma das novidades positivas a saudar do mesmo, sendo que no Regulamento (CE) n.º 1346/2000 a definição do centro dos interesses principais do devedor apenas estava mencionada nos Considerandos, referindo o Considerando 13.º, deste regulamento, que: “(o) centro dos interesses principais do devedor deve corresponder ao local onde o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses, pelo que é determinável por terceiros”. Trata-se de um conceito primordial nestas matérias da insolvência transfronteiriça e particularmente no momento da abertura do processo de insolvência, que este Regulamento, de forma positiva, afastando alguma incerteza na aplicação da definição que surgia no anterior Regulamento apenas nos Considerandos, consagrou agora no citado artigo 3.º, embora impondo-se complementar a interpretação deste artigo com referido nos citados Considerandos 28 e 30, privilegiando-se a perceção dos terceiros relativamente à localização daquele, em particular dos credores.
Por referência a esse Regulamento (inicial e reformulado), a Jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) foi/é relevante na interpretação que fez e continua a fazer do conceito de centro dos interesses principais do devedor.
No Acórdão, de 02 de maio de 2006 (C-341/04), do TJUE, o mencionado tribunal, apreciando a questão de saber qual o fator determinante para efeitos da identificação do centro dos interesses principais da filial, num contexto caracterizado pelo facto de uma sociedade-mãe e a sua filial possuírem as respetivas sedes em Estados‑Membros diferentes, refere, desde logo, que: “O conceito de centro dos interesses principais é específico do regulamento. Como tal, reveste‑se de um significado autónomo e deve, por conseguinte, ser interpretado de modo uniforme e independente das legislações nacionais”, resultando da definição contida no Considerando 13 do Regulamento que: “o centro dos interesses principais deve ser identificado em função de critérios simultaneamente objectivos e determináveis por terceiros. Essa objectividade e essa possibilidade de determinação por terceiros são necessárias para garantir a segurança jurídica e a previsibilidade respeitante à identificação do órgão jurisdicional competente para abrir o processo principal de insolvência. A segurança jurídica e a previsibilidade, por sua vez, revestem‑se de uma importância tanto maior quanto a identificação do órgão jurisdicional acarreta, nos termos do artigo 4.°, n.º 1, do regulamento, a da lei aplicável”.
Termina este Acórdão concluindo, quanto à questão referida, após mais algumas considerações, que: “quando o devedor seja uma filial cuja sede estatutária e a sede da sua sociedade‑mãe estão situadas em dois Estados‑Membros diferentes, a presunção enunciada no artigo 3.°, n.º 1, segunda frase, do regulamento, segundo a qual o centro dos interesses principais dessa filial se situa no Estado‑Membro da respectiva sede estatutária, só pode ser ilidida se elementos objectivos e determináveis por terceiros permitirem estabelecer a existência de uma situação real diferente daquela que a localização na referida sede estatutária é suposto reflectir. Tal pode ser, nomeadamente, o caso de uma sociedade que não exerça qualquer actividade no território do Estado‑Membro da sua sede social. Ao invés, quando uma sociedade exerça a sua actividade no território do Estado‑Membro onde se situa a respectiva sede social, o simples facto de as suas decisões económicas serem ou poderem ser controladas por uma sociedade‑mãe noutro Estado‑Membro não é suficiente para ilidir a presunção prevista no regulamento”
[39].
No Acórdão do mesmo Tribunal, de 20.10.2011 (C- 396/09), também por referência ao Regulamento 1346/2000, refere o Tribunal que: “O centro dos interesses principais de uma sociedade devedora deve ser determinado privilegiando o local da administração central dessa sociedade, tal como pode ser demonstrado por elementos objetivos e determináveis por terceiros”
[40].
Por sua vez, como se refere no acórdão do TJUE, proferido em 16 de Julho de 2020, no processo n.º C-253/19, que tinha por objeto um pedido de decisão prejudicial sobre a interpretação do artigo 3.º, n.º 1, primeiro e quarto parágrafos, do Regulamento, o tribunal, ao verificar se o centro dos interesses principais do devedor se situa de facto na área da sua competência, deve tomar em consideração o conjunto dos elementos objetivos e cognoscíveis por terceiros, relacionados com a situação patrimonial e económica dos devedores, para apurar se a realidade está de acordo com a presunção. Por outras palavras, deve apurar se é no local que o Regulamento presume ser o centro dos interesses principais do devedor que ele exerce, na realidade, habitualmente, a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros
[41].
Já no âmbito do Regulamento (UE) 2015/848, concluiu o TJUE, no Acórdão proferido em 19 de setembro de 2024, no processo n.º C-50/23, que o art. 3º, n.º 1, terceiro parágrafo, deste Regulamento, deve ser interpretado no sentido de que tratando-se de uma pessoa singular que exerça uma atividade comercial ou profissional independente, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais dessa pessoa se situa no local de atividade principal da referida pessoa, mesmo que essa atividade não necessite de nenhum meio humano ou bem material
[42].
Também a Jurisprudência Portuguesa se tem debruçado sobre este conceito.
A título exemplificativo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13 de dezembro de 2022, que analisando uma situação em concreto, refere que: o “centro dos interesses principais do devedor”, é aquele “em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros”, localizando-se, no caso em concreto, em França, numa situação em que duas pessoas de nacionalidade portuguesa, casadas entre si, que residem e trabalham em França, onde se encontram emigradas e que quando foi proposta a ação já residiam habitualmente naquele país, sendo que em Portugal têm residência ocasional
[43].
No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 02 de maio de 2023, diz-se que: “O lugar que efetivamente constitui o CIP do devedor só releva como fator de conexão se os terceiros o puderem perspetivar ou reconhecer como tal”
[44].
Também no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02 de maio de 2024, se analisa este conceito de centro dos interesses principais do devedor, mencionando-se que: “estando em causa a insolvência de pessoa singular que não realiza uma atividade comercial ou profissional independente, é de presumir que o CIP coincide com o lugar da residência habitual do devedor”
[45].
Por último, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 08 de abril de 2025, enuncia-se que: “o CIP do devedor só releva como fator de conexão de competência relevante se os terceiros o puderem perspetivar ou reconhecer como tal, o que se afere no momento da abertura do processo, e não o da constituição das dívidas que integram a situação da insolvência.
O Estado melhor colocado para aferir da atual situação patrimonial e económico financeira dos devedores é o país no qual atualmente residem, procuram (outro) espaço para residir de modo mais condigno, trabalham e auferem os rendimentos que sustentam o respetivo agregado familiar, e onde os seus filhos frequentam a escola; no caso, o país para onde os recorrentes emigraram com o objetivo de aí alcançarem melhores condições remuneratórias e de vida”
[46].
De salientar a preocupação do Regulamento, ora em análise, de prevenir as situações de
forum shopping ilegítimo, potenciadas, como salienta Maria do Rosário Epifânio, pela “escolha do centro dos principais interesses como conexão relevante para a competência do órgão jurisdicional para a determinação da lei nacional aplicável e para o reconhecimento automático das decisões”
[47], ao esclarecer, no Considerando 5, que: “Para o bom funcionamento do mercado interno, é necessário evitar incentivos que levem as partes a transferir bens ou ações judiciais de um Estado-Membro para outro, no intuito de obter uma posição mais favorável em detrimento do interesse coletivo dos credores (seleção do foro)”
[48] [49].
Podemos, no entanto, questionar se os instrumentos consagrados neste Regulamento serão suficientes para o fazer, designadamente tendo em atenção os períodos temporais não muito alargados (três e seis meses) previstos no mesmo, respeitantes à transferência do CIP para outros Estados-Membros, no momento anterior ao do pedido de abertura do processo de insolvência.
Devemos assim entender que a localização do CIP é que determina a competência internacional para a abertura do processo principal de insolvência.
Enuncia ainda este artigo 3.º, nos seus n.ºs 2, 3 e 4, do Regulamento, aquilo em que consiste um processo secundário de insolvência
[50] e um processo territorial de insolvência.
Um processo secundário de insolvência será aquele aberto posteriormente ao processo principal de insolvência
[51], nos termos do art. 3.º, n.º 3, do Regulamento, sendo que um processo territorial de insolvência pode passar a ser um processo secundário de insolvência, após a abertura do referido processo principal de insolvência (n.º 4).
Quanto ao processo territorial de insolvência este distingue-se do referido processo secundário de insolvência, uma vez que, nos termos do n.º 4, do referido art. 3.º, o mesmo só pode ser aberto antes do processo principal de insolvência e nas seguintes condições: - não é possível abrir um processo principal de insolvência ao abrigo do n.º 1
[52], sendo que a abertura desse processo apenas pode ser requerida por alguns legitimados nos termos da alínea b), i e ii, do n.º 4, do já citado art. 3.º
[53][54].
Estas limitações de abertura de um processo territorial, de acordo com o referido no considerando 37, do regulamento, prendem-se com a preocupação de restringir a abertura destes processos territoriais ao mínimo indispensável.
A abertura do processo territorial, com as limitações já referidas, é autorizado situando-se o centro dos interesses principais do devedor no território de um Estado-Membro, sendo os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro competentes para abrir um processo de insolvência se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro, sendo, no entanto, os efeitos desse processo limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território, nos termos do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento
[55].
Admitindo a possibilidade de convolação do processo principal em processo secundário de insolvência, desde que estejam verificados os respetivos pressupostos, enuncia-se a menção afirmativa a esta possibilidade referida no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 16 de junho de 2016
[56].
No que concerne à noção de estabelecimento, precisa Bob Wessels, que “Um estabelecimento requer qualquer local de operações onde o devedor realiza uma atividade económica não transitória com meios humanos”
[57], surgindo a definição de estabelecimento no Regulamento no art. 2.º, 10), privilegiando-se a estabilidade do exercício da atividade económica e o período temporal desse exercício.
Analisemos, por ser esta a matéria fulcral deste artigo, com mais detalhe, os processos principal e secundários de insolvência.
No que respeita à competência determina o art. 4.º, uma imposição de verificação de competência pelo órgão jurisdicional
[58]ao qual é apresentado o pedido de abertura de um processo de insolvência, não distinguindo aqui se está em causa um processo principal, secundário ou territorial, impondo-se pois que esse órgão verifique a sua competência independentemente de ter sido pedido qualquer um destes três tipos possíveis de processo
[59]. Nessa senda, cumpre ainda que, na própria decisão de abertura do processo, emitida por esse órgão jurisdicional, o mesmo justifique essa competência, elaborando uma decisão fundamentada com indicação dos fundamentos que determinam a competência do órgão, e, em especial, se a mesma decorre do art. 3.º, n.º 1, ou n.º 2, ou seja, se se trata de um processo principal ou secundário de insolvência
[60].
A propósito da previsão prevista neste art. 4.º, n.º 1, do Regulamento, referiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 24 de setembro de 2020, que: “Evidenciando o devedor ligações com mais do que um Estado-Membro, incumbe ao órgão jurisdicional ao qual é apresentado o pedido de abertura de um processo de insolvência verificar oficiosamente a sua competência (artigo 4.º, n.º 1, do Regulamento), designadamente, verificar se o devedor tem o centro dos interesses principais no Estado-Membro em cujo território é apresentado o pedido”
[61].
Havendo abertura do processo sem decisão desse órgão, nos termos permitidos pela lei nacional, essa tarefa pode ser confiada pelos Estados-Membros ao administrador da insolvência
[62], em que está pendente esse pedido de abertura, cabendo também ao mesmo fundamentar nos termos enunciados (art. 4.º, n.º 2).
São de realçar estas disposições do Regulamento que conferem confiança no que respeita à determinação da competência, tratando-se de mais um dos meios de evitar o
fórum shopping ilegítimo.
Estas decisões podem ser impugnadas através de recurso, do devedor ou de qualquer credor, ou por outros, para além destes, se a lei nacional o previr. Os fundamentos são, em regra, a violação da competência internacional, podendo também a impugnação fundar-se em fundamentos distintos, de acordo com a previsão da lei nacional, nos termos autorizados pelo art. 5.º, n.ºs 1 e 2, do Regulamento.
Prevê o art. 6.º uma exceção de competência do órgão jurisdicional competente e dos órgãos jurisdicionais do domicílio do requerido ou dos requeridos, caso a ação seja instaurada contra vários requeridos, para as ações diretamente decorrentes do processo de insolvência ou com este se encontrem estreitamente relacionadas, dando o n.º 1 do preceito, como exemplo destas últimas, as ações de impugnação pauliana.
No n.º 2, do preceito, consagra-se a possibilidade de o administrador da insolvência instaurar, nos casos em que uma das ações referidas no n.º 1 estiver relacionada com uma ação em matéria civil e comercial contra o mesmo requerido, ambas as ações nos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro do domicílio do requerido, ou, se a ação for instaurada contra vários requeridos, nos órgãos jurisdicionais do domicílio de algum deles, desde que os referidos órgãos sejam competentes ao abrigo do Regulamento n.º 1215/2012, tratando-se este Regulamento do conhecido Regulamento Bruxelas I Reformulado ou Bruxelas I Bis
[63].
Recordemos aqui que este Regulamento é relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. O seu âmbito de aplicação material é o de matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição
[64], e a regra geral do mesmo, relativamente à competência internacional, é a regra do domicílio, sempre que o réu reside num Estado-Membro
[65], que prevalece sobre o critério da nacionalidade. A determinação do domicílio é efetuada nos termos dos arts. 62.º e 63.º, do citado Regulamento.
No que concerne ao conceito de matéria civil e comercial, importa não esquecer que o TJUE tem defendido sempre um significado autónomo à expressão “matéria civil e comercial”. Salientamos este propósito o emblemático Acórdão deste Tribunal, C-29/76
[66], em que o Tribunal de Justiça da União Europeia considerou que para interpretar a “matéria civil e comercial” deve fazer-se referência não ao direito de qualquer dos Estados-membros em causa, mas, por um lado, aos objetivos e ao sistema da convenção
[67] e, por outro, aos princípios gerais que resultam do conjunto dos ordenamentos jurídicos nacionais
[68].
Voltando ao art. 6.º, n.º 2, do Regulamento relativo aos processos de insolvência, concretiza o mesmo que o primeiro paragrafo deste normativo aplica-se ao devedor desapossado, desde que lhe seja conferida capacidade pela lei nacional para intentar ações em nome da massa insolvente. Quanto aquele que podemos entender como o devedor desapossado, teremos de interpretar esse conceito, com referência à definição dada no art. 2.º, 3), de “devedor não desapossado”, entendendo que aquele será o devedor em relação ao qual tenha sido aberto um processo de insolvência que implique necessariamente a nomeação de um administrador da insolvência ou a transferência integral de todos os direitos e deveres de administração dos bens do devedor para o administrador da insolvência e em que, por conseguinte, o devedor perca o controlo dos seus bens e negócios, total ou parcialmente.
Ou seja, o que esta segunda parte do art. 6.º, n.º 2, permite, é que embora desapossado, o devedor, desde que tenha capacidade, à luz da lei nacional, para intentar ações em nome da massa insolvente, também pode intentar as referidas ações mencionadas no n.º 1, relacionadas com matéria civil e comercial.
Refere o n.º 2, aquilo que entende como ações relacionadas, esclarecendo que estas são “as ações ligadas entre si por um nexo tão estreito que haja interesse em que sejam instruídas e julgadas conjuntamente para evitar decisões que poderiam ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente.”
O Tribunal de Justiça já salientou, a propósito do normativo semelhante contido no art. 6.º, n.º 1
[69], do Regulamento 44/2001, de 16 de janeiro
[70], que antecedeu o citado Regulamento 1215/2012, que: “Para a aplicação do artigo 6.º, ponto 1, do Regulamento n.º 44/2001, há que verificar se existe entre os diferentes pedidos deduzidos por um mesmo requerente contra vários requeridos uma conexão tão estreita que haja interesse em julgá-los em conjunto para evitar soluções que pudessem ser incompatíveis se as causas fossem julgadas separadamente”
[71].
Esclareceu ainda, a propósito da referida conexão, que, para que as decisões possam ser consideradas incompatíveis na aceção do artigo 6.°, ponto 1, do Regulamento n.º 44/2001, não basta existir uma simples divergência na resolução da causa, sendo também necessário que essa divergência se inscreva no quadro de uma mesma situação de facto e de direito
[72].
No que respeita à lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos, tratando-se de processo principal, territorial ou secundário, a regra geral é a da lei do Estado-Membro em cujo território o processo é aberto, ou seja a lei nacional do Estado de abertura do processo, de acordo com a previsão dos arts. 7.º e 35.º do Regulamento, embora o Regulamento preveja várias derrogações a essa regra geral, nos arts. 11.º a 18.º, prevendo os arts. 8.º a 10.º normas respeitantes à não afetação de direitos dos credores e de terceiros com a abertura do processo de insolvência.
De salientar que esta regra geral facilita claramente a tarefa do Tribunal do Estado-Membro em que o processo é aberto, face à clara “facilidade” de aplicação da sua própria lei.
É essa lei que, de acordo com o esclarecido no art. 7.º, n.º 2, do Regulamento, determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência.
Salientou o TJUE, no Processo C-394/22, de 14 de novembro de 2024, ainda a propósito do Regulamento n.º 1346/2000, reiterando o referido em Jurisprudência anterior do mesmo tribunal, que: “Decorre de uma leitura conjugada dos artigos 3.º e 4.º do Regulamento n.º 1346/2000 que este regulamento visa, em princípio, obter uma correspondência entre os órgãos jurisdicionais que têm competência internacional e a lei aplicável aos processos de insolvência. Com efeito, exceto nos casos em que o referido regulamento preveja expressamente o contrário, a lei aplicável segue, nos termos do artigo 4.º daquele regulamento, a competência internacional determinada em aplicação do artigo 3.º do mesmo regulamento (v., neste sentido, Acórdão de 21 de novembro de 2019, CeDe Group, C-198/18, EU:C:2019:1001, n.º 30)”
[73].
Quanto aos processos secundários de insolvência em particular, de acordo com o considerando 23, do Regulamento, estes visam proteger a diversidade de interesses, permitindo-se que os mesmos corram paralelamente ao processo principal de insolvência, podendo instaurar-se um destes processos no Estado-Membro em que o devedor tenha o seu estabelecimento e limitando-se os seus efeitos aos ativos situados no território desse Estado-Membro.
Para apurar a definição de estabelecimento, como já referimos supra, importa atentar no referido no art. 2.º, 10), do regulamento
[74] [75].
Tratam-se estes processos secundários, nas palavras de Catarina Serra: “(de) uma forma de protecção dos interesses locais”
[76].
Os processos secundários encontram-se regulados nos arts. 34.º a 52.º, do Regulamento, para além das previsões já mencionadas no art. 3.º, do Regulamento.
Em traços gerais, regulam estes normativos, em primeiro lugar, as condições de abertura do processo de insolvência secundário: estando aberto um processo principal de insolvência por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, o órgão jurisdicional de outro Estado-Membro, que reconheça esse processo principal e que tenha competência por força do art. 3.º, n.º 2, do Regulamento, pode abrir um processo secundário de insolvência, cujos efeitos se limitaram aos bens do devedor situados no território do Estado-Membro em que o processo tiver sido aberto.
De salientar aqui a utilização da expressão “pode”, devendo esta ser interpretada não como uma obrigação de abertura de um processo secundário de insolvência, mas como uma possibilidade de abertura desse processo secundário, sendo que nem sempre a abertura desse processo de insolvência secundário protegerá, da melhor forma, os interesses, designadamente, dos credores
[77].
Determina ainda este artigo que se o processo principal de insolvência tiver exigido que o devedor seja insolvente, a insolvência desse devedor não pode ser reexaminada no Estado-Membro em que for aberto um processo secundário de insolvência, conferindo aqui estabilidade a essa declaração de insolvência do devedor efetuada no processo principal.
A propósito da interpretação de normativo semelhante no Regulamento 1346/2000, de 29 de Maio de 2000, relativo aos processos de insolvência (artigo 27.º
[78]) referiu o TJUE, no Processo C-116/11, de 22 de novembro de 2012, que: “quando retira as consequências da constatação da insolvência efetuada no quadro do processo principal, o órgão jurisdicional ao qual tenha sido requerida a abertura de um processo secundário deve ter em consideração os objetivos do referido processo principal e levar em conta a economia do regulamento, bem como os princípios em que o mesmo assenta”. Concluiu este Acórdão, em consequência, que: “o artigo 27.º do regulamento deve ser interpretado no sentido de que o órgão jurisdicional ao qual tenha sido requerida a abertura de um processo de insolvência secundário não pode examinar a insolvência do devedor contra o qual um processo principal foi aberto noutro Estado-Membro, mesmo quando o processo principal prossiga uma finalidade de proteção”
[79].
Ainda a propósito destas condições de abertura, importa igualmente referir o Acórdão do mesmo tribunal, de 04 de setembro de 2014 (Proc. C-327/13), que faz uma reflexão sobre os requisitos para a abertura do processo de insolvência secundário
[80].
Já no âmbito do novo Regulamento, concluiu o TJUE, em Acórdão de 18 de abril 2024, que: “O artigo 3.º, n.º 2, e o artigo 34.º do Regulamento 2015/848, devem ser interpretados no sentido de que: a massa dos bens situados no Estado de abertura do processo de insolvência secundário é unicamente constituída pelos bens que se encontram no território desse Estado‑Membro no momento da abertura desse processo”
[81].
Importa ainda referir, a este propósito, o estabelecido no arts. 19.º, n.º 2, e 20.º, n.º 2, do Regulamento quanto ao reconhecimento de um processo principal, referindo o primeiro normativo mencionado que esse reconhecimento não obsta à abertura de um processo de insolvência secundário, mencionando-se ainda no citado n.º 2 do art. 20.º, que os efeitos desse processo secundário não podem ser impugnados nos outros Estados-Membros e que qualquer limitação dos direitos dos credores só é oponível, relativamente aos bens situados no território de outro Estado-Membro, aos credores que tiverem dado o seu consentimento.
Quanto à lei aplicável, já referimos acima, que também aqui é a lei aplicável ao Estado-Membro em cujo território é aberto o processo secundário de insolvência, nos termos referidos pelo art. 35.º do Regulamento, apenas se acrescentando uma referência ao art. 276.º, do nosso diploma regulador da insolvência (CIRE), que também menciona que: “Na falta de disposição em contrário, o processo de insolvência e os respectivos efeitos regem-se pelo direito do Estado em que o processo tenha sido instaurado.”
A propósito desta questão da lei aplicável, concluiu o já citado Acórdão do TJUE, de 18 de abril de 2024, que: “Os artigos 7.º e 35.º do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, em conjugação com o considerando 72 deste regulamento, devem ser interpretados no sentido de que: a lei do Estado de abertura do processo de insolvência secundário apenas se aplica à situação dos créditos constituídos após a abertura desse processo, e não à situação dos créditos constituídos entre a abertura do processo de insolvência principal e a abertura do processo de insolvência secundário”
[82].
Confere o art. 36.º, do Regulamento, uma possibilidade de evitar a abertura de um processo secundário de insolvência, mediante a prestação de uma garantia unilateral por parte do administrador da insolvência do processo principal de insolvência, garantia que consiste num garante por parte desse administrador de respeitar os direitos de distribuição e os privilégios creditórios consignados na lei nacional que assistiram aos credores do processo secundário que se pretende evitar, sendo a prestação dessa garantia sujeita a vários formalismos previstos no mencionado normativo, designadamente a aprovação pelos credores locais (n.º 5).
O processo secundário de insolvência não é aberto, considerando a prestação desta garantia, se o órgão jurisdicional a quem é apresentado o pedido de abertura de um processo secundário de insolvência, considerar que a mesma protege adequadamente os interesses coletivos dos credores locais, tratando-se esta de uma salvaguarda importante, consagrada no Regulamento, de forma a evitar os eventuais aspetos negativos decorrentes da abertura de um processo de insolvência secundário, tal como próprio Regulamento admite. Refere o Considerando 41, como sendo esta uma das situações específicas em que o órgão jurisdicional, a quem foi pedida a abertura de um processo secundário de insolvência, pode adiar ou indeferir o pedido de abertura de tal processo, uma vez que, nas palavras do Regulamento, no referido Considerando: “Os processos secundários de insolvência podem comprometer a administração eficaz da massa insolvente”.
Outras dessas “situações específicas”, é a possibilidade de o órgão jurisdicional suspender temporariamente a abertura do processo secundário de insolvência, nas condições estabelecidas no art. 38.º, n.º 3, podendo, todavia, ser ordenadas, pelo referido órgão jurisdicional, medidas cautelares para proteger os credores locais e medidas para proteger os interesses dos mesmos credores, durante o período da suspensão, salvaguardando, no entanto, o regulamento a incompatibilidade com as regras nacionais de processo civil
[83].
Quanto à legitimidade para requerer a abertura de um processo secundário de insolvência, a mesma é detida pelo administrador da insolvência, do processo principal da insolvência, embora essa legitimidade seja alargada a qualquer pessoa ou autoridade habilitada a requerer a abertura de um processo de insolvência pela lei do Estado-Membro em cujo território seja requerida a abertura do processo secundário de insolvência, tendo aqui o Regulamento em consideração a lei interna dos Estados-Membros, sendo que em Portugal teremos de ter em consideração que têm legitimidade para requerer a abertura do processo de insolvência tanto o devedor, face ao disposto nos arts. 18.º e 19.º do CIRE, como os legitimados identificados no art. 20.º, do mesmo diploma legal
[84].
Salvaguarda o art. 38.º, n.º 1, o direito de audição, tanto do administrador da insolvência como do devedor não desapossado, do processo principal de insolvência, privilegiando a posição dos mesmos no processo de insolvência.
Pode, nomeadamente, esse administrador da insolvência, nomeado no processo principal, requerer, ao órgão jurisdicional a quem é pedida a abertura do processo secundário de insolvência, que abra um tipo de processo diferente, dos enumerados no anexo A, daquele que foi pedido, ou pedir a convolação do processo secundário já aberto, com duas condições: o preenchimento das condições para a abertura deste processo nos termos da lei nacional e que o tipo de processo seja o mais adequado no que respeita aos interesses dos credores locais e à coerência entre o processo principal e os processos secundários de insolvência
[85].
Admite assim o Regulamento, e bem, em nosso entender, que um dos processos, pelo menos inicialmente, possa ser de liquidação e o outro de recuperação.
É admissível recurso judicial da decisão de abertura de processos secundários de insolvência, tendo legitimidade para tal o administrador da insolvência do processo principal de insolvência, junto dos órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que tiver sido aberto o processo secundário de insolvência, e com o fundamento no incumprimento das condições e dos requisitos no art. 38.º, respeitantes à decisão de abertura do processo secundário de insolvência
[86].
É prevista também, nos termos do art. 40.º, do Regulamento, a possibilidade de exigir ao requerente um adiantamento para custas ou uma garantia de montante adequado, nas condições estabelecidos no citado normativo legal.
De seguida, prevê o Regulamento uma série de disposições respeitantes à cooperação e comunicação: entre administradores da insolvência, órgãos jurisdicionais, administradores e órgãos jurisdicionais e o suporte dos custos respeitantes a essa comunicação e cooperação (arts. 41.º a 44.º), referindo as linhas gerais destes normativos os Considerandos 49 e 50 do Regulamento, sendo de questionar, atualmente, se as mesmas têm sido eficazmente aplicadas.
Quanto ao exercício dos direitos dos credores prevê o art. 45.º um exercício alargado: o crédito de qualquer credor pode ser reclamado tanto no processo principal como no processo secundário de insolvência (n.º 1), referindo-se ainda a possibilidade de os administradores da insolvência
[87] também o fazerem, reclamando, nos outros processos, os créditos já reclamados nos processos para os quais sejam nomeados, com fundamento na utilidade para os credores no processo para o qual sejam nomeados, consagrando, no entanto, este normativo legal, a possibilidade de os credores se oporem a tal reclamação ou retirarem a reclamação dos seus créditos, se tal for previsto pela lei aplicável (n.º 2). Salvaguarda-se assim a posição não só dos credores que pretendam reclamar créditos nos dois processos, mas também dos demais credores, salientando-se ainda o “papel” dos administradores da insolvência nomeados, quer no processo principal, quer no processo secundário.
De recordar aqui que, de acordo com a definição de administrador de insolvência, consagrada no art. 2º, 5), do Regulamento: “Administrador da insolvência é qualquer pessoa ou órgão, inclusive a título provisório, cuja função seja, designadamente, “ii) verificar e admitir créditos reclamados no processo de insolvência, iii) representar o interesse coletivo dos credores,” sendo no âmbito destas funções que se alcança esta previsão do n.º 2, do art. 45.º.
A mesma afirmação vale para a previsão consagrada no art. 45.º, n.º 3, do Regulamento que consagra a possibilidade do administrador da insolvência, tanto do processo principal, como do processo secundário, de participar, na mesma qualidade que qualquer outro credor, noutro processo, inclusivamente dando-lhe a possibilidade de participar na assembleia de credores.
Os arts. 46.º e 47.º, são previsões que salientam o papel central do administrador de insolvência do processo principal, reconhecendo a possibilidade de o mesmo requerer, ao órgão jurisdicional que tiver aberto o processo secundário de insolvência, a suspensão total ou parcial das operações de liquidação de bens no processo secundário de insolvência e a habilitação daquele para propor planos de recuperação no mesmo processo secundário, nos termos estabelecidos no art. 47.º.
Quanto ao impacto do encerramento do processo secundário de insolvência, refere o art. 48.º, n.º 1, que, sem prejuízo da previsão do art. 49.º, que esse encerramento não prejudica o prosseguimento dos outros processos que ainda estejam a correr termos contra o devedor, dispondo o n.º 2, do mesmo preceito, no que respeita à dissolução da pessoa coletiva ou sociedade em causa.
No artigo 49.º, resolve-se uma questão prática, consagrando a possibilidade de existir um ativo remanescente, após pagamento de todos os créditos verificados no processo secundário, determinando-se que esse ativo seja, sem demora, transferido para o administrador da insolvência do processo principal, acautelando-se a posição dos credores desse processo principal.
O art. 50.º, determina a aplicação de vários preceitos do Regulamento, na situação de abertura posterior de um processo principal de insolvência ao processo aberto em primeiro lugar, na medida em que a situação desse processo o permita.
Por fim, no art. 52.º, uma disposição própria respeitante a medidas cautelares, que prevê a possibilidade, mesmo ainda sem que esteja aberto um processo principal de insolvência num Estado-Membro, que um administrador provisório, nomeado por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro, competente por força do disposto no art. 3.º, n.º 1, do Regulamento, esteja habilitado a requerer (com a finalidade de assegurar a conservação dos bens do devedor), medidas de conservação ou de proteção dos bens desse mesmo devedor, previstas na lei desse outro Estado-Membro onde se encontram esses bens, delimitadas ao período compreendido entre o pedido de abertura de um processo de insolvência e a decisão da abertura, salientando-se esta cautela do Regulamento.
Utiliza o Regulamento, no Considerando 40, relativamente à necessidade da existência destes processos secundários, a argumentação de que se impõe a proteção dos interesses locais, mas também que cumpre considerar as diferentes finalidades dos mesmos, a saber: os casos em que a massa insolvente do devedor é demasiado complexa para ser administrada por um unidade; os casos em que as diferenças entre os sistemas jurídicos sejam tão substanciais que possam surgir dificuldades decorrentes da extensão dos efeitos produzidos pela lei do Estado de abertura do processo a outros Estados-Membros que se encontrem situados os bens.
Consagra assim o Regulamento, como assinala Luís de Lima Pinheiro, um sistema misto de pendor universalista
[88], encontrando este sistema explicação, como encurta Catarina Serra, citando Bob Wessels, na palavra diversidade.
[89]
Também no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17 de março de 2020, se assinala que: “sem prejuízo da universalidade/unidade constituir a matriz de ambos os Regulamentos (…) não está consagrado um modelo “puro”, isto é tal princípio matricial é mitigado pelos princípios da territorialidade/pluridade”.
5. O Direito Português
No que respeita ao direito português, importa ter em consideração o disposto nos arts. 294.º a 296.º, do C.I.R.E., inseridos no Capítulo III, que trata do processo particular de insolvência, do Título XV do Código, com a epígrafe “Normas de conflitos”
[90], enunciando o art. 294.º, do CIRE, os pressupostos daquilo que chama um processo particular de insolvência, salvaguardando, no seu n.º 3, que sempre que seja aplicável o Regulamento, o referido processo particular é designado por processo territorial de insolvência, até que seja aberto um processo principal, caso em que passa a ser designado por processo secundário.
De salientar que estão em causa aqui normas de conflitos
[91] com um caráter mais abrangente, uma vez que se aplicam a processos de insolvência internacional, incluindo processos não abrangidos pelo Regulamento em análise, embora o art. 275.º esclareça que prevalece o Regulamento em todos os processos em que o mesmo é aplicável e que as disposições do título em referência são aplicáveis apenas na medida em que não contrariem, designadamente, o Regulamento (n.ºs 1 e 2).
[92][93]
De assinalar a revogação dos arts. 271.º a 274.º, do CIRE, respeitantes à execução do Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio, pelo Decreto-Lei 79/2017, de 30 de junho
[94], tendo sido através das alterações previstas neste diploma que, na palavras do legislador, no seu preambulo, “foi aproveitado o ensejo para proceder à adaptação ao Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência.”
Vejamos então, em traços muito gerais, o referido nos citados arts. 294.º a 296.º, do CIRE.
Assinala, desde logo, o art. 294.º, n.º 1, do CIRE, que não tendo o devedor em Portugal a sua sede ou domicílio, nem o seu CIP, o processo de insolvência abrange apenas os bens situados em território português. Está em causa a abertura de um processo de insolvência com efeitos apenas relativamente a esses bens, esclarecendo o n.º 3 que, sendo aplicável o Regulamento, esse processo particular é designado de processo territorial de insolvência, até que seja aberto o processo principal e, uma vez aberto este, passa a ser designado de processo secundário de insolvência.
Tal como assinalam João Labareda e Carvalho Fernandes, neste n.º 1 não está em causa uma norma de conflitos, mas sim uma regulação direta da matéria
[95].
Quanto à situação prevista no n.º 2, o caso de o devedor não ter estabelecimento em Portugal, tem sido defendido que esta extensão de competência vale apenas para os casos em que ao processo de insolvência internacional não se aplique o Regulamento
[96].
Quanto às especialidades deste processo particular, as mesmas estão previstas no art. 295.º, do CIRE, impondo-se ter em consideração que, tratando-se de um processo secundário de insolvência, haverá ainda de ter em consideração o disposto no art. 296.º.
As referidas especialidades reportam-se à homologação do plano de insolvência ou de pagamentos, à inexistência de incidente de qualificação de insolvência e consequentemente de abertura do mesmo e à inaplicabilidade das disposições respeitantes ao incidente de exoneração do passivo restante.
Citamos, a este propósito, os mesmos autores supra referidos que, de forma clara, mencionam que: “O grande corolário que se extrai deste art. 295.º e se confirma no seguinte, quanto ao processo secundário, é o de que, embora subordinado às especialidades do regime que se indicam, o processo particular segue sempre, genericamente, o modelo comum traçado no Código”
[97].
No que concerne ao art. 296.º, do CIRE, trata o mesmo do processo secundário de insolvência, que, na designação do código, é um dos possíveis processos particulares de insolvência, referindo este normativo a possibilidade de instauração de um processo secundário de insolvência, mesmo após o reconhecimento de um processo principal de insolvência estrangeiro (n.º 1); a salvaguarda dos efeitos dos processos de insolvência abertos após a abertura do processo principal e que, por virtude dessa abertura, sejam encerrados, determinando a aplicabilidade do disposto no n.º 2, do art. 233.º, do CIRE e extinção da instância de todos os processos que corram por apenso ao processo de insolvência (n.ºs 2 e 3); a legitimidade do administrador da insolvência estrangeiro para requerer a instauração do processo secundário e para participar na assembleia de credores e apresentar plano de insolvência (n.ºs 4 e 7); a dispensa de comprovação da situação de insolvência neste processo secundário (n.º 5); a imposição de uma obrigação do administrador da insolvência, neste processo de insolvência secundário, de comunicar, de forma pronta, ao referido administrador estrangeiro, todas as circunstâncias relevantes para o desenvolvimento do processo estrangeiro (n..º 6). E, por fim, neste artigo, no seu n.º 8, a resolução de uma questão prática, determinando-se no mesmo que, após a satisfação integral dos créditos sobre a insolvência, a importância remanescente é remetida ao administrador do processo principal, tal como já vimos determinar-se no Regulamento.
6. Conclusões
Concluímos dizendo que este Regulamento (UE) 2015/848, relativo aos processos de insolvência alterou o anterior Regulamento de forma relevante, resolvendo algumas das dificuldades que o anterior Regulamento suscitava e clarificando alguns conceitos importantes, nomeadamente, o de Centro dos Interesses Principais do Devedor (CIP) que, no anterior Regulamento, tal como referimos supra, apenas tinha previsão no Considerando 13, dando igualmente outra definição de estabelecimento, privilegiando o exercício temporal, com alguma duração, de uma atividade estável por parte do devedor, visando claramente combater o
forum shopping ilícito.
[98]
De salientar, relativamente ao CIP e à definição do mesmo, que este Regulamento reformulado claramente veio incorporar as conclusões da Jurisprudência que entretanto foi proferida pelo Tribunal de Justiça da União Europeia sobre a matéria, continuando, no entanto, a ser um conceito controverso e, nalguns casos, de difícil aplicação.
No que concerne ao Regulamento reformulado em si, o mesmo não resolveu todas as questões, continuando a surgir algumas temáticas pertinentes resultantes da interpretação do Regulamento, nomeadamente, as de saber se a decisão em que o juiz determina a citação do devedor é ou não uma decisão de abertura do processo, tal como chama a atenção Alexandre de Soveral Martins
[99], ou a exigência de que esteja em causa um processo coletivo de insolvência, constituindo esta exigência, nas palavras acutilantes de Catarina Serra, “um vestígio de uma concepção obsoleta e excessivamente redutora do processo de insolvência e dos processos análogos.”
[100], estando igualmente sempre na linha de discussão o referido CIP e a questão da necessidade de uma maior harmonização no que respeita aos regimes dos vários Estados-Membros nestas matérias da insolvência, questão esta que está longe de estar resolvida.
De salientar, no entanto, que um dos aspetos, largamente positivos, deste Regulamento reformulado é o reforço que o mesmo dá à recuperação ou restruturação dos devedores, designadamente ao nível dos processos secundários. De destacar também a criação de registos de insolvências e a regulação da insolvência no contexto de grupos de sociedades, ainda que com os inerentes problemas de aplicação na prática no que respeita a estas matérias.
Certamente um caminho muito positivo está feito, nestes 10 anos de Regulamento reformulado, impondo-se, no entanto, prosseguir este caminho, nomeadamente, com um estudo dos aspetos que ainda cumpre aperfeiçoar, acompanhando as necessidades que vão surgindo com a aplicação do regulamento, sendo que, no futuro, essas necessidades poderão justificar uma nova reformulação do regulamento.
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Jurisprudência
Tribunal de Justiça da União Europeia
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C-29/76, de 14.10.1976 - LTU Lufttansportunternehmen GmbH &Co Kg/Eurocontrol
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C-814/79, de 16.12.1980 - Países Baixos/Rüffer
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C-172/91, de 21.04.1993 - Sonntag/Waidmann
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C-341/04, de 02.05.2006 - Eurofood IFSC Ltd.
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C-444/07, de 21.01.2010 - MG Probud Gdynia sp. z o.o.
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C–396/09, de 20.10.2011 - Interedil Srl/Fallimento Interedil, Srl e Intesa Gestione Crediti, SpA.
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C–112/10, de 17.11.2011 - Procureur-generaal bij het hof van beroep te Antwerpen/Zaza Retail BV.
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C-116/11, de 22.11.2012 - Bank Handlowy w Warszawie SA e PPHU “ADAX”, Ryszard Adamiak/Christianapol sp. z o.o.
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C-645/11, de 11.04.2013 - Land Berlin/Ellen Mirjam Sapir, Michael J. Busse, Mirjam M. Birgansky, Gideon Rumney, Benjamin Ben-Zadok, Hedda Brown
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C–327/13, de 04.09.2014 - Burgo Group SpA/Illochroma SA and Jérôme Theetten
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, C–649/13, de 11.06.2015 – Comité d’entreprise de Nortel Networks SA e o./Cosme Rogeau
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C–253/19, de 16.07.2020 - MH, NI/OJ, Novo Banco, S.A.
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C-723/20, de 24.03.2022 - Galapagos BidCo. Sàrl/ DE, na sua qualidade de administrador da insolvência de Galapagos SA, Hauck Aufhäuser Fund Services SA, Prime Capital SA, O.
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Procs. C–765/22 e C–772/22, de 18.04.2024 – Luís Carlos, Severino, Isidora, Angélica, Paula, Luís Francisco, Delfina/Air Berlin Luftverkehrs KG, Sucursal en España (C‑765/22), e Victoriano, Bernabé,Jacinta, Sandra, Patricia, Juan Antonio, Verónica/Air Berlin Luftverkehrs KG, Sucursal en España, Air Berlin PLC & Co. Luftverkehrs KG (C‑772/22)
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C–501/23, de 19.09.2024 – DL/Land Berlin
Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, Proc. C–394/22, de 14.11.2024 –
Oilchart International NV/ O.W. Bunker (Netherlands) BV, ING Bank NV
Os Acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia
supra citados, encontram-se todos disponíveis em:
https://curia.europa.eu/jcms/jcms/j_6/pt/. (08.05.2025)
Tribunais Superiores Portugueses
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. n.º 13004/15.0T8LSB-A.L1-2, de 16.06.2016 (Maria João Mouro)
Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, Proc. n.º 1122/18.7T8OLH-E.E1, de 24.09.2020, (Francisco Matos)
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. n.º 3413/17.5TBLRA-B.C1, de 17.03.2020 (Barateiro Martins)
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Proc. n.º 2615/22.7T8CBR.C1, de 13.12.2022 (Emídio Francisco Santos)
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. n.º 2615/21.4T8PDL.L1-1, de 02.05.2023 (Amélia Sofia Rebelo)
Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Proc. n.º 920/24.7T8GMR.G1, de 02.05.2024 (Gonçalo Oliveira Magalhães)
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Proc. n.º 357/25.0T8BRR.L1-1, de 08.04.2025 (Amélia Sofia Rebelo)
Os Acórdãos dos Tribunais superiores citados estão disponíveis em
www.dgsi.pt (08.05.2025)
(texto submetido a 12.05.2025 e aceite para publicação a 15.06.2025)
[1] Estando aqui em causa relações com ordens jurídicas de dois ou mais Estados.
[2] Como salienta Luís de Lima Pinheiro “Do caráter transnacional da insolvência decorre todo um conjunto de questões específicas que importa resolver”. Dá o referido autor como exemplos, as questões de saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a declaração de insolvência, em caso afirmativo, o problema da determinação da lei ou leis nacionais aplicáveis à insolvência; a questão de saber se a declaração de insolvência proferida no estrangeiro abrange os bens situados em Portugal, questão ligada com os efeitos que a decisão de insolvência proferida em Portugal produz noutros Estados e os efeitos que a decisão proferida no estrangeiro produz em Portugal, in “O Regulamento Comunitário sobre Insolvência – uma introdução”,
Revista da Ordem dos Advogados, Ano 66, 2006, Vol. III, Dezembro 2006, in
https://portal.oa.pt/publicacoes/revista-da-ordem-dos-advogados/ano-2006/ano-66-vol-iii-dez-2006/doutrina/luis-de-lima-pinheiro-o-regulamento-comunitario-sobre-insolvencia-uma-introducao/, pp. 1 e 2 (08.05.2025).
[3] Objeto de publicação no Jornal Oficial da União Europeia, 141, de 05.06.2015, pp. 19 a 72.
[4] Doravante designado por C.I.R.E.
[6] Publicado no Jornal Oficial da União Europeia, 160, de 30.06.2000, pp. 1 a 18.
[7] Por Direito Internacional Privado deve entender-se nas palavras de Luís de Lima Pinheiro: “não só o Direito de Conflitos – que visa determinar o Direito aplicável a situações transnacionais (i.e., com contactos relevantes com mais de um Estado soberano) – mas também o Direito da Competência Internacional, que se ocupa da determinação das jurisdições competentes para dirimirem os litígios emergentes de situações transnacionais, e o Direito de Reconhecimento, que diz principalmente respeito aos efeitos que decisões estrangeiras podem produzir na nossa ordem jurídica”, “Um Direito Internacional Privado Comum?”, in
https://www.institutoeuropeu.eu/images/stories/Um_Direito_Internacional_Privado_Comum.pdf (08.05.2025).
[8] Art. 47.º, do Regulamento.
[9] Primeira parte do art. 43.º.
[10] Cf. Considerando 33.
[11] Cf. Considerando 32.
[13] Cf. art. 1.º, n.º 2 que excluía a aplicação do Regulamento a empresas de seguros e instituições de crédito, a empresas de investimento que prestassem serviços que implicassem a detenção de fundos ou valores mobiliários de terceiros e a organismos de investimento coletivo.
[16] Este Regulamento foi alterado pelo Regulamento (UE) 2017/353, do Parlamento Europeu e do Conselho de 15 de fevereiro de 2017, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, 57, de 03.03.2017, p. 19, pelo Regulamento (UE) 2018/946 do Parlamento Europeu e do Conselho de 04 de julho de 2018, 171, de 06.07.2018, p. 1, pelo Regulamento (UE) 2021/2260 do Parlamento Europeu e do Conselho, 455, de 20.12.2021, p. 4. Foi ainda retificado, constando essa retificação do Jornal Oficial da União Europeia, 349, de 21.12.2016, p. 9.
[17] Importa também ter em consideração o Regulamento de Execução (UE) 2017/1105 da Comissão Europeia, de 12 de junho de 2017, que estabelece os formulários referidos no Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho relativo a processos de insolvência, publicado no Jornal Oficial da União Europeia, 160, de 22.06.2017, pp. 1 a 25.
[18] Publicado no Jornal Oficial da União Europeia, 202, de 07.06.2016, pp. 47 a 199.
[19] Cf. igualmente referência feita na parte final do Regulamento.
[21] Considerando 88 do Regulamento (UE) 2020/848.
[22] Processos relativos a empresas de seguros, instituições de crédito, empresas de investimento e outras empresas e instituições, na medida em que estas sejam abrangidas pela Diretiva 2001/24/CE e organismos de investimento coletivo.
[23] Cf. a título de exemplo, a Diretiva de Proteção dos Trabalhadores em caso de insolvência do empregador – Diretiva 2008/94/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 11.10.2008, publicada no Jornal Oficial da União Europeia 2002, L 168, p. 43.
[24] Crítica relativamente a esta exigência de que se tratem de processos coletivos, cf. a menção de Catarina Serra em: ““Abrindo” o Regulamento europeu sobre insolvência transfronteiriça – Algumas questões sobre o âmbito de aplicação do Regulamento na perspetiva do Direito português”,
Para Jorge Leite, Estudos Jurídicos, Coordenação João Reis, Leal Amado, Liberal Fernandes, Regina Redinha, 1ª edição, Coimbra Editora, Outubro 2014, p. 734.
[25] Não abrangendo processos em que esteja em causa um único credor.
[26] Estabelecendo este a aplicabilidade do Regulamento independentemente de o devedor ser uma pessoa singular ou coletiva, um comerciante ou um particular, embora cabendo, no entanto, à lei de abertura do processo determinar os devedores que podem ser objeto de um processo de insolvência em razão da qualidade dos mesmos, de acordo com o disposto no art. 7.º, n.º 2, al. a), do Regulamento.
[27] Tendo um âmbito de aplicação muito mais vasto do que o anterior Regulamento 1346/2000.
[28] No que respeita à questão da recuperação do devedor cf. ainda o referido no Considerando 17, do Regulamento.
[30] Um dos grupos de problemas identificados no Relatório de avaliação de impacto que acompanhou a proposta de revisão do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, de 19 de maio, foi precisamente a: “ausência de definição de centro dos interesses principais e consequentes dificuldades para determinar qual o órgão jurisdicional competente para abrir o processo de insolvência”, in
https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=SWD:2012:0417:FIN(08.05.2025).
[31] Aprovado pela Lei 8/2018, de 02 de março, publicada no Diário da República n.º 44/2018, Série I de 02.03.2018.
[32] Maria do Rosário Epifânio,
Manual de Direito da Insolvência, 8ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, p. 606.
[33] “Insolvências transfronteiriças: o Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20/05/2015”,
Atas das V Jornadas de Reestruturações e Insolvências da Uría Menéndez-Proença de Carvalho, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2020, pp. 109 e ss.
[34] “O Regulamento (UE) 2015/848 relativo aos processos de insolvência”,
Estudos de Direito da Insolvência, 2ª edição, Coimbra, Almedina, 2018, p. 55.
[36] No que respeita ao reconhecimento importa ainda ter em consideração o disposto no art. 33.º, do Regulamento.
[38] Como refere Nerea Magallon Elósegui “O novo texto incorpora novidades que nos vão ajudar a delimitar o centro de interesses do devedor quando desenvolve a sua atividade económica e/ou possui bens ativos em vários Estados” (tradução livre) in “El centro de interesses del devedor persona física en el Reglamento Europeo 848/2015 sobre procedimientos de insolvência”,
Cadernos de Derecho Transnacional (Marzo 2021), Vol. 13, N.º 1, p. 975, in
https://e-revistas.uc3m.es/index.php/CDT/article/view/6006/4380. (08.05.2025).
[47] Obra citada (nota 32), p. 608.
[48] Cf. ainda o Considerando 29, do Regulamento.
[49] Sobre a esta matéria do
forum shopping, cf. o artigo de Patrícia Alves, “Forum Shopping no Direito da Insolvência – Em especial no campo da responsabilidade dos gerentes ou administradores das insolvências comerciais pela situação de insolvência”,
Revista Julgar, 2017, 31, Lisboa, Almedina, pp. 135 a 158.
[51] Recorde-se que o “Momento de abertura do processo” é objeto de definição do art. 2.º, 8), do Regulamento.
[52] Em virtude das condições estabelecidas na lei do Estado-Membro em cujo território se situa o CIP do devedor.
[53] A saber: um credor cujo crédito decorra da exploração, ou esteja relacionado com a exploração de um estabelecimento situado no território de um Estado-Membro em cujo território se situa o centro dos interesses principais do devedor, ou uma autoridade pública que, nos termos da lei do Estado-Membro em cujo território o estabelecimento está situado, tenha o direito de requerer a abertura do processo de insolvência.
[54] Com referência a processo territorial e à expressão utilizada no preceito “condições estabelecidas” e à noção de “credor”, cf. o decidido no Acórdão do TJUE, C–112/10, Procureur-generaal bij het hof van beroep te Antwerpen/Zaza Retail BV, de 17 de novembro de 2011, in
https://curia.europa.eu/jcms/jcms/j_6/pt/.
(08.05.2025).
[55] Quanto à forma de determinação dos bens do devedor que fazem parte da esfera dos efeitos de um processo secundário de insolvência, cf. com interesse, ainda que à luz do anterior Regulamento, o decidido no Acórdão do TJUE, Proc. C-649/13, de 11 de junho de 2015, Comité d’Entreprise de Nortel Networks SA e o./Cosme Rogeau, in
https://curia.europa.eu/jcms/jcms/j_6/pt/ (08.05.2025).
[56] “Dos elementos constantes destes autos retira-se – face ao teor da certidão de fls. 29 e seguintes – que, no processo de insolvência de pessoa colectiva intentado pelas requerentes em 8-5-2005, em 17-7-2015 foi dado conhecimento e demonstrado que fora instaurado um processo (principal) no país da União onde se localiza o centro dos interesses principais da sociedade que em Portugal tem a sucursal. Neste contexto,
o processo aberto em Portugal, haveria que prosseguir como secundário, sendo, se necessário, convolado para tal”. Maria João Mouro, in
www.dgsi.pt (08.05.2025).
[58] No art. 2.º, n.º 6, o Regulamento define o que é para efeitos do Regulamento um órgão jurisdicional, esclarecendo o Considerando 20, que: “Os processos de insolvência não implicam necessariamente a intervenção de uma autoridade judicial”, daí a interpretação de “órgão jurisdicional” em algumas disposições do regulamento “em sentido lato e abranger pessoas ou órgãos habilitados pela lei nacional a abrir processos de insolvência.”
[59] Alexandre Soveral Martins chama a atenção, a propósito deste normativo, que em alguns Estados-Membros o processo de insolvência é aberto sem um controlo da verificação dos devidos pressupostos, o que levantaria problemas sérios perante o teor do art. 19.º do Regulamento e facilitaria o
forum shopping (obra citada, nota 34, p. 75).
[60] De salientar, a propósito deste artigo, o referido no Considerando 32, do Regulamento, relativamente à possibilidade de o órgão jurisdicional, em caso de dúvidas acerca da sua competência, requerer ao devedor a apresentação de elementos de prova adicionais justificativos das suas alegações e, se a lei aplicável ao processo de insolvência o permitir, dar aos credores do devedor a oportunidade de apresentarem as suas observações relativamente à questão da competência.
[61] Francisco Matos, in
www.dgsi.pt (08.05.2025). Acrescenta-se ainda neste Acórdão que: “Assim, dir-se-á, em primeiro lugar, que apresentado nos tribunais portugueses um pedido de abertura de um processo de insolvência, nas referidas circunstâncias, a averiguação sobre se o devedor tem o centro dos interesses principais noutro Estado-Membro da União, que não Portugal, é prévia à declaração de insolvência (é uma condição ou pressuposto da competência para a abertura do processo) e não posterior a esta.”
[62] Na definição do art. 2.º, n.º 5, do Regulamento.
[63] Publicado no Jornal Oficial da União Europeia, n.º 351, de 20.12.2021, pp. 1 a 41.
[67] Reportando-se à Convenção de 27 de outubro de 1968 relativa à Competência Jurisdicional e à Execução de Decisões em Matéria Civil e Comercial.
[69] “Uma pessoa com domicílio no território de um Estado-Membro pode também ser demandada:
1. Se houver vários requeridos, perante o tribunal do domicílio de qualquer um deles, desde que os pedidos estejam ligados entre si por um nexo tão estreito que haja interesse em que sejam instruídos e julgados simultaneamente para evitar soluções que poderiam ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente.”
[70] Jornal oficial, n.º 12, de 16.01.2001, pp. 1 a 23.
[72] Cf. Acórdão mencionado na nota 71 e jurisprudência no mesmo citada.
[74] Estabelecimento para efeitos do Regulamento é “o local de atividade em que o devedor exerça, ou tenha exercido, de forma estável, uma atividade económica com recurso a meios humanos e a bens materiais, nos três meses anteriores à apresentação do pedido de abertura do processo principal de insolvência.”
[75] No que respeita ao conceito de estabelecimento concluiu o TJUE, no Acórdão datado de 19 de setembro de 2024, Processo n.º 501/23, DL/Land Berlin, que: “O artigo 3.º, n.º 1, terceiro parágrafo, do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, deve ser interpretado no sentido de que: o conceito de “local de atividade principal” de uma pessoa singular que exerça uma atividade comercial ou profissional independente, na aceção desta disposição, não corresponde ao conceito de “[e]stabelecimento”, definido no artigo 2.º, ponto 10, deste regulamento.”, in
https://curia.europa.eu/jcms/jcms/j_6/pt/ (08.05.2025).
[76] Cf. obra citada (nota 29), p. 1277.
[77] Catarina Serra considera que: “… a abertura de processos secundários pode pôr em causa uma administração eficiente do património do devedor: o administrador da insolvência do processo principal perde o controlo sobre os bens que estejam localizados noutro (s) Estado (s)-membro(s), o que, por seu turno, dificulta a venda da empresa ou dos bens como um todo.”, em
Lições de Direito da Insolvência, 3ª Edição, Coimbra, Almedina, 2025, pp. 837 e 838.
[78] “O processo referido no n.º 1 do artigo 3.º que for aberto por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro e reconhecido noutro Estado-Membro (processo principal) permite abrir, neste outro Estado-Membro, em cujo território um órgão jurisdicional seja competente por força do n.º 2 do artigo 3.º, um processo de insolvência secundário sem que a insolvência do devedor seja examinada neste outro Estado. Este processo deve ser um dos processos referidos no anexo B, ficando os seus efeitos limitados aos bens do devedor situados no território desse outro Estado-Membro”.
[80] Acórdão C–327/13 de 04 de setembro de 2014, Burgo Group SpA/ Illochroma SA and Jérôme Theetten, in
https://curia.europa.eu/jcms/jcms/j_6/pt/(08.05.2025), mencionando-se no mesmo, com interesse sobre esta matéria, que: “O regulamento deve ser interpretado no sentido de que, quando o processo principal é um processo de liquidação, a tomada em consideração de critérios de oportunidade pelo órgão jurisdicional que conhece do pedido de abertura de um processo secundário insere-se no âmbito do direito nacional do Estado-Membro em cujo território é requerida a abertura desse processo. Todavia, quando fixam os requisitos para a abertura de um processo desse tipo, os Estados-Membros devem respeitar o direito da União e, nomeadamente, os seus princípios gerais, bem como as disposições do regulamento”.
[81] Procs. C-765/22 e C-772/22 – Luis Carlos, Severino, Isidora, Angélica, Paula, Luis Francisco, Delfina/Air Berlin Luftverkehrs KG, Sucursal en España (C‑765/22), e Victoriano, Bernabé, Jacinta, Sandra, Patricia, Juan Antonio, Verónica/Air Berlin Luftverkehrs KG, Sucursal en España, Air Berlin PLC & Co. Luftverkehrs KG (C‑772/22), in
https://curia.europa.eu/jcms/jcms/j_6/pt/ (08.05.2025).
[82] Acórdão citado na nota 81 (08.05.2025).
[83] Cf. ainda Considerando 45.
[84] Cf. arts. 34.º, 37.º 38.º e 40.º, do Regulamento.
[85] Cf. arts. 38.º, n.º 4 e 51.º, n.º 1.
[87] Tanto do processo principal como do processo secundário.
[88] Cf. obra citada (nota 2) p. 4.
[89] Cf. obra citada (nota 29), p. 1264.
[90] De Acordo com o n.º 48.º do Preambulo do diploma que aprovou o Código, este título “estabelece um conjunto de regras de direito internacional privado, destinadas a dirimir conflitos de leis no que respeita a matéria conexas com a insolvência.”
[91] Embora, mais à frente, vamos ver que nem sempre se tratam de normas de conflitos, ao contrário do que refere o legislador.
[92] Como salientam Carvalho Fernandes e João Labareda o objetivo único deste comando “é o de reiterar a regra do primado do Direito Comunitário”,
Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª edição, Lisboa, Quid Juris, 2015, p. 933.
[93] Tal como enuncia Maria Rosa Oliveira Tching, citando, em parte, Gomes Canotilho e Vital Moreira, a propósito do art. 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, consagra-se uma regra de colisão entre o Direito da União e o direito interno, tratando-se de “uma regra de colisão reconduzível à aplicação unitária e preferente do direito europeu, informada pelos princípios da justiça e da igualdade de todos os cidadãos da União e de todos os Estados-Membros, e que significa, acima de tudo, que o direito interno não pode servir de obstáculo à vigência e aplicação do Direito da União na ordem interna.” –
Revista Julgar n.º 14, Coimbra, Almedina, Maio-Agosto 2011, p. 141.
[95] Cf. obra citada (nota 93), p. 964.
[97] Obra citada (nota 93), p. 966.
[98] Alexandre de Soveral Martins defende uma interpretação restritiva da redação portuguesa do art. 2.º, n.º 10, mencionando que o mesmo apenas deve considerar os casos em que o devedor já tenha exercido a sua atividade e não para os casos em que exerce, obra citada (nota 34), p. 71.
[99] Obra citada (nota 34), p. 55.
[100] Obra citada (nota 24), p. 734.